Em maio deste ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) divulgou em seu site a prisão de um passageiro que tentava embarcar para a Europa com um material insólito: arcos de instrumentos musicais e varetas fabricados com pau-brasil. O valor estimado da carga era de 300 mil reais. O passageiro fora detido em abril no terminal 3 do Aeroporto Internacional de Guarulhos, e o material estava em suas bagagens despachadas. Com os arcos e as varetas foram encontrados também blocos de recibos com anotações de vendas e uma lista de preços com valores em libras, reforçando que o material seria vendido.
O homem foi preso por contrabando. Dois passageiros que viajariam com ele fugiram, abandonando uma mala. O Ibama fez mistério sobre a identidade do autuado, descrevendo-o apenas como um “arqueiro conhecido internacionalmente”.
O “arqueiro” é o empresário Marco Antonio Raposo Nascimento, de 56 anos, proprietário de uma marca de arcos para instrumentos musicais que diz em seu site ter representações em Nova York, Londres e no Brasil. No mercado especializado de instrumentos musicais de alta qualidade, ele é um “archetier”, expressão que designa um fabricante de arcos para instrumentos musicais, como violino e violoncelo. No site de sua empresa, a Marco Raposo Bows, Nascimento afirma que “inspira a conservação de florestas” e “cria soluções para controlar grandes danos ao meio ambiente”. Diversos sites de venda de arcos para violino e violoncelo nos Estados Unidos e na Europa anunciam produtos da Marco Raposo Bows, e o valor de um arco pode chegar a 2.500 dólares (cerca de 13 mil reais).
Numa loja de violinos na região Norte de Londres, uma vendedora encontrou no estoque cinco arcos de Raposo, com preços entre 5,7 mil e 12,1 mil reais (900 e 1900 libras). A assinatura de Raposo pode ser vista na madeira. Um arco de luxo pode chegar a 158 mil reais (ou 25 mil libras). Durante a conversa, a vendedora admitiu ter dificuldade em saber de onde a madeira dos arcos é extraída ou como. O dono da loja disse conhecer Raposo há mais de 25 anos, descrevendo os seus arcos como “excelentes”. Ele disse que sempre esteve “muito ciente de que o desmatamento” era um problema e que chegou a discutir o assunto com o archetier brasileiro, que teria lhe contado sobre suas iniciativas de conservação do meio ambiente.
Uma investigação jornalística feita ao longo de dois meses identificou, pela primeira vez, pessoas e empresas autuadas pela comercialização irregular de arcos musicais feitos de pau-brasil. O trabalho jornalístico foi conduzido pelo projeto Data Fixers, projeto de investigação de crimes ambientais financiado pelo Brown Institute for Media Innovation, das universidades de Columbia e Stanford, em parceria com o consórcio de jornalismo investigativo OCCRP, a revista piauí e a agência de dados Fiquem Sabendo. Nesse trabalho de apuração, a investigação localizou pessoas e empresas que respondem a processos administrativos por irregularidades na obtenção da madeira e na comercialização dos arcos. Muitos desses personagens estão na mira da Operação Dó-Ré-Mi, iniciada em 2018 pelo Ibama para conter o contrabando de pau-brasil para fabricação de arcos. De acordo com as autoridades brasileiras, alguns dos autuados são suspeitos de integrar uma quadrilha que atua na retirada ilegal de pau-brasil para fabricação de arcos a serem vendidos para Estados Unidos, Ásia e Europa.
O pau-brasil não é só uma árvore símbolo do Brasil. É também uma espécie ameaçada de extinção – o que transforma em crime ambiental qualquer atividade que realize extração de sua madeira sem autorização federal. Os autuados, por sua vez, alegam abuso por parte das autoridades, dados inflados pela polícia e punições exageradas. Negam ter cometido qualquer irregularidade intencionalmente e dizem estar buscando a sustentabilidade do setor.
No dia 8 de novembro deste ano a Polícia Federal deflagrou nova operação. Mirou empresas localizadas em cidades do Espírito Santo como Aracruz, João Neiva e Santa Teresa, onde se concentra o mercado de fabricação de arcos. O objetivo era cumprir 37 mandados de busca e apreensão. Participaram quase cem servidores da Polícia Federal e do Ibama em quatro estados brasileiros – Rio de Janeiro, Bahia, Espírito Santo e Alagoas.
