O público recebeu Conceição Evaristo com palmas no momento que ela entrou no auditório da Academia Mineira de Letras (AML), em Belo Horizonte, às 20h40 da última sexta-feira, dia 8. Cerca de duzentas pessoas dentro do prédio na Rua da Bahia e mais algumas no hall (onde foi colocado um telão) aguardavam a cerimônia de posse da primeira escritora negra e a décima mulher a fazer parte da AML, uma instituição que já completou 115 anos. Evaristo agora ocupa a cadeira nº 40, que está vaga desde a morte da Maria José de Queiroz (1934-2023) e cujo patrono é José Teixeira da Fonseca Vasconcelos, o Visconde de Caeté (1767-1838).
Acompanhada dos escritores Maria Esther Maciel, Caio Boschi e Luís Giffoni – todos os três membros da AML –, Evaristo, de 77 anos, entrou no auditório trajando uma bata branca, feita de rendas na forma de sankofas (símbolo africano que remete a um pássaro mítico), por cima de um vestido vermelho. Na cabeça destacava-se uma faixa em amarelo ouro amarrando o cabelo crespo e grisalho em um coque. A bata, criada pela estilista negra baiana Mônica Anjos, trazia rendas que remetiam ao pássaro que voa para frente, mesmo tendo a cabeça voltada para trás.
Muito concorrida, ao ponto de terem se esgotado os lugares no auditório, a posse contou com a presença, entre outros, do ex-ministro e atual deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), da também deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG), da empresária e colecionadora de arte Angela Gutierrez e do poeta Ricardo Aleixo, amigo de Evaristo. Foi o escritor mineiro Ailton Krenak, eleito no ano passado para a AML e também para a Academia Brasileira de Letras (ABL), quem colocou o distintivo acadêmico em Evaristo, com a inscrição em latim scribendi nullus finis (escrever sem fim). Ao abraçar a escritora, ele cochichou algo no ouvido dela.
Mais tarde, Krenak contou à piauí o que disse a Evaristo: “Até que enfim! Meu ori saúda o seu ori. O tempo tem o poder de revelar as coisas ocultas”. Nas religiões de matriz africana, ori é a cabeça, o lugar que abriga o orixá que guia cada pessoa. Krenak se referiu à “longa jornada” para escritoras negras serem reconhecidas. “Conceição demarca território afetivo até mesmo indicando o lugar onde ela teve o umbigo enterrado. Memorialística fincada na terra. Prenúncio de alguém que vai produzir uma obra terrana, voltada para a terra”, disse ele.
Em 2018, Evaristo concorreu a uma vaga na ABL, mas perdeu para o cineasta Cacá Diegues. A piauí perguntou a Krenak se ele via alguma possibilidade de ela se recandidatar – e vencer. “Essas instituições têm história e processos tão próprios, cada uma delas, de acolher escritores e membros. Gutenberg inventou a prensa, e Conceição, a escrevivência. Dá um haikai”, ele respondeu.
Evaristo, que nasceu na Favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte, contou que foi a eleição de Krenak que a animou a se candidatar à AML. “Muito rejubilei com a eleição de Ailton Krenak. A casa trazia aquele cuja experiência da colonização cria em nós uma condição de parentesco pela história transversalizada dos povos indígenas e dos povos africanos e seus descendentes na formação da nacionalidade brasileira”, disse. “Uma cumplicidade não programada reina entre nós. Por isso, a gente cochichou.”
A AML agora se tornou a “Casa de Conceição”, nas palavras do presidente da instituição, o poeta e professor de literatura grega Jacyntho Lins Brandão. “Sua chegada é de uma importância visceral para a academia”, ele disse em seu discurso de boas-vindas. “Antes de tudo por ser você a primeira escritora negra que nela ingressa, e isso, eu imagino, a deixará à vontade para o exercício de sua vocação de desbravadora, um adjetivo com que você mesma se define. Em maior ou menor medida, cada nova acadêmica ou acadêmico que recebemos redefine o perfil da academia: com você, hoje, por todos os seus méritos e por toda novidade, trata-se de uma refundação.”
Com um discurso leve e procurando dialogar com a plateia, Evaristo brincou com o fato de o umbigo dela estar enterrado em Belo Horizonte. “Diz que, quando uma pessoa está para morrer, a pessoa volta para onde o umbigo está enterrado. Por isso que eu não volto para Minas. Venho e volto. Até porque ‘a gente combinamos de não morrer’”, disse, repetindo um trecho do seu livro Olhos d’água, de 2014.
No discurso, Evaristo fez como o pássaro mítico: olhou para trás, reconstituindo a história de sua família em paralelo com o mundo dos acadêmicos e escritores mineiros. A sua posse marca a chegada de uma mulher negra da classe trabalhadora numa instituição cujos fundadores e patronos eram oriundos da elite de Minas. Ela cruzou as próprias memórias com as de Maria José de Queiróz, destacando um fato revelador: uma prima de Evaristo, Pier, trabalhou como empregada na casa do escritor e professor Eduardo Frieiro (1889-1992), membro da AML que foi mentor de Queiroz em seus tempos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A mãe de Evaristo trabalhou para parentes do escritor e jornalista Otto Lara Resende e da poeta Henriqueta Lisboa (1901-1985) e sua irmã, a pedagoga Alaíde Lisboa (as duas também foram da AML). Na infância, Evaristo leu os livros Bonequinho doce e Bonequinha preta, de Alaíde Lisboa. “Tem um momento que, no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, fui a Bonequinha Preta. Fiquei me sentindo. O pai de Alaíde e Henriqueta, doutor João Lisboa, foi padrinho de minha irmã mais velha, Maria Inês”, disse. “Tenho dito que a literatura me persegue desde as entranhas de mulheres subalternizadas de minha família. São essas mulheres que me colocam aqui.”
