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    Omar e suas irmãs, Farha e Malika, em Porto Alegre - FOTO: ACERVO PESSOAL

depoimento

Como minha família fugiu do Talibã

Refugiado que deixou o Afeganistão e encontrou abrigo no Brasil narra sua fuga e diz que tem medo de voltar a Cabul

Omar Atbai | 18 ago 2021_14h12
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Em 2002, cinco famílias de refugiados afegãos desembarcaram em Porto Alegre para recomeçar suas vidas longe da guerra. Nem todas se adaptaram à cultura brasileira, e a maioria regressou ao Afeganistão. Mas parte da família do técnico de informática Omar Atbai, 30 anos, segue na capital gaúcha. Ele vive com a mãe e a irmã mais velha. O pai está em Cabul, a capital afegã – de onde vieram as imagens que chocaram o mundo nos últimos dias. 

À medida que as Forças Armadas americanas vão deixando o país, o Talibã assume o controle de praticamente todo o Afeganistão. Há um medo generalizado de que o grupo extremista instaure um governo com mãos de ferro, à semelhança do que fez entre 1996 e 2001. Por isso muitos afegãos estão desesperados para fugir do país, engrossando a fileira dos que já abandonaram. De acordo com a ONU, até 2020 eram 2,6 milhões de afegãos refugiados ou deslocados pelo mundo. Isso eleva o Afeganistão ao posto de terceiro maior país em número de refugiados, logo atrás da Síria e da Venezuela. No Brasil, foram 115 registros de refugiados nativos do Afeganistão entre 2011 e 2020, segundo dados compilados pelo OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais). 

O Talibã tem procurado apresentar ao mundo uma face mais moderada. Convocou os afegãos a voltarem ao trabalho, disse que não haverá represálias contra estrangeiros e prometeu liberdade de imprensa. Omar Atbai ligou para Cabul e ficou confiante. “Meu pai comentou que o Talibã não parece tão rígido como no passado”, disse ele em depoimento à piauí. “Isso me tranquilizou. Mas não ao ponto de me imaginar visitando Cabul algum dia.”

Em depoimento a Leonardo Pujol 

 

Até desembarcar no Brasil, em 2002, tive uma vida dinâmica. Nasci em Karte Naw, um bairro de classe média na Zona Leste da capital do Afeganistão, Cabul. O ano era 1991. Meu pai, Abdul, era militar do Exército. Minha mãe, Rogia, professora do ensino fundamental. O problema é que aquela era uma época cada vez mais difícil, perigosa e instável para os afegãos. A invasão soviética recém havia acabado, em 1989, e várias facções disputavam o controle do país. Era o caos. Meus pais não queriam que eu e minha irmã Farha, quatro anos mais velha, fôssemos criados em meio a uma guerra civil. Por isso foram forçados a tomar a firme decisão que mudaria para sempre a nossa história: fugir do Afeganistão. 

Em 1993, meu pai desertou do Exército, minha mãe deixou o emprego, e cruzamos a fronteira. Eu tinha 2 anos. Fomos para Islamabad, a capital paquistanesa. O irmão de meu pai, que havia emigrado para o Canadá anos antes, mandava dinheiro para o nosso sustento. Minha mãe contou que, nessa época, chegou a voltar algumas vezes ao Afeganistão para visitar parentes – eu a acompanhei em algumas viagens. Só que, depois de três anos no Paquistão, não estávamos prosperando. Voltar a viver no Afeganistão não estava nos planos, pois àquela altura o Talibã já tinha o controle de várias regiões. Era questão de tempo até chegar à capital. Foi aí que minha família decidiu se mudar mais uma vez. O novo destino era Nova Déli, na Índia, onde contávamos com a promessa de apoio da ONU para refugiados. 

Como Farha e eu não tínhamos passaporte, era impossível viajar diretamente do Paquistão para a Índia. Então regressamos ao Afeganistão. Passamos algumas semanas em Cabul organizando a documentação necessária e nos despedindo dos familiares. Em maio de 1996, embarcamos para a Índia. O Talibã tomaria o controle de Cabul quatro meses depois (fomentando um regime cruel que se estenderia até a Guerra do Afeganistão, a ofensiva americana que começou em outubro de 2001). 