Desde 2018, pelo menos 33 pessoas e empresas foram alvo de apreensões e autuações. Foram recolhidas quase 150 mil varetas usadas na fabricação de arcos. As multas somam 54 milhões de reais, segundo dados do Ibama obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação. Na lista aparecem fabricantes cujos produtos são comercializados em diversos países.
Os nomes dos investigados pela extração ilegal do pau-brasil para fabricação dos arcos musicais nunca vieram a público até agora. A reportagem os identificou cruzando informações disponíveis no site do Ibama, nas cópias das autuações e na base de dados abertos do instituto, considerando datas, valores e descrições dos fatos. Os nomes também foram checados em documentos oficiais. Foram entrevistados servidores e ex-servidores envolvidos nas operações, músicos, ambientalistas e fabricantes de arcos. Em praticamente todos os casos identificados pelo Ibama, as empresas e proprietários são reincidentes, segundo um levantamento feito por Data Fixers e Fiquem Sabendo. A empresa de Marco Raposo, por exemplo, recebeu oito autuações – duas pagas e o restante ainda em análise, que somam mais de 2 milhões de reais. Ao todo, as empresas alvo da operação já foram multadas ao menos 87 vezes, segundo mostram os dados abertos do Ibama.
De protetor do pau-brasil a prisão em flagrante
Quando foi preso em flagrante pelo Ibama no aeroporto, em 12 de abril deste ano, Marco Raposo foi multado em 105 mil reais. Admitiu o transporte ilegal dos arcos e disse que já tinha dado entrada no pedido para exportar a madeira, mas que houve demora na resposta e que, como estava em dificuldades financeiras, decidiu fazer a viagem assim mesmo. Após audiência de custódia, foi liberado e responde em liberdade ao inquérito por contrabando. Seu passaporte foi apreendido e ele ficou impedido de deixar o país. Em novembro, a Justiça autorizou a quebra de sigilo telefônico do empresário para dar continuidade às investigações.
Raposo já era investigado em inquérito policial desde o ano passado pelo mesmo motivo, mas não tinha sido preso à época, segundo a PF, porque não foi possível confirmar naquele momento que o material transportado era, de fato, pau-brasil. O procurador da República Guilherme Rocha Gopfert apontou que o empresário realizou um “grande número de viagens internacionais”, que “parecem ter por escopo justamente a venda dos produtos ilegalmente exportados”.
A empresa de Marco Raposo foi embargada em 2019 pelo Ibama, depois de uma vistoria ter identificado irregularidades no local, como apresentar informações “parcialmente enganosas” e “deixar de atualizar saldo de volumes de madeiras junto ao sistema”. O embargo durou cerca de dois anos, período em que a empresa ficou impedida de comercializar seus produtos, sendo suspenso em 2021 por decisão judicial. Servidores do Ibama envolvidos na fiscalização naquele ano demonstraram irritação com o comportamento do empresário durante uma vistoria feita em setembro de 2019. Relataram que ele recusou-se a entregar documentações e a assinar documentos solicitados e que gritou com a equipe do Ibama, “enxotando os servidores como cachorros sarnentos”.
Nem sempre o nome de Raposo esteve sob suspeita. Ele foi um dos personagens entrevistados para o documentário A Árvore da Música (2009), dirigido por Otavio Juliano, sobre a preservação do pau-brasil. O archetier aparece nos minutos finais e diz: “Para que a gente possa continuar esse trabalho tão bonito [de fabricar arcos], temos que ter uma nova consciência. Essa consciência parte do princípio de que, para continuar essa arte, vamos ter que ter matéria-prima e, para ter matéria-prima, vamos ter que plantar comercialmente.”
O diretor Otavio Juliano disse à reportagem que nada à época da gravação demonstrou qualquer indício de irregularidade por parte dos fabricantes de arcos entrevistados. “Eles eram conhecidos internacionalmente entre os archetários e participavam do replantio de pau-brasil. Houve uma pesquisa intensa para o filme. Não tinha nada escondido. Mas não sei o que aconteceu depois.” As entrevistas tinham sido feitas em 2008, segundo ele.
