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    Papa Francisco, ao lado do monsenhor Marcelo Sanchez Sorondo, assina uma declaração durante uma cúpula de dois dias de juízes e magistrados contra o tráfico de pessoas e o crime organizado, no Vaticano, em junho de 2016 Gregorio Borgia/AP Photo/Imageplus

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Para onde a fumaça sopra

Um monsenhor amigo de Francisco olha para os próximos passos da Igreja

Ana Clara Costa, da Cidade do Vaticano | 07 maio 2025_19h36
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Encontrei-me com Marcelo Sánchez Sorondo num dos cafés mais modestos do Vaticano, e também um dos mais barulhentos, por sugestão dele próprio. Sentamos nas mesas de fora. A poucos passos dali, dezenas de turistas e fiéis se enfileiravam para comprar um prato descartável de massa por menos de 8 euros num restaurante indicado pelo TripAdvisor pelo bom custo-benefício. O barulho dificultava a conversa, sobretudo porque o monsenhor argentino de 82 anos falava baixo, característica coerente com sua figura discreta. Usava sua bata preta de padre e uma calça escura. A cruz pendurada no peito não estava visível, mas os passantes pareciam intuir que ele tinha uma posição de prestígio na Cúria, porque não raro paravam para cumprimentá-lo e puxar assunto, ainda que não soubessem quem era.

Sánchez Sorondo foi chanceler das academias de Ciências e de Ciências Sociais do Vaticano por 24 anos e três papas. Fez praticamente toda a sua formação sacerdotal na Itália depois de passar pelo seminário em Buenos Aires, período em que conheceu Jorge Mario Bergoglio. Embora tenham seguido caminhos diferentes na Igreja — ele mais voltado para a academia enquanto o amigo crescia no universo pastoral, voltaram a se encontrar com mais frequência quando Bergoglio virou arcebispo de Buenos Aires e cardeal, passando a ter muito mais compromissos em Roma. Vaticanistas divergem sobre a profundidade da amizade de ambos, em razão da rede de intrigas que frequentemente permeia as relações na Praça de São Pedro. Mas a proximidade é inegável, a ponto de o monsenhor ter levado um médico argentino amigo seu para visitar Francisco no final do ano passado, quando seu estado de saúde já estava debilitado. 

Na bolsa de apostas do conclave, o monsenhor deixa clara sua preferência por Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano nomeado por Francisco. Acredita que ele teria as credenciais diplomáticas para transitar entre as correntes majoritárias que dividem a Cúria hoje. Mas duvida que ele seja o escolhido — acha que é mais provável que o italiano entre no conclave papa e saia cardeal. O cenário que se desenha hoje na Igreja, diz ele, é parecido com o que havia quando ocorreu a eleição de João Paulo II. “A Igreja estava dividida entre os que diziam ser da linha de Paulo VI, o antecessor, e Pio XII, o mais conservador. E quando dois lados têm quase os mesmos votos, mas não o suficiente para ganhar, salta um terceiro. E saltou João Paulo. Foi quando o papado saiu dos italianos. Acabaram escolhendo um que ninguém conhecia. Quando disseram o nome Karol Wojtyła, alguns achavam que era um africano. Ninguém achava que era polaco. Estavam esperando um papa negro no balcão.” 

O monsenhor diz que a grande divisão no cardinalato hoje é sobre o diálogo e a unidade. Francisco é tido  como o lado do diálogo. Os mais conservadores, que defendem a tradição da Cúria, incluindo seus tons mais reacionários, representam a unidade. “Mas os ‘bergoglianos’ não têm um candidato. Quem seria o candidato do Bergoglio? O [Luis Antonio] Tagle? Eles não sabem. Não são tão hábeis a ponto de chegar a um acordo sobre um candidato”, afirma. Os cardeais, quase todos ostensivamente assediados pela imprensa em Roma nos últimos dias, não ousaram mencionar abertamente suas articulações, deixando ao “Espírito Santo” a responsabilidade da decisão que virá. Mas Sanchéz Sorondo pondera que o papel do divino tem seus limites. “Ratzinger uma vez deu uma palestra na Baviera e alguém o perguntou sobre como o Espírito Santo intervinha no voto. Ele disse que o Espírito Santo intervém, mas deixa muito espaço. É como um bom maestro que educa, não que impõe.” Segundo ele, “muitas vezes não se escolhe alguém pela Glória de Deus ou pelo bem das almas, ou da Igreja, e sim pelos condicionamentos de amizades, inimizades ou carreira eclesiástica”. 

Enquanto come uma “pizzeta”, uma espécie de sanduíche de presunto de parma, ele se irrita com um grupo de latino-americanos sentados à mesa ao lado, que falam alto demais. Sugere que mudemos de mesa. Um casal de suíços percebe seu incômodo e diz estar incomodado também. O monsenhor fala em italiano e às vezes se esquece de voltar para o espanhol quando conversamos. Parece mais à vontade na língua local. 

