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    Equipe médica no aeroporto de Yinchuan, na China - Wang Peng / Xinhua

questões epidemiológicas

Contágio rápido e silencioso: a matemática do coronavírus

Doença pode ser transmitida por pessoas infectadas e sem sintomas; para epidemiologista de Harvard, perspectivas globais são preocupantes, mas no Brasil, é mais provável contrair sarampo

Amanda Rossi | 31 jan 2020_17h25
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Um vírus que se espalha rápido, pode ser transmitido sem que o doente apresente os sintomas e atingiu 25 países em apenas um mês. Com características assim, o coronavírus superou os nove mil casos, virou epidemia na China e obrigou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a decretar emergência global de saúde. A pedido da piauí, o epidemiologista Marc Lipsitch, diretor do Center for Communicable Disease Dynamics (CCDD), da Universidade de Harvard, analisou números que ajudam a entender o novo vírus. Segundo Lipsitch, uma pessoa infectada transmite o coronavírus para outras duas ou três pessoas, numa média estimada. No vocabulário científico, é o chamado número reprodutivo, recém-calculado entre 2,2 e 3,3, a depender da metodologia utilizada. Isso significa que é um vírus muito contagioso. 

Quatro vezes mais contagioso, porém, é o sarampo. Uma pessoa com sarampo pode transmitir a doença para outras treze pessoas, o que torna a vacina tão importante. “O sarampo é a doença infecciosa mais contagiosa que nós conhecemos – pelo menos, entre as doenças mais sérias. É claro que há muito mais chance de um brasileiro pegar sarampo nos próximos meses do que de pegar o coronavírus. Mas tanto o sarampo como o coronavírus representam problemas sérios [de saúde pública]. Não há razão para tomar ações apenas contra um ou contra outro”, defende Lipsitch. No ano passado, o Brasil registrou cerca de 16 mil casos de sarampo – contra nenhum caso em 2016 e 2017. 

O coronavírus “pode estar prestes a se tornar uma epidemia global”, ou seja, uma pandemia, declararam os cientistas Gabriel Leung e Joseph Wu, da Universidade de Medicina de Hong Kong, em apresentação feita em 27 de janeiro. Lipsitch, que já colaborou com Leung em outros estudos epidemiológicos, não esconde a preocupação: “O cenário mais otimista é que, na China, a epidemia comece a ficar sob controle e, nos outros países, a triagem [de passageiros vindos da China] seja efetiva o suficiente para limitar o número de transmissões internas. Como o que aconteceu com a SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), mas muito maior. É o melhor que podemos esperar, embora ainda seja algo terrível. Um cenário mais preocupante, mas plausível, é que a epidemia decole em outros países.” 

 

Há um mês, o número de casos do coronavírus cresce exponencialmente. Em 20 de janeiro, a China havia confirmado 278 casos. Passados quatro dias, em 24 de janeiro, o número tinha triplicado, chegando a 916 casos. Seis dias depois, em 30 de janeiro, o novo número foi multiplicado por dez, ultrapassando 9,7 mil casos confirmados. Mais de 99% deles estão na China – que acompanha outros quinze mil pacientes suspeitos. A China concentra todas as mortes registradas até agora, mais de duzentas. No Brasil, há apenas casos suspeitos. Os dados estão sendo levantados pela Universidade Johns Hopkins. O contágio ocorre pelo ar ou por contato com objetos contaminados por gotículas de saliva ou catarro – por causa de tosse e espirros. A doença afeta o sistema respiratório e pode provocar pneumonia, com sintomas como febre, tosse seca e dificuldade de respirar. Como existem outros tipos de coronavírus, o vilão da vez é também chamado de novo coronavírus ou coronavírus de Wuhan, cidade chinesa onde a epidemia começou.