Uma reportagem publicada em outubro de 2020 pelo jornal capixaba A Tribuna traz Marco Raposo como principal entrevistado, representando os fabricantes de arco da região. Ele contou que passou a vender o produto enquanto atuava como comissário de bordo. O texto narra que o empresário decidiu então estudar mais sobre a árvore e criou o Instituto Verde Brasil para distribuir mudas para plantio em parceria com o governo do Espírito Santo, onde sua empresa está sediada no Brasil. No inquérito policial a que responde, Raposo diz que suas organizações têm parcerias com prefeituras do Espírito Santo e com institutos de pesquisa.
Procurado, Raposo admitiu, por e-mail, que não tinha documentação necessária para ter feito a exportação que o levou a ser detido, mas disse que comprovou a origem lícita do estoque e que o erro “não foi intencional e nem teve o propósito de burlar a legislação com o objetivo de ganhos adicionais. Foi uma falha que pode ocorrer em qualquer negócio”.
Ele disse que jamais integrou qualquer tipo de esquema criminoso e que as sanções impostas à sua empresa ou foram desconstituídas ou ainda estão tramitando. “Vale lembrar que autuação não significa condenação.” Reforçou que, à frente do Instituto Verde Brasil (IVB) fez “várias ações para a proteção da Mata Atlântica” com ênfase no pau-brasil e com a participação de autoridades dos mais diversos setores e instituições”, tendo sido premiado três vezes por esses trabalhos. Disse ainda que respeita todo e qualquer servidor do Ibama e/ou qualquer outro órgão de governo e que espera provar sua idoneidade, “como venho fazendo há 25 anos, sediado no mesmo endereço e sob o mesmo CNPJ”. (Leia a íntegra da resposta de Raposo aqui.)
Autor das Bachianas Brasileiras, o compositor Heitor Villa-Lobos passou boa parte de sua vida tocando violoncelo. O instrumento usado pelo compositor, de 1779 e assinado pelo mestre luthier alemão Martin Dihl, integra o acervo do Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. O violoncelo e o arco foram restaurados em 2012. A dupla responsável pelo trabalho no arco, Elias Guasti & José Bottoni, reconhecidos internacionalmente como Guasti & Bottoni, já foi alvo do Ibama, que apreendeu com os dois mais de mil varetas, ripas, toretes e arcos de pau-brasil. O Ibama suspeita de que o material tenha origem ilegal. A Polícia Federal instaurou inquérito para apurar o caso. “Sugere-se que seja aberta linha de investigação para averiguar se esses artesãos recebem ou receberam material de origens estranhas com os intermediários dessa quadrilha que trafica pau-brasil do Sul da Bahia para Aracruz e região”, diz um relatório de fiscalização em nome de Guasti, de junho de 2020.
Embora os arcos da dupla tivessem qualidade reconhecida no exterior, a madeira guardada em seus depósitos estava em condições precárias, o que, para o Ibama, seria uma indício de que os documentos apresentados pela dupla serviriam apenas para mascarar material contrabandeado.
Procurado, Guasti negou ter cometido qualquer irregularidade e disse que, desde 2017, não produz mais arcos pois não possui mais madeira – a que tinha foi confiscada pelo Ibama. “Tenho minhas documentações, alvará de licença da prefeitura, fazia todas as anotações junto aos órgãos públicos. Pago meus impostos.” Ele também reclamou do que chamou de “agressividade” dos fiscais na visita que recebeu. “Entraram na minha casa com mais de dez pessoas, armados. Tenho uma mãe de 70 anos, uma idosa. Minhas crianças vendo aquela situação todinha, não precisava ter aquilo.”
A lista de autuados pelo Ibama inclui o presidente e cinco diretores de uma entidade que reúne empresas ligadas à fabricação de arcos. Julio Batista preside a Associação dos Artesãos e Empresas de Instrumentos de Cordas Unidos na Preservação da Mata Atlântica Brasileira (AAUMABR). Seu filho Rodrigo Freitas Batista é dono da JB Atelier, alvo da operação pelo menos cinco vezes, segundo documentos do Ibama. As multas ultrapassam 3 milhões de reais. Já foram apreendidas mais de 6 mil varetas de pau-brasil na empresa. O pai tem procuração para administrar a empresa do filho.