Ao contrário do que acontecia em Cabul – onde meus parentes, principalmente as mulheres, sofriam numa sociedade dominada pelo extremismo do Talibã –, na Índia a vida era tranquila. Assim que chegamos, fomos para a casa de um tio-avô e depois alugamos um apartamento. Enquanto meu pai trabalhava como vendedor de relógios, minha mãe cuidava da gente. Depois, ela fez curso de cabeleireira e estética. O irmão de meu pai, lá do Canadá, seguia nos ajudando. E também a ONU, que bancava boa parte do custo de moradia e alimentação da nossa família. 

Só que nossa permanência não era garantida em Nova Déli. Havia um clima inquietante, um medo de nos mandarem de volta ao Afeganistão. Seis anos depois de chegar à Índia, recebemos da ONU a notícia de que nossa família e outras quatro, também de origem afegã, receberiam refúgio no Brasil. Não sabíamos nada sobre o país, mas estávamos esperançosos por uma chance de recomeçar. Em abril de 2002, desembarcamos em Porto Alegre.

No começo foi muito difícil. Eu tinha 11 anos, a Farha, 15, e a Malika, que nasceu na Índia, só 2 aninhos. Meu pai não conseguia aprender o português, tampouco arrumar um emprego. O dinheiro que a ONU dava como auxílio, cerca de 300 reais por mês, era insuficiente para sustentar uma família com cinco pessoas. Esse tipo de coisa frustrava não só meu pai como todos os afegãos que haviam recebido refúgio no Brasil. Tanto é que as demais famílias voltaram ao Afeganistão alguns meses depois. Dali em diante, meu pai começou a se desentender com minha mãe. Por não estar adaptado, queria fazer como os outros: ir embora. Minha mãe gostava daqui, desejava ficar. Em 2005, após três anos no Brasil, meu pai embarcou sozinho num avião rumo a Cabul. 

Levou um ano e meio para que eu aprendesse a me comunicar em português. Além de frequentar uma escola pública tradicional, minhas irmãs e eu recebíamos aulas particulares de uma ONG. Tirando isso, foi bem tranquilo viver aqui. O clima de lá se assemelha um pouco – como em Cabul, Porto Alegre é muito quente no verão e tem um inverno rigoroso. A comida também é ótima, adoramos o churrasco – não tem como não gostar. E me tornei torcedor fanático do Grêmio. No fim das contas, acho que a transição foi fácil porque não cheguei a ter uma vida no Afeganistão a ponto de me apegar a tradições e culturas. Na prática, sou brasileiro. Isso se confirmou em 2012, quando minha família recebeu a cidadania.

 

Omar na Orla do Gasômetro, em Porto Alegre – Foto: Acervo pessoal

 

Minha mãe, sim, sofreu um pouco mais nesse ponto. Mas éramos bem-recebidos e tratados com respeito, qualquer dificuldade parecia superável. Hoje, ela está muito bem resolvida, trabalha em um grande salão de beleza em Porto Alegre. Minha irmã mais velha fez carreira na área de TI (Tecnologia da Informação). Atualmente, trabalha em uma multinacional com sede em São Leopoldo, na região metropolitana. A mais nova está com os familiares do meu pai no Canadá – ela termina o ensino médio este ano e deve entrar na faculdade no próximo. Eu terminei o ensino médio, fiz curso técnico em informática e em 2022 pretendo entrar na faculdade para fazer uma graduação na área de TI. 

Já o meu pai, que tem 58 anos, está no Afeganistão desde que voltou do Brasil. Ele se casou novamente e tem um filho de 11 anos. Quando vi as imagens do que acontecia no aeroporto e em outras regiões de Cabul, fiquei muito triste, abalado. Estava com medo de que acontecesse alguma coisa a ele. Na segunda-feira, liguei pra lá. Meu pai comentou que, dessa vez, o Talibã não parece tão rígido como no passado. Assegurou-me de que está bem, assim como seus familiares e os de minha mãe. Disse que o Talibã assumiu o poder sem grandes confrontos, que o comércio está funcionando e que, com a saída dos americanos, a tendência é que cessem os atentados na região. Isso me tranquilizou. Mas não ao ponto de me imaginar visitando Cabul algum dia. Mesmo que tudo se acalme, não sinto confiança em voltar. Fico achando que podem impedir meu retorno ao Brasil. E não quero, jamais, correr esse risco. 

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