Evaristo resgatou ainda a relação de outras mulheres de sua família com pessoas ligadas à vida intelectual mineira. “Minha tia Laurinda, a que me dá uma biblioteca inteira, trabalhava para dona Etelvina Viana, que foi diretora da Biblioteca Pública de Minas Gerais. Dona Etelvina levava minha tia para trabalhar na biblioteca, na Praça da Liberdade”, contou. “Quando minha tia vai trabalhar na Biblioteca Pública de Minas Gerais, eu ganho uma biblioteca inteira.”
E prosseguiu: “Hoje estou na casa de Henriqueta Lisboa, alguém que faz parte da minha história, da história da minha família. Quando minha mãe dizia a casa de Henriqueta Lisboa, estava dizendo a casa da patroa dela. É com muito orgulho, muita alegria, muita vontade de marcar a casa de Henriqueta Lisboa, uma casa à qual não me refiro como a casa de minha patroa, como minha mãe se referia. Hoje me refiro à casa de Henriqueta Lisboa como uma casa em que estou para dialogar, para trabalhar com vocês.”
Conceição ressaltou que não será um “enfeite” na AML e que pretende impregnar a instituição de novas maneiras de pensar e ler a literatura. “Agradeço a confiança que estão depositando em mim, mas não quero ser só representatividade. Pode ser petulância da minha parte, mas nós não somos enfeite.”
Agraciada com alguns dos principais prêmios da literatura brasileira, como o Jabuti e o Juca Pato de Intelectual do ano, Evaristo ultrapassou a marca de mais de 500 mil livros vendidos, conforme levantamento feito pelo jornalista Walter Porto, em maio do ano passado. Sua obra retirou da invisibilidade mulheres negras subalternizadas, tornando-as protagonistas de poemas e romances, como Ponciá Vicêncio (2003, romance), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011, contos) e Poemas de recordação e outros movimentos (2017). Ela contou que está escrevendo o livro Em nome de mãe, iniciado logo depois da morte de sua mãe Joana Josefina, em 2022, três dias antes de completar 99 anos. “Misturo a memória de minha mãe, relatada na forma de um diário que ela escreve depois de ler Carolina Maria de Jesus, com cartas e textos meus contando a vida dela”, antecipou.
A família de Evaristo, tão importante na construção dos personagens da escritora, compareceu em peso à posse. Estavam na AML os irmãos Altair, Almir, Angélica e Maria de Lourdes, além de primos, sobrinhos netos e cunhados. “Fico muito feliz, porque eles vieram lá de Contagem e Igarapé”, disse a escritora.
Como o dia da posse também era o Dia Internacional da Mulher, compuseram a mesa da AML a ensaísta e editora Antonieta Cunha (vice-presidente da instituição), as deputadas estaduais Bella Gonçalves (Psol- MG) e Macaé Evaristo (PT-MG), e a ministra Edilene Lobo, do Tribunal Superior Eleitoral, além do presidente Lins Brandão e do secretário-geral da AML, o jornalista J. D. Vital.
Cunha lembrou que Evaristo tem Maria no nome (o nome completo da escritora é Maria Conceição Evaristo de Brito) e que uma de suas personagens, Maria Nova (do livro Becos da memória, de 2006), tomou para si a tarefa de contar a história dos seus ancestrais – e convidou o público a cantar Maria, Maria, música de Fernando Brant gravada por Milton Nascimento.
Depois da cerimônia, aconteceu um jantar na sede da AML, preparado pela banqueteira e pesquisadora de memória alimentar Patrícia Brito e por Neusa Assis (do Quilombo dos Carolinos, em Contagem, na Grande BH), Adriana Menezes (do Quilombo Souza, na capital mineira) e Cleusa Araújo (do Quilombo Araújo, em Betim, também na Grande BH). Os convidados se serviram dos quitutes arranjados sobre uma grande mesa coberta por uma toalha amarela, cor escolhida por Evaristo, que é filha de Oxum (cujas cores são o ouro e o amarelo). Próxima da mesa havia uma instalação em referência ao mesmo orixá formada por 24 espelhos com moldura também amarela. A cenografia foi feita por Patrícia Brito e Daniel Menezes.
Os convidados saborearam milho cozido, torta de milho, cubus (um tipo de biscoito de fubá) enrolados em folha de bananeira, bolinho de arroz com queijo, paçoca de amendoim com farinha de milho, torresmo com mandioca, mandioca cozida com linguiça da roça e três tipos de farofa: de miúdos, de feijão gandu com carne de lata e de banana verde e feijão. Os doces não deixaram por menos: mamão verde em compota, doce de leite e doce de banana madura. Todos os pratos foram preparados com produtos cultivados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e por pequenos agricultores da Região Metropolitana de Belo Horizonte.