Procurado, Julio Batista afirmou que a fiscalização do Ibama na JB Atelier foi desproporcional, pois a empresa possui a documentação necessária e a matéria-prima foi adquirida de forma legal. “Os embargos e apreensões impediram o prosseguimento da atividade e consequente manutenção da remuneração das famílias que sobreviviam dessa atividade.” Disse ainda que ser alvo de operação da PF “gera grande desconforto, angústia e exposição desmedida do nome e da imagem pessoal e da empresa, que antes de qualquer julgamento já sofre graves consequências mesmo a empresa tendo buscado diálogo e transparência com o Ibama e seus servidores.”
Diretor da AAUMABR, Valdecir José Siqueira Ribeiro teve empresas suas multadas pelo Ibama (Atelier Brasil e Archets Brasil) e é suspeito, segundo o Ibama, de ser um interceptador da madeira de origem ilegal vinda da Bahia. Em mais de um documento do Ibama ele é “citado como receptor de madeira ilegal de pau-brasil em dez de cada dez denúncias de irregularidades na cadeia de pau-brasil”.
Os advogados de Ribeiro que atuaram em sua defesa no processo do Ibama enviaram nota dizendo que ele “jamais praticou nenhum ato doloso que caracterize crime, está tranquilo quanto ao exercício de sua atividade profissional e irá aguardar as investigações contribuindo sempre que demandado pelas autoridades”. A defesa da Atelier Brasil e Archets Brasil negou qualquer irregularidade cometida “de forma dolosa ou intencional”. Disse que as empresas estão à disposição das autoridades e respeitam o trabalho de investigação, mas “discordam veementemente de ações realizadas desde 2018 pelo Ibama embasadas em ilações, métodos comparativos genéricos, subjetivos e aleatórios, com apreensões de madeiras de origem legítimas, que possuem o devido documento de origem florestal, tudo regularmente apresentado ao órgão fiscalizador”.
Por e-mail, a AAUMABR afirmou que reúne catorze empresas do setor e tem como missão incentivar a atualização profissional dos artesãos. Considerou a operação das autoridades “desigual” e “desproporcional”. “A mais recente operação, chamada de Ibirapitanga Fase 2, ganhou espaço na mídia, e o setor continua sendo tratado como vilão do meio ambiente, como se entrássemos nas matas e saíssemos com caminhões carregados de dezenas de toras de pau-brasil.” A associação afirmou que todo o setor de produção de arcos no país necessitaria de duas árvores adultas por ano para fazer toda a sua produção e que, por outro lado, já plantou mais de 300 mil árvores nas últimas cinco décadas.
A Polícia Federal e o Ibama afirmam que o esquema de algumas dessas empresas inclui extração ilegal de madeira em unidades de conservação, armazenamento e exportação ilegal. Segundo as investigações, o primeiro passo é “esquentar” a madeira para dar a ela um ar de legalidade, usando estoques envelhecidos de pau-brasil de baixa qualidade e escondendo o material usado na fabricação dos arcos. Um relatório de uma das autuações aponta “forte conexão entre os arqueiros artesãos e as empresas que dominam o ramo e fazem exportação de praticamente todos os arcos produzidos”, ressaltando que as empresas “têm ramificações em vários países de diferentes continentes, tanto da América do Norte como na Ásia e principalmente na Europa”. Estimativa do Ibama indica que, nos últimos vinte anos, cerca de 127,2 mil varetas foram exportadas. “Atualmente a percepção do Ibama é de que grande parte do mercado de arcos de pau-brasil é baseado em madeira extraída de forma criminosa de unidades de conservação ou de florestas em áreas particulares sem o devido processo autorizativo”, diz um documento de fiscalização de uma das empresas, obtido pela reportagem.
As autoridades identificaram que boa parte da madeira das empresas investigadas era extraída ilegalmente de áreas preservadas no Sul da Bahia. “Tiravam a madeira, tinha empresários que compravam essa madeira, passavam para artesãos e depois exportavam”, diz o superintendente da Polícia Federal do Espírito Santo, Eugênio Ricas. “O custo de cada arco é de 20 a 40 reais e depois ele chega à Europa ou aos Estados Unidos a 2,6 mil reais. A margem de lucro é absurda”, disse o delegado. “É mais lucrativo vender a nossa madeira do que vender cocaína. E o risco é muito menor. Se vender cocaína, é preso e não há aceitação social. Quem extrai madeira tem aceitação social”, ressaltou Ricas.
Colaborou Katie McCraw, da OCCRP, em Londres
Para ler a reportagem em inglês publicada pela OCCRP, clique aqui.