Pouco depois de o corpo do guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda ter sido sepultado, na tarde de 11 de julho – uma segunda-feira –, a farmacêutica Francielle Sales da Silva chegou à Delegacia de Homicídios de Foz do Iguaçu, no Oeste do Paraná, para prestar depoimento na condição de testemunha. Ela é a mulher do policial penal Jorge Guaranho, que abriu fogo contra Arruda quando este comemorava seu aniversário de 50 anos com uma festa com temática do Partido dos Trabalhadores (PT). Ao longo de 29 minutos, Francielle Silva apresentou sua versão, que contrastou em pontos-chave com as declarações de outras testemunhas. O depoimento da farmacêutica foi decisivo para que a polícia descartasse que o homicídio tenha sido cometido por motivação política. Essa classificação não implicaria consequências jurídicas para o processo – já que o ordenamento jurídico brasileiro não tem um tipo penal específico para crimes de motivação política. Mas o reconhecimento teria um valor simbólico e, para a família, traduziria mais efetivamente as circunstâncias em que o crime foi cometido. O Ministério Público do Paraná (MP-PR) pediu novas diligências.
Em depoimento gravado em vídeo – a que a piauí teve acesso –, Francielle Silva disse que, na noite de sábado (9), ela, o marido e o filho de dois meses de idade participaram de um churrasco de confraternização realizado após um jogo de futebol. Depois de saírem do evento, Guaranho teria decidido fazer uma ronda na sede da Associação Recreativa Esportiva de Segurança Física de Itaipu (Aresf), da qual é sócio e que fica a cerca de 700 metros do local onde era realizado o churrasco. Segundo ela, no carro, o marido ouvia uma música que fazia alusão indireta ao presidente Jair Bolsonaro (PL). Ela afirmou que o som irritou pessoas que estavam na festa e que, segundo ela, ameaçaram o casal.
“Acho que o pessoal [da festa] tinha desligado a música pra cantar parabéns. Eu não sei, porque não tinha música alta. Aí, um cara gritou lá de dentro: ‘Quem é você, cara, para estar com essa música desse filho da puta aqui?’ Daí, meu marido fez a volta e falou: ‘Bolsonaro mito!’ Aí, ele [Arruda] ficou muito irritado, começou a gritar, pegou um monte de pedra, de terra, e jogou, acertou no meu bebê, daí eu protegi meu bebê, que tava fora do bebê-conforto”, relatou ela. “Eu abri a porta e eles começaram a falar que tinha policial, que não sei o quê. Eu pensei que eles iam atirar, eu abri um pouquinho a porta e falei: ‘Por favor, moço! Eu estou com o meu bebê.’ E comecei a chorar. Meu marido acelerou o carro e foi”, acrescentou. Adiante, uma das delegadas pergunta o porquê de Guaranho ter voltado à festa, posteriormente. “Pela agressão. Agressão que nós sofremos, né?”, justificou.
De acordo com o inquérito – a que a piauí teve acesso – oito testemunhas apresentaram visão divergente. Todas disseram que o policial penal já chegou provocando e ofendendo os convidados. “Nesse momento [em que Guaranho manobra o carro], quem está na frente é o Marcelo [Arruda]. Eu estou olhando, atrás dele. Esse cara baixa o vidro e fala: ‘PT lixo! Lula ladrão! Bolsonaro Mito!’”, relatou a mulher de Arruda, a policial civil Pamela Suellen Silva, em depoimento à Polícia Civil. Depois que o marido arremessou terra contra Guaranho, ela viu que o invasor estava armado e interveio. “Nesse momento, eu vi a arma e me identifiquei: ‘Aqui é polícia civil, abaixa a arma, abaixa a arma’”, disse.
