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    INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DE LALO DE ALMEIDA/FOLHAPRESS

questões de segurança

Covid-19 tira 7 mil policiais das ruas

Rio de Janeiro e Pará colocaram 3,2 mil PMs em isolamento após suspeita de contaminação

Luigi Mazza | 13 maio 2020_17h34
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De fuzil em fuzil, o coronavírus se espalhou rapidamente pelos batalhões da Polícia Militar no país. Levantamento feito pela piauí junto às secretarias de Segurança de treze estados mostra que, desde que a pandemia chegou ao Brasil, ao menos 7,3 mil policiais militares, policiais civis e bombeiros foram afastados do serviço por suspeita de contaminação. Mais da metade deles se concentra no Rio de Janeiro e no Pará, onde a situação é alarmante. Juntos, os dois estados somam hoje 3,2 mil policiais militares e bombeiros isolados, e 49 mortes pela Covid-19. Na linha de frente, policiais reclamam da falta de equipamentos de proteção e de orientações por parte do comando das corporações. Alguns estados já sofrem com falta de efetivo para fazer policiamento nas ruas, o que pode ter impacto sobre os indicadores de violência no país