Ele também se contraria com o fato de, na sua opinião, o mundo ter uma visão superficial de Francisco. Ele não o vê como uma ruptura na Igreja em direção a uma agenda mais progressista e diz que, em muitos aspectos, o papa representou a continuidade. “Mas ele teve muito mais coragem do que os outros”, pontua. “Francisco teve um pouco de tudo, foi um grande papa, um papa extraordinário. Era muito diversificado. Não era necessariamente contra os milagres e as tradições da Igreja. Ele abria caminhos e os desenvolvia, como foi no caso da preocupação com o clima, o combate às novas formas de escravidão. Ele tocou em temas que outros papas não tocaram. Ele plantou uma semente, mas não uma revolução”, diz.

Um dos equívocos, segundo ele, é sobre o suposto antagonismo entre ele e Bento XVI, por quem, segundo o religioso argentino, Francisco nutria profundo carinho.

Sánchez Sorondo diz que um dos segredos de polichinelo da Cúria é que Francisco, ao ser votado no conclave que elegeu Bento, recomendou aos seus eleitores que votassem no alemão, contribuindo para uma eleição mais rápida — ele foi escolhido no quarto escrutínio. “Ele ganhou com a ajuda de Francisco”, fala, embora em outros momentos ele seja menos enfático e declare que isso é que “o que se diz” dentro da Igreja. Segundo o religioso, as visitas de Francisco a Bento eram frequentes e ele julga não ter sido por acaso que o papa argentino tenha dado sua bênção aos homossexuais só depois da morte do antecessor, em 2022 — um movimento que teria desagradado o papa emérito em vida, segundo Sánchez Sorondo, considerando que Bento era mais conservador.

 

A diplomata brasileira Marissol Romarís, hoje cônsul geral adjunta do Brasil em Nova York e por três anos alocada no Vaticano, escreveu uma tese sobre o legado diplomático de Francisco. Ela diz que sua amizade com Sánchez Sorondo foi providencial para que a Academia de Ciências se transformasse, de certa forma, num braço de relações exteriores do Vaticano. “Ele usava os eventos da academia para promover o diálogo internacional, diretamente, entre os vários setores da sociedade civil e do governo. Todo mundo queria ir, não só para discutir os temas, mas também para tirar foto com o papa, que sempre aparecia no final de cada encontro, para um discurso e um aperto de mão. Era um modo inteligente de promover cooperação internacional”, observa Romariz. 

Um dos debates mais importantes da academia ocorreu em torno da encíclica Laudato-Si, primeiro documento do Vaticano sobre a necessidade de proteção ao meio ambiente e combate ao aquecimento global, lançado em 2015. O monsenhor argentino diz que essa ideia está em plena conformidade com o evangelho. “Se não houver planeta, não há Igreja, não é?” Ele lembra, contudo, que o interesse de Francisco pelo tema surgiu no Brasil, durante a Conferência de Aparecida, em 2007. O então cardeal argentino havia sido escolhido por Bento para ser relator do documento resultante da conferência. Em conversas com os bispos brasileiros, Francisco se interessou pela questão ambiental — algo que antes estava fora de seu radar, na visão do amigo. “Foi o dom Cláudio Hummes [então arcebispo de São Paulo]o primeiro a chamar a atenção dele pra isso.”

Embora Sánchez Sorondo seja cuidadoso ao comparar Francisco a seu antecessor, há quem aponte rupturas importantes durante o pontificado do argentino. Miguel Cuartero Samperi, mestre em filosofia pela Universidade de Roma Tre, lista duas mudanças que aprofundaram o cisma interno, como as restrições a missas em latim e as mudanças no Instituto Vaticano de Estudos sobre a Família. Francisco trocou toda a cúpula do Instituto, que doutrinava os sacerdotes sobre temas relacionados a aborto, eutanásia, sexualidade, casamento e ética, e mudou seu nome para Pontifício Instituto João Paulo II. “Agora o enfoque do instituto está mais relacionado às pessoas do que às normas. Em qual é a situação de cada pessoa, de cada família, para tentar se adaptar às necessidades atuais. A mudança não está tanto nas normas da Igreja sobre esses assuntos, mas na aplicação dessas normas. Um approach mais humano”, explica.