Outro depoente, Wolfgang Vaz Neitzel, relatou que cuidava da música da festa quando percebeu a movimentação em frente ao salão. “Ele gritou: ‘Bolsonaro mito!’, e eu baixei o som (…) A esposa dele [Guaranho], que estava dentro do carro, falou [ao marido]: ‘Não faça merda! A gente está aqui!’”, relatou. Segundo seis testemunhas, Guaranho teria ameaçado voltar. “As últimas palavras dele, eu me recordo muito bem: ‘Eu vou voltar para matar todo mundo!’”, narrou Neitzel. “Ele [Guaranho] fala assim: ‘Eu vou voltar, eu vou acabar com todos vocês’”, relatou Pamela.
A mulher do policial penal não mencionou as ameaças em que o marido teria prometido voltar à festa para “matar todo mundo”, como relataram as outras testemunhas. A farmacêutica também não detalhou como teria sido atingida pela terra arremessada por Arruda, se ela estava no banco traseiro do carro, atrás do condutor e com o vidro fechado. Outra inconsistência diz respeito ao som: ela não explicou como os convidados da festa teriam ouvido a música, se o carro da família “não tem alto-falante alto”. “[O carro] é um Creta 2022. O som é original do carro. Não tem, assim, um volume exorbitante. Tanto que eu estava com o meu bebê atrás”, contou Sales da Silva.
Imagens gravadas por uma câmera de segurança voltada à área externa da Aresf mostram que o carro dirigido por Guaranho estacionou em frente ao salão e permaneceu por sete segundos. Em seguida, o policial penal começou a manobrar o veículo, para fazer o retorno. Pela gravação, é possível que ele tenha começado a gritar de dentro do carro, e o estacionado novamente, com a janela do motorista de frente para a entrada da festa. Ele gritou mais uma vez e, em seguida, Arruda saiu do prédio, pegou um punhado de terra de um canteiro lateral e jogou contra o carro de Guaranho. O policial penal, então, sacou a arma e apontou contra Arruda. Nesse instante, a mulher de Arruda, Pamela Silva, apareceu e fez um gesto, como quem pede calma. A porta traseira se abre, mas Guaranho arranca com o carro.
Outro ponto dissonante diz respeito ao fato de Guaranho ter tido ciência previamente de que no salão da associação transcorria uma festa com temática do PT. Em pelo menos três pontos ao longo do seu depoimento, a mulher do policial penal nega que o marido soubesse da confraternização alusiva ao PT e atribuiu o incidente a “um acaso”. [Quando chegamos] eu falei pra ele: ‘Parece que tem um evento, parece que tem um aniversário.’ Ele falou: ‘Será?’”, relatou Sales da Silva. Em outro ponto do depoimento, uma delegada questiona novamente se Guaranho sabia “que tinha essa festa temática do Lula”. “Não, ele não sabia. Foi um acaso”, respondeu Sales da Silva.
Entretanto, outra testemunha, Márcio Jacob Muller Murback, confirmou à polícia que Guaranho sabia da festa. Ele estava no churrasco do futebol, quando abriu em seu celular imagens captadas em tempo real pelas câmeras de segurança da Aresf, que podem ser acessadas remotamente. “Eu estava próximo à churrasqueira, com o Guaranho, ele estava atrás de mim. Eu abri, fui ver as imagens, alguma coisa, que era de costume. E ele viu, só pode ter visto, porque ele olhou e falou: ‘É na Aresf?’.Falei: ‘Sim.’ E ele saiu e continuou fazendo as coisas dele. Permaneceu normal, fazendo churrasco, tomando cerveja”, disse Murback, que é um dos diretores da Aresf. Questionado sobre o que era possível ver nas imagens, ele respondeu: “A sala de jogos e, aí, aquela imagem que tem de frente, que aparece a mesa, que aparece o Lula, aquela fita do Brasil. Essa imagem que foi vista.”
Após sair da associação arrancando com o carro, Guaranho dirigiu até sua casa, onde deixou a mulher e o filho. Ele nem chegou a descer do automóvel e já voltou para a festa. “Quando ele tava na frente de casa, eu falei: ‘Por favor, vida, pelo nosso filho, não volta lá!’. Ele falou bem assim: ‘Vida, você não viu o tanto que eles ameaçaram, que eles falaram do nosso filho?’ Eu falei: ‘Por favor, vida!’ Ele falou: ‘Não, eu vou pelo menos tirar satisfação com ele, porque ele fez isso, de tacar pedra, tacar as coisas na minha cara, e eu não fiz nada pra ele’”, relatou.