Tão contagioso quanto o novo coronavírus foi a SARS, também causada por um coronavírus, que gerou uma epidemia na China, entre 2002 e 2003. O número reprodutivo da SARS também fica em torno de três, mas a quantidade de casos foi menor – oito mil ao longo de pouco mais de um semestre. “E não há sinal de que o ritmo de crescimento [do novo coronavírus] vá diminuir”, afirma Lipsitch. O risco de vida oferecido pelo novo coronavírus, por outro lado, não parece ser tão elevado. Por ora, em torno de 2% das pessoas infectadas morreram. É mais que o H1N1, que não chega a 1%. Já na epidemia de SARS, o percentual se aproximou de 10%. 

Ainda é cedo para saber, com certeza, a letalidade do novo coronavírus, segundo Lipsitch. Tanto o número de casos quanto  o de mortes pode estar subestimado, prejudicando qualquer tentativa de cálculo nesse momento. Com relação ao número de mortes, o pesquisador ressalta que muitas pessoas que hoje estão apenas na estatística de contaminados, recebendo cuidados no hospital, podem acabar morrendo – principalmente nessa fase inicial e crescente da epidemia. De qualquer forma, diz o epidemiologista de Harvard, “o novo coronavírus parece ser um pouco menos letal que a SARS”.

A menor letalidade do vírus é uma boa notícia para quem estiver infectado, mas não necessariamente é algo positivo do ponto de vista da saúde pública. Como definiu o CCDD de Harvard, a severidade de uma doença contagiosa é uma “faca de dois gumes”. Quando uma doença é severa, como o ebola, é mais fácil identificar quem está doente, isolá-lo e tratá-lo, diminuindo as chances de contágio. Já doenças com sintomas mais leves, que geram menos internações e matam menos, podem fugir do controle das autoridades de saúde. É o caso da influenza. Uma de suas variações, a gripe espanhola de 1918, contaminou centenas de milhões de pessoas e matou dezenas de milhões. O nível de contágio do ebola e da influenza é semelhante. A severidade da doença faz com que o número de vítimas seja tão díspar.

O coronavírus no mundo:

Fonte: Universidade Johns Hopkins

 

Na tentativa de conter o avanço do vírus, a China está implementando a maior política de quarentena já vista na história. Desde 23 de janeiro, ninguém sai e ninguém entra na megalópole de Wuhan, epicentro da epidemia. Equipes de saúde vestidas com proteção dos pés à cabeça levam para o isolamento quem apresenta sintomas da doença. É uma distopia em escala chinesa. Wuhan tem 11 milhões de habitantes, tanto quanto São Paulo, a maior cidade do Brasil. É como se as saídas das Marginais Pinheiros e Tietê fossem bloqueadas, os aeroportos de Guarulhos e de Congonhas fechassem e a Avenida Paulista silenciasse. “Eu não conheço nenhum outro exemplo de uma operação de quarentena tão massiva”, diz Lipsitch.

A palavra-chave para lidar com doenças infecciosas é “controle” – ou seja, como interromper o ciclo de contágio. Na matemática da epidemiologia, o controle acontece quando o número reprodutivo da doença é reduzido a menos de um. Com 0,5, por exemplo, haverá apenas um novo contágio a cada dois doentes, fazendo com que a quantidade de casos diminua paulatinamente. No caso do sarampo, isso só ocorre com uma cobertura vacinal extremamente alta, em torno de 95%. Uma pequena queda nesse percentual pode gerar novos surtos da doença, ou seja, picos de casos concentrados em determinadas regiões, como tem acontecido em partes do Brasil desde 2018. 

Para uma doença como o coronavírus, seria preciso que 67% da população com risco de exposição à doença fosse imunizada, de acordo com o epidemiologista de Harvard. Esse percentual equivale a duas em cada três pessoas da população. Na China, país mais populoso do planeta, seria preciso vacinar mais de 900 milhões de pessoas – quatro vezes e meia a população do Brasil. Como (ainda) não existe vacina para o coronavírus, outras medidas de controle precisam ter eficiência prática equivalente a essa taxa de imunização. 

É o que o regime chinês está tentando fazer com a quarentena forçada. Além de Wuhan, outras dezesseis cidades localizadas na mesma província, Hubei, foram bloqueadas. São mais de 50 milhões de pessoas impedidas de sair de suas cidades – três vezes o número de paulistanos e cariocas, juntos. A quarentena é por tempo indeterminado.