Numa entrevista recente dada ao jornal italiano Corriere della Sera, o cardeal Camillo Ruini, decano de 94 anos da ala mais conservadora, fez críticas veladas ao pontificado de Francisco, expondo a profundidade da cisão. Primeiro, ele sugeriu que as repercussões política e midiática do funeral mostravam um culto incômodo à imagem de Francisco. “O que não recebeu o devido destaque é que o elemento central da Igreja é Cristo, não o papa. Caso contrário, surge um problema.” Ruini também questionou a abertura promovida pelo argentino. “Francisco parecia favorecer os que estavam longe em detrimento dos que estavam perto. É um gesto evangélico. Mas, assim como na parábola do filho pródigo o outro filho protestou, hoje há quem proteste na Igreja.”

Lá pelo terceiro capuccino da tarde, questionei Sánchez Sorondo sobre a entrevista de Ruini, que expunha cores mais vibrantes nas discordâncias dentro da Igreja. Mas ele refutou que o decano tenha sido crítico a Francisco. Outros padres menos íntimos da cúpula da Cúria do que ele contaram à piauí que a entrevista pegou mal para Ruini, não porque estivesse mentindo, mas porque o luto de nove dias da morte do papa não tinha sido respeitado antes que começassem as críticas públicas. 

 

Duas horas depois do início da conversa, o argentino disse que tinha de partir. O tempo estava esfriando e ele estava resfriado. Mas antes contou sobre a última vez que falou pessoalmente com Francisco, no final de 2024.

“Meu médico argentino queria encontrá-lo. Via que ele não estava bem e me pediu isso. Eu sabia que ele não gostava de falar sobre saúde, que não ia me responder e ainda ia se irritar. Mas eu estava preocupado porque ele estava muito inchado. Então escrevi uma carta e mandei o mensageiro entregar (não há comunicação direta com o papa sem passar por seus secretários). Passou um tempo, ele me respondeu aceitando a visita. Organizamos tudo e o médico veio. Na visita, ele pediu que eu também entrasse. Quando veio o tema saúde, ele interrompeu e pediu para o médico mandar depois, por escrito, o que queria dizer. Ou seja, não quis nem falar, muito menos ser examinado. E o médico viu que ele não estava bem. Apesar de estar sentado, fazia um esforço respiratório para falar. O médico então mandou uma carta ao papa, mas ele nunca respondeu.” 

Ele alternava ao referir-se ao amigo como Bergoglio ou Francisco. Quando falava de sua vida pessoal, em geral, preferia o primeiro. “Bergoglio trabalhava como um louco. Nunca fazia festa, nunca tirava férias, não sabia o que era isso. Não só como papa, mas também na Argentina. Não sei como ele resistiu tanto tempo [nesse ritmo] com uma saúde tão debilitada.” 

 

Tivemos um novo encontro às 8h30 de quarta-feira na Porta Sant’Anna, uma das entradas da lateral direita do Vaticano. Para assistir à missa que marca o início do conclave, era preciso passar por uma série de revistas na praça de São Pedro. Mas a entrada lateral, reservada só para membros da Cúria, dispensava essa formalidade. O simples fato de entrar com Sánchez Sorondo parecia ser aval para que as portas se abrissem. 

Passamos pelo primeiro corredor de colunas projetadas por Gian Lorenzo Bernini, de onde se podia observar sua perspectiva: quando se está no meio do corredor, todas as colunas são visíveis. Não havia ninguém ali além da guarda suíça. No caminho, encontramos alguns cardeais indo em direção à basílica, já em modo conclave — sem comunicação com o mundo. Passamos pela Scala Regia, uma escada suntuosa dentro do Palácio Apostólico, até chegarmos à Visão de Constantino, escultura também projetada por Bernini em homenagem ao imperador que cessou a perseguição aos cristãos. Na imagem, Constantino olha em direção a uma cruz. Ao lado dela, está escrito In Hoc Signo Vinces — por este sinal conquistarás, ele traduz, explicando a história por trás da pedra. 

Andamos mais um pouco pelos corredores até chegarmos à basílica, por uma entrada lateral que desembocava pouco antes da Pietà.

Passamos por outros tantos cardeais que se deslocavam para buscar sua mitra, um adorno branco para a cabeça que sinaliza o alto grau de hierarquia — bispos, arcebispos, cardeais e o papa a usam. Estavam, a maioria, sorridentes e cumprimentavam dizendo buongiorno!. Quando chegamos perto do altar, havia uma área de cadeiras reservadas à alta cúpula da Igreja, à direita; e às autoridades, como embaixadores e membros do governo, à esquerda. Nos despedimos ali, quando me dirigi às cadeiras mais distantes, destinadas à população em geral. Sánchez Sorondo usava a batina preta de sua ordem, uma faixa vermelha e um solidéu na cabeça, parecido com uma quipá comum aos judeus. Ainda era cedo, mas ele estava ansioso. Nos espaços recônditos da basílica, onde a elite da Cúria se reunia naquele momento e onde ele podia circular livremente, parecia haver muito o que conversar.

 

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