Foi necessário usar o Google Tradutor para que a conversa tomasse sentido. O taxista paulistano Bruno Auciello tentava entender por que aquele jovem atleta etíope, medalhista paralímpico, havia deixado de treinar logo após chegar ao pódio nos Jogos do Rio em 2016, e vivia circulando em busca de sinal de wi-fi perto do ponto de táxi. Vertido do inglês ao português pelo aplicativo, Tamiru Demisse explicou tudo o que lhe faltava. O corredor que conquistou a medalha de prata nos 1 500 metros na Paralimpíada do Rio de Janeiro agora vivia de favor no Centro de São Paulo. Não tinha quase nada: nem tênis, nem pista, nem dieta adequada, nem treinador, nem informações sobre bolsas de auxílio… Era o suficiente para levar um atleta de ponta, um dos melhores em sua categoria (para deficientes visuais), a abandonar a carreira no Brasil.
O taxista encontrava Tamiru diariamente nos arredores de seu ponto de táxi, a duas quadras de um centro de acolhida de imigrantes no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Aos poucos, por frequentarem a mesma lanchonete, Auciello soube da história de Tamiru. O meio-fundista ficou conhecido internacionalmente após sua maior vitória em 2016. Ao conquistar a medalha de prata na Paralimpíada, comemorou cruzando os punhos acima da cabeça, em protesto contra o governo de seu país. O gesto o levou a ser banido da competição pela federação etíope. Logo depois, ele alegou que “seria preso ou morto” se voltasse à Etiópia e pediu refúgio ao governo brasileiro. Tamiru tentou se estabelecer como atleta no Rio de Janeiro e em São Paulo ao longo de boa parte do ano passado, mas, sem apoio, atingira um ponto em que quase desistia.
Fã de esportes, o taxista Auciello não se conformou. Para além do aplicativo de tradução, olhou o WhatsApp do atleta e viu várias mensagens não respondidas, com convites para conhecer o Centro de Treinamento Paralímpico, na Rodovia dos Imigrantes, a 15 quilômetros dali. Eram colegas atletas que, individualmente, tentavam ajudá-lo. “Mas eu não tinha estímulo, nem sabia como responder”, contou Tamiru à piauí, em um inglês carregado, relembrando como fez para voltar às pistas. O encontro com o taxista foi fundamental.
Auciello se ofereceu para levar o paratleta e seu colega Megersa Bati, também atleta etíope, até o centro de treinamento (sem cobrar a corrida). “Eles estavam desconfiados, mas aos poucos entenderam que eu queria ajudar. Comecei a conversar com aquelas pessoas ligadas ao centro paralímpico pelo WhatsApp dele e marcamos um dia para levá-los até o centro”, disse Auciello, há três anos no ponto de táxi perto do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes, o Crai. “Mostrei ao Tamiru que eu queria ajudar e as coisas foram se encaixando.”
Com a medalha de prata paralímpica no bolso (conquistada com uma marca que lhe renderia o ouro na Olimpíada), mas sem dinheiro nenhum depois dos Jogos, o atleta de 24 anos viveu durante sete meses em um albergue no Rio de Janeiro, junto com Bati. Em abril do ano passado, decidiram mudar-se para São Paulo, ao saber da existência do Crai. Os imigrantes encontraram ali, no centro de referência, um lugar para passar a noite, mas ainda estavam longe de terem boas condições para treinos. Pouco tempo depois, Bati desistiu da carreira de atleta.
Na peregrinação entre Rio e São Paulo, Tamiru se alimentou mal, ficou mais fraco e passou a sofrer com lesões crônicas. Agora, depois da ajuda do taxista Auciello e na nova fase no centro paralímpico, a meta é voltar à antiga forma física. Ele retomou a rotina de exercícios: atualmente, corre entre 10 e 15 quilômetros diários, ou no centro paralímpico da Imigrantes, ou no Parque Ibirapuera. Parte do treino é feito em uma academia, como fortalecimento muscular. “Como ele ficou sem correr durante alguns meses, o trabalho é principalmente para colocar em ordem a parte física”, comentou Fabio Breda, técnico da seleção nacional de provas de fundo e meio-fundo.
Mesmo em fase de recuperação, o medalhista etíope manteve as boas marcas e tem treinado, desde agosto, com a elite dos atletas paralímpicos brasileiros. Sete meses depois de quase desistir, finalmente voltará a disputar uma prova oficial – dentro de duas semanas, disputará a prova Loterias Caixa, um circuito em São Paulo.
Com o retorno às pistas e a expectativa de bom resultado, o plano de Tamiru é se naturalizar brasileiro. “Quero conquistar duas medalhas de ouro, uma na prova dos 800 metros e outra nos 1 500 metros”, contou o atleta, no alojamento da Associação Desportiva para Deficientes, no bairro Parque Jabaquara, onde passou a morar desde que começou a treinar no centro paralímpico, junto com outros sete atletas – todos do basquete ou do atletismo. A meta de Tamiru é defender a seleção paralímpica brasileira de atletismo nos Jogos Parapamericanos de 2019, em Lima, no Peru. Ele entrou com processo para se naturalizar brasileiro no mês passado, mas o prazo costuma levar até dois anos (ou quando o estrangeiro se casar).
Por ainda não ser naturalizado, o etíope – que começou a perder a visão aos 10 anos de idade e hoje enxerga parcialmente – não pode ter acesso aos recursos do Bolsa Atleta, programa de patrocínio do governo federal para esportistas. Também não consegue emprego por causa da rotina de treinamentos e por não falar português.
Adelicada situação financeira do etíope ficou evidente com a volta aos treinos. O medalhista chegou a correr apenas com sapatilhas para poupar o tênis. As sapatilhas são usadas apenas em provas de alto rendimento. São calçados duros, sem amortecedores e machucam o pé do atleta.
Ao saber da condição do etíope, a paratleta paulista Verônica Hipólito, medalhas de prata e bronze na Paralimpíada do Rio, comprou uma bolsa, roupas de treino e calçados novos. Com 18 mil seguidores no Instagram, ela publicou a história de Tamiru com uma foto em que o etíope aparece sorrindo com os presentes recebidos. “Ao fazer um protesto no final da prova, ele mostrou que seu ideal estava muito acima de qualquer medalha ou dinheiro. Fico arrepiada só de pensar. Sinto a obrigação de ajudar.”
Postada em 30 de janeiro, a publicação teve quase mil curtidas em menos de 24 horas. Com a rápida comoção dos seguidores, Verônica teve a ideia de criar um crowdfunding, para que ele pudesse receber o dinheiro em espécie – já que Tamiru não tem conta bancária no Brasil. A meta de R$ 20 mil foi estipulada pela própria atleta, calculando que o valor, dividido em dois anos, manteria o atleta em São Paulo com pouco mais de R$ 800 mensais.
Verônica lançou o financiamento coletivo em 2 de fevereiro, no site Vakinha. Colocou uma foto – não poderia ser outra, a de Tamiru com os punhos cruzados –, escreveu um texto contando a trajetória do atleta e anunciou novamente nas redes sociais. Até aqui, foram arrecadados 1 165 reais, quase 6% do valor total. O financiamento se encerra em 20 de abril.
“Tempos atrás, dei umas camisas da seleção brasileira, e ele não tirou mais. Achei que era porque ele gostava muito das cores, mas na verdade ele não tinha outras”, conta Verônica. “Então dei outras peças de roupa novas e falei que logo ele guardaria a camiseta brasileira para vestir em competições.”
Tamiru fala pouco do protesto que o levou a deixar seu país e a sua família – pais e cinco irmãos. Mas não se arrepende. “É um governo que está lá há décadas, não acredito nele”, disse, em referência ao partido Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope, no poder há 27 anos. A raiz do protesto de Tamiru – e do também atleta etíope Feyisa Lilesa, que fizera o mesmo gesto semanas antes na Olimpíada do Rio – está na expulsão de fazendeiros da etnia Oromo, da qual os atletas fazem parte, da região de Addis Abeba, a capital do país (que os Oromos, 40% dos 106 milhões de habitantes do país chamam Finfinne).
Os protestos contra a expansão da capital Addis Abeba esquentaram justamente no segundo semestre de 2016, no período dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, quando manifestações foram reprimidas violentamente pelo governo. Relatório da Human Rights Watch aponta que mais de 500 pessoas foram mortas em confrontos com as forças do governo entre 2015 e 2017.
Atualmente, Tamiru não pensa em voltar ao seu país – antes, o contrário. Quer naturalizar-se para facilitar visitas de familiares. Enquanto isso não acontece, conta novamente com a acolhida de amigos atletas. “O Tamiru é uma fera, ficamos muito próximos. Moramos juntos e nos comunicamos como dá”, disse o atleta sul-matogrossense Yeltsin Jacques, companheiro de quarto no alojamento de atletas perto do centro paralímpico, e que disputou a final dos 1 500 metros da Paralimpíada na raia ao lado do etíope. “Tamiru é muito resistente, e agora está se adaptando muito bem ao Brasil.”
Nas últimas semanas, um pouco alheio à contagem da vaquinha virtual, o etíope tem se dedicado ao retorno às provas oficiais, no Circuito Caixa. “Vai ser bom, porque apesar de medalhista olímpico, tenho pouca experiência”, contou o paratleta, em um intervalo do treino no Ibirapuera. “A Paralimpíada foi só minha segunda competição grande. Antes eu só havia corrido o torneio continental africano. Vai ser um novo começo.”
Entre um alongamento e outro no Ibirapuera, o atleta relatou o que mais o incomoda em sua atual situação. O fato de, nos dias em que não vai ao centro paralímpico, ter de treinar sozinho. “Na Etiópia, os atletas se juntam em grandes grupos e formam um batalhão de oitenta corredores, seguem todos juntos”, disse Tamiru. “É bom porque há sempre um campeão no meio, um estímulo para outros atletas.”
Para suportar a solidão, um de seus planos é aumentar a frequência das aulas de português – e assim evitar o Google Tradutor. Por enquanto, no tempo livre em São Paulo, costuma jogar futebol aos domingos, com um grupo de amigos de Bruno Auciello. Toda semana o taxista vai buscá-lo no Jabaquara e o leva até o campo, na Bela Vista. Não cobra a corrida.