A vigilante Daniele Lima dos Santos, que fazia rondas nos arredores da Aresf, relatou que viu Guaranho voltando à associação e disse que teve que “jogar” sua moto para o lado, porque o condutor estava em alta velocidade e não dava mostras de ter intenção de parar. Com o policial penal já no local da festa, ela relatou ter ouvido “aqui é Bolsonaro!”, seguido de palavrões. Na sequência, Santos ouviu os tiros. Segundo a mulher da Arruda, antes de invadir novamente a festa, Guaranho ainda ameaçou o porteiro da associação.
“Ele [Guaranho] falou assim: ‘Abre o portão.’ O caseiro falou: ‘Não vou abrir o portão, aqui é uma festa particular.’ Ele falou assim: ‘Você quer ir também?’”, relatou Suellen Silva. “Quer ir”, neste contexto, significa “quer ser morto”.
Imagens das câmeras de segurança mostram que Guaranho, depois de descer do carro, sacou a arma. Ainda do lado de fora, Suellen Silva tentou dissuadi-lo. “Eu falei: ‘Cara aqui é polícia! Abaixa a arma, abaixa a arma!’ Com a funcional [na mão]”, contou. No salão, Arruda também empunha sua arma, mas Guaranho dispara, atingindo-o na perna. O policial penal entra e, quase à queima-roupa, dispara mais uma vez. Suellen Silva, então, consegue empurrar o invasor. Mesmo baleado, Arruda reage, atirando contra Guaranho, que é atingido por três disparos. Ao ser socorrido, o guarda municipal manifestou preocupação com a família.
“As últimas palavras que ele me disse foi: ‘E o Pedro?’ Eu disse: ‘O Pedro está com a Ana”, contou Neitzel. Pedro é o nome do filho de Arruda, que tinha 40 dias na noite do assassinato.
O inquérito foi concluído pela Polícia Civil no dia 14 de julho, com o indiciamento de Guaranho por homicídio qualificado por motivo torpe e por causar perigo comum. Na entrevista coletiva concedida logo após o anúncio da conclusão do inquérito, a delegada Camila Cecconello disse não ter encontrado provas de que o crime tenha sido premeditado pelo indiciado. “É complicado dizer que ele premeditou, porque a primeira vez que ele vai ao local, ele vai para provocar a vítima. Quando ele retorna, parece que é algo mais movido pelo impulso do que ele premeditou”, avaliou.
A delegada também descartou que o assassinato tenha tido motivação política. Em razão disso, Cecconello anunciou, na ocasião, que por falta de elementos o caso não seria enquadrado como crime de ódio, político ou contra o estado democrático de direito, por falta de elementos para isso.
“Para enquadrar em crime político, tem alguns requisitos, como impedir uma pessoa de exercer seus direitos políticos. É complicado dizer que foi motivado, ou que a causa foi, que esse crime ocorreu porque esse autor queria impedir o exercício dos direitos políticos daquela vítima. A gente analisa que, quando ele chegou ao local, ele não tinha a intenção de efetuar os disparos, mas que ele tinha intenção de provocar”, explicou.
A pedido do MP-PR, no entanto, a Justiça determinou novas diligências na investigação. O promotor Tiago Lisboa Mendonça pediu que sejam encaminhadas à perícia um aparelho gravador digital (DVR) do sistema de câmeras da Aresf e o celular de Guaranho, ambos apreendidos pela polícia. Segundo o promotor, a partir da análise do DVD será possível identificar todos os dispositivos que acessaram remotamente as imagens captadas em tempo real pelas câmeras da associação. Já a perícia no celular pode revelar o teor das conversas que o assassino manteve no dia e antes do crime.
“A extração integral dos dados contidos no aparelho celular do agressor, com posterior análise pelas equipes policiais, permitirá acesso, como já dito, à integralidade das informações e dados ali constantes. (…) Também permitirá acesso a todas as conversas travadas pelo agressor, sejam privadas ou em grupos, em todas as redes sociais que eventualmente este participasse”, consta do pedido do promotor.