Há uma variável silenciosa que pode dificultar a estratégia de contenção do novo coronavírus, baseada em quarentena e isolamento: a capacidade de transmissão da doença por pessoas que, embora infectadas, não apresentam sintomas. São duas situações possíveis: pessoas infectadas que nunca vão desenvolver a doença, só transmiti-la, ou pessoas que manifestam sintomas tardios, depois da fase de transmissão do vírus. 

No caso do coronavírus de Wuhan, já há relatos de pessoas que transmitiram a doença mesmo sem apresentar sintomas. Isso não ocorreu com a SARS. “Eu não me lembro de nenhum caso de transmissão de SARS antes da manifestação dos sintomas. Com o coronavírus, nós já soubemos de casos na China e na Alemanha”, lembra Lipsitch, que também estudou a SARS. Por isso, considera “a dificuldade no controle do novo coronavírus mais preocupante do que era na SARS”. 

Os cientistas ainda não sabem se a transmissão do novo coronavírus por pessoas sem sintomas é frequente ou não. Pode até ser algo raro. Se for comum, será muito mais difícil conter a epidemia na China e evitar que se torne uma pandemia. Enquanto um grupo de pessoas está em quarentena, outro pode estar espalhando o vírus sem que ninguém – nem o próprio infectado – saiba. Quanto mais discreta uma doença, mais difícil de rastreá-la e contê-la. O grau de discrição do coronavírus de Wuhan é uma das principais incógnitas atuais para os cientistas. Para Lipsitch, fundamental agora é saber com que frequência o vírus é transmitido antes da aparição dos sintomas. “Não consigo pensar em nada mais importante para saber neste momento”, afirma Lipsitch.


O coronavírus de Wuhan é um novo membro de uma família de vários vírus que provocam infecções respiratórias e podem afetar animais ou humanos. Foi  apelidado pelos cientistas como 2019-nCOV – “2019” faz referência ao ano em que a doença foi identificada, “n”, de “novo” e “COV”, uma abreviação de coronavírus. Análises do genoma do vírus, concluídas rapidamente por cientistas chineses e disponibilizadas para toda a comunidade científica, indicam que o vírus foi introduzido em humanos por animais infectados, em novembro ou dezembro de 2019. “A semelhança dos vírus [encontrados em pessoas infectadas] sugere que tenha havido apenas uma ou um pequeno número de introduções a partir de animais”, informou o Center for Communicable Disease Dynamics, de Harvard, em sua conta no Twitter. A partir daí, a doença começou a se espalhar diretamente entre seres humanos, sem necessitar da presença de um animal na cadeia de transmissão. 

Os casos começaram a chamar atenção em 29 de dezembro de 2019, quando um hospital em Wuhan atendeu quatro pessoas com pneumonia, segundo o comitê de investigação epidemiológica do coronavírus criado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) da China. Todos eram trabalhadores do Mercado de Peixes e Frutos do Mar Huanan. Em 31 de dezembro, um alerta epidemiológico foi emitido pela autoridade de saúde local e, em 1˚ de janeiro, o mercado foi fechado. Amostras ambientais do Mercado de Wuhan, analisadas posteriormente, constataram a presença do novo coronavírus.

A hipótese levantada a princípio era de que o vírus estivesse em um animal vendido pelo Mercado Huanan – com uma oferta muitoalém de peixes e frutos do mar, incluindo aves vivas e caças diversas – e acabou contaminando humanos. Mas, “apesar de uma extensa pesquisa, nenhum animal do mercado foi identificado como a possível fonte de infecção”, comunicou o CDC chinês. Outra possibilidade é que o Mercado Huanan não esteja ligado à origem da doença, mas tenha sido o primeiro local onde ela se proliferou. Um estudo publicado na revista científica The Lancet, em 24 de janeiro, analisou os 41 casos de infecção por coronavírus que haviam sido atendidos em hospitais de Wuhan até 2 de janeiro – todos com quadro de pneumonia. Dois de cada três haviam estado no Mercado Huanan. O primeiro caso registrado, no entanto, não esteve no mercado. Seus sintomas começaram em 1˚ de dezembro.

