Izabella Maria Lopes Furtado dos Santos foi ao dentista pela primeira vez aos 5 anos de idade. Nunca esqueceu o cheirinho do consultório. “Toda vez que voltava da creche e passava por lá, ela falava: ‘Ai, vamos ao dentista? Quero ir ao dentista pra sentir o cheirinho’”, conta a mãe da jovem, Geiza Maria Lopes Furtado dos Santos. Passou a brincar de arrancar os dentes das irmãs – e nunca mais parou. Em 2021, aos 18 anos, entrou para a Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB/USP). Como muitos brasileiros negros que estudaram em escolas públicas, ela foi beneficiada pela Lei de Cotas e se tornou a primeira de sua família a entrar para a universidade. A lei reserva metade das vagas de institutos federais e universidades para estudantes de escolas públicas. Aqueles com renda familiar de até um salário mínimo e meio por pessoa, autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI) e pessoas com deficiência, também têm direito. A lei, que completou dez anos, passará por uma revisão para redefinir critérios de acesso às universidades públicas.
Em depoimento a Caroline Almeida
Desde pequenininha eu arrancava os dentes de leite das minhas irmãs. Falava: “Fica quietinha que vou tirar seus dentes, tá bom?” Também eu mesma arrancava todos os meus. Tinha uma certa ansiedade pra eles caírem. Quando via que começavam a ficar moles, mexia, mexia, mexia. Depois que saíam, olhava, analisava os dentes de cima a baixo. Minha mãe fala que eu era uma criança um pouco estranha por gostar tanto de ver caírem os dentes.
Sempre quis ser dentista. Amo o cheirinho de consultório. Amo luva. Gosto de ficar vendo cirurgia. A biologia ali do corpo, a anatomia, a circulação, tudo. Você entende o que tá dentro de você. É um pouco estranho, mas eu gosto.
Minha mãe é costureira, e meu pai é vigilante, eles sempre me incentivaram muito. Meu pai principalmente. Sempre foi muito rígido. No sexto ano consegui passar pra segunda fase da OBMEP (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas). Medalha nunca ganhei, mas já recebi menção honrosa. No primeiro ano do ensino médio passei no CUCo, a prova de conhecimento da USP. Fui premiada. Consegui uma bolsa de iniciação científica de matemática, recebia 200 reais por mês. Durou um ano. Ajudou bastante com matemática e conhecimentos, quando prestei vestibular.
Tive ajuda do meu pai e da minha mãe até mesmo pra correr atrás do auxílio-transporte da prefeitura, dado pra quem estuda em outra cidade. Era uma luta. Um monte de papelada, de burocracia. Meus pais me davam aqueles puxões de orelha, tipo: “Não desiste. Vai atrás disso.” Na minha adolescência eu quis trabalhar, mas minha mãe falava: “Não, vai atrapalhar seus estudos.” Tive muito, muito, muito incentivo. Perto dos meus amigos daqui de Brotas (SP) sou bem privilegiada quanto a isso. De só estudar, ter a opção de me dedicar ao curso. Sentia muito dessa pressão. Quando fui prestar vestibular, por ficar muito estressada, meu cabelo até caía.
Ninguém da família do meu pai tem curso superior, nem da minha mãe. Próximo de mim, ninguém. Dos meus primos, tanto por parte de pai quanto por parte de mãe, sou a primeira a fazer.
No dia que passei no vestibular, foi minha mãe quem me contou. Quando a lista dos aprovados foi divulgada, minha mãe saiu gritando: “Você passou. Você passou. Você passou!” Eu estava dormindo com as minhas irmãs. Ela mostrou o meu nome na lista. Enquanto eu estava sentada, ela pulava com as minhas irmãs chorando. Chorei também abraçada a ela.