A Justiça também aceitou o pedido do MP-PR, para que a polícia tome novo depoimento do tio da mulher de Guaranho, Vaguino Aparecido Guimarães. Ele estava no churrasco com o acusado, antes de o crime ter sido cometido. Segundo a manifestação do promotor no processo, o objetivo do pedido é que Gonçalves “esclareça quem eram os outros 02 (dois) associados da Aresf que se encontravam no churrasco de confraternização que era realizado na Assemib, posto que em seu depoimento (minuto 21:20), deixou de informar por ter sido interrompido”.
Em sua manifestação, o promotor também mencionou outra morte, que pode ter relação com caso: o suicídio do vigilante Claudinei Coco Esquarcini. Imagens de uma câmera de segurança mostram que, no último domingo (17), ele se atirou de um viaduto em Medianeira, a cerca de 60 km de Foz. Lisboa Mendonça informa, em sua manifestação, que o celular do vigilante foi apreendido e pede para que o aparelho seja periciado. Procurados pela piauí, o MP-PR e o promotor Tiago Lisboa Mendonça não se pronunciaram.
O advogado Daniel Godoy, que representa a família de Arruda, disse que a determinação de novas diligências vai ao encontro dos pedidos feitos por ele e deve reforçar a motivação do crime. “A motivação política está comprovada. Para nós, da defesa do Marcelo [Arruda], o que é incompreensível é o porquê de a autoridade policial ter desprezado, até agora, os elementos que confirmam essa motivação. Não é questão de qualificadora, de aumentar a pena, até porque o Brasil não tem tipo penal para enquadrar dessa forma. É que a motivação é um elemento-chave que compõe as circunstâncias de um crime. A questão política é um componente que esteve na motivação subjetiva que levou o Guaranho a cometer o ato criminoso”, disse Godoy.
Nesta quarta-feira (20), o MP-PR denunciou Guaranho à Justiça por homicídio duplamente qualificado – por motivo fútil e por perigo comum (colocar outras pessoas em risco com a ação criminosa). Diferentemente do entendimento da Polícia Civil, no entanto, os promotores reconheceram que o assassinato foi motivado por “preferências político-partidárias antagônicas”. A denúncia é assinada pelos promotores Luís Marcelo Mafra Bernardes da Silva e Tiago Lisboa Mendonça. O policial penal, que foi baleado por Arruda, deixou a UTI e está na enfermaria.
No documento, a promotoria apontou que, após ter visto as imagens da festa, Guaranho foi à associação “inconformado com a explícita apologia ao principal adversário (LULA) do pré-candidato de sua preferência (BOLSONARO)” e que Guaranho, então, “deu causa ao que seria o início do enredo macabro, provocando indistintamente todos os convivas (que não conhecia) com expressões que denegriam o opositor (‘Lula ladrão’, ‘PT lixo’) e exaltavam o de sua preferência (‘Bolsonaro Mito’, “aqui é Bolsonaro’)”.
Os promotores registraram ainda que, após retornar à festa, Guaranho começou a efetuar os disparos, agindo “dolosamente e imbuído da mesma fútil motivação, dizendo ‘petista vai morrer tudo’”. Em entrevista coletiva realizada na tarde desta quarta-feira, o promotor Bernardes da Silva destacou o depoimento da vigilante, que relatou que assim que voltou à festa, Guaranho gritou “Aqui é Bolsonaro!”, antes de começar a atirar. Na avaliação do promotor, isso reforça a motivação política do crime.
“O que nos garante que houve esse link entre o primeiro e o segundo momento. Não houve quebra, não houve cisão em relação a íntima motivação do crime. Por isso que nós nos convencemos de que se trata de uma motivação fútil e não torpe”, disse. “A denúncia está lastreada de maneira bastante detalhada. Elementos de convicção meticulosos foram captados ao longo da investigação. A partir daqui, estamos deflagrando a persecução penal”, observou Bernardes da Silva.