O elo entre esse primeiro paciente e os demais é desconhecido. “Ninguém da sua família teve febre ou outro sintoma respiratório. Não foi encontrado nenhuma ligação epidemiológica entre o primeiro paciente e os casos posteriores”, explica o estudo. Os casos seguintes só começaram a apresentar sintomas dez dias depois. Eram três pacientes, dois dos quais também não tiveram contato com o Mercado Huanan, ainda segundo o estudo publicado na The Lancet. Depois disso, outras pessoas começaram a apresentar sintomas no dia 15 de dezembro. Entre essa data e 20 de dezembro, foram dez novos casos, todos com relação com o Mercado Huanan. A partir daí, o vírus começou a ganhar escala.

“Por um lado, nós não revelamos [a informação] a tempo”, disse o prefeito Zhou Xianwang em entrevista para a televisão estatal, em 27 de janeiro. “Como [chefe do] governo local, quando eu recebo a  informação, só posso divulgá-la depois de ser autorizado”, acrescentou o político, que foi criticado pela demora para tomar providências. Na entrevista, o prefeito colocou à disposição seu cargo e o do secretário do Partido Comunista de Wuhan, Ma Guoqiang. “Nossos nomes viverão na infâmia, mas enquanto [nosso trabalho] for útil para o controle da doença e para a segurança das pessoas, eu e o camarada Ma Guoqiang assumiremos qualquer responsabilidade.”

No dia anterior, o prefeito disse  à imprensa que 5 milhões de pessoas haviam deixado a cidade antes do decreto de quarentena, e que 9 milhões haviam ficado – conta que não fecha, já que a população oficial de Wuhan é de 11 milhões de pessoas. De qualquer modo, “a quarentena de movimentos [na província de Wuhan] teria efeitos limitados”, opinaram os cientistas Gabriel Leung e Joseph Wu. Os pesquisadores traçaram cenários para a evolução da doença em outras regiões da China, com e sem quarentena em Wuhan. As curvas apresentadas são as mesmas: o número de casos em outras regiões da China começa a crescer em meados de março e atinge o pico no final de abril. 

Wuhan é um eixo de transporte importante na região central da China, com grande afluxo de chegadas e saídas para diversos pontos do país. Usando a média de passageiros transportados por dia a partir de Wuhan, Leung e Wu estimaram que mais de mil pessoas infectadas deixaram a cidade antes da quarentena. A maior parte delas teria se locomovido de trem. Nas cidades de destino, o coronavírus já teria iniciado novos ciclos de transmissão. Em outras palavras, não era mais preciso ter estado em Wuhan para contrair – e transmitir – o vírus. A região mais impactada, preveem os pesquisadores, seria a cidade de Chongqing, também no Centro da China, a mais de 800 quilômetros a Oeste de Wuhan. Com 30 milhões de habitantes, a megalópole de Chongqing é a cidade que mais recebeu passageiros vindos de Wuhan às vésperas do feriado do Ano-Novo chinês. Em seguida, o maior impacto seria em Shangai e em Pequim. 

“A disseminação do vírus de pessoa para pessoa já está presente em todas as maiores cidades chinesas”, acreditam os cientistas. Mas, segundo Lipsitch, da Universidade de Harvard, ainda é difícil dizer se o contágio será, em outros lugares, tão rápido e silencioso quanto tem sido na região de Wuhan. “As estimativas sobre a transmissão do novo coronavírus mudam enquanto nós estamos conversando. Não é possível dizer mais do que isso, porque o trabalho ainda está em curso”, pondera. Se há algo que pode gerar otimismo na nova epidemia de coronavírus, é a rápida ação de cientistas em diversas partes do mundo, colaborando entre si. “A ciência está se movendo muito rapidamente. Uma melhor compreensão dos dados está em fluxo”, afirma Lipsitch.

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