Sendo cotista me sinto feliz, segura e grata a essa política de inclusão. Vejo o resultado de anos de problemáticas sociais melhorando. As cotas me ajudaram porque as vagas são destinadas. Uma vaga própria pra você que está ali. Na época que me inscrevi na Fuvest, prova da USP, tinha mais 27 candidatos PPI (pretos, pardos e indígenas). Dezoito foram para a segunda fase. Nove passaram. Pouca gente tentou a cota, justamente por essa coisa social, de você falar: “Não vai ter como estudar esse ano. Vou ter que trabalhar.” Acontece muito, muito, muito, muito. As cotas são a garantia de que as minhas irmãs, os meus primos, a minha família vão ter uma oportunidade assegurada.
Mesmo com a pandemia, preferi ir pra Bauru. A USP fretou uma van pra gente fazer uma pesquisa na cidade de Boraceia. Em alguns bairros mais carentes, atendemos crianças que tinham um estado péssimo de saúde. A gente foi a uma escola onde o índice de negros era maior e a situação não era nada legal, era bem triste. Teve uma criança que quando escovou o dente começou a sangrar de tanta cárie. Falei: “Vai ser disso que eu vou atrás.”
Quero trabalhar em hospital. Não penso nem um pouco em ter clínica. Acho meio egoísmo se formar em um lugar que oferece tanta oportunidade pra você ter uma coisa só sua. Desejo retornar bastante para a sociedade. Espero entrar em muitos projetos de escola, de ONGs, em várias coisas. Espero devolver tudo isso.
Depois que me formar, quero doar bastante coisa minha para a USP – a não ser que minhas irmãs queiram. O material de odonto… O preço foi um choque pra mim. A cotação dos dois primeiros semestres, com todos os materiais, ficou em 6 mil reais. De onde tirar esse dinheiro? Um alicate, que simplesmente é pra fazer ortodontia, canais e outras coisas, serve pra abrir e isolar o seu dente, custa 102 reais.
Teve uma colega que fazia uma matéria comigo que deixou o curso por questão financeira, pelo fato de o curso de odonto ter essa lista e ser em período integral. Ela tinha 38 anos. Contou pra gente que, por ter responsabilidade com a família dela, ia abandonar o curso. Mas ela já tinha uma graduação.
Os veteranos falaram que a lista de 2022 vai ser a mais cara. Geralmente, fica entre 8 mil e 9 mil reais. Os professores falam: “Pra minha matéria, preciso de tais materiais.” Eles passam pra representante da sala que vai atrás das dentais, empresas que vendem os instrumentos que a gente usa nas aulas práticas e de atendimento à população. A representante procura em vários lugares e repassa os orçamentos para a sala.
A USP tem um projeto chamado “Instrumental para todos”. São doações de materiais de estudantes e de professores. Você usa e devolve. Pode usar durante um semestre, até um ano. O material, tipo resina, porcelana, a USP dá. A gente usa mais o que é instrumental mesmo.
A USP tem também um projeto de permanência. Oferece bolsa moradia, transporte, livros e alimentação. Tenho o de moradia, de 500 reais por mês, e alimentação, de 100 reais. Jamais poderia morar em apartamentos em Bauru, cujos aluguéis custam entre 1.000 e 1.300 reais mensais. Moro em uma república feminina, onde somos onze. Com os 500 reais da bolsa moradia, consigo pagar o aluguel da casa, que divido entre as moradoras. Por mês, o aluguel era de 390 reais. Só que teve esse reajuste no começo do ano. A gente teve um choque, porque o aluguel foi pra 4.500 reais. Tem o IPTU da casa, internet, água, luz, gás e a fatura de limpeza. O valor total que eu pago com a casa chega em uns 500, 550 reais, mas não passa dos 600.
Quando passei na faculdade, fiquei muito feliz. Mas bem atordoada também. Na minha sala, de cinquenta estudantes, deve ter entre oito ou dez pessoas que são negras ou indígenas. Sei que na faculdade algumas pessoas vão me olhar de outro jeito. Sempre tem. Com certeza pensam: “Nossa, ela tá aqui.” Ou duvidam de mim (pelo fato de eu ser negra). Mas já me libertei disso. Não tenho pressão nenhuma quanto a isso. Participo de um coletivo negro. É muito importante pra me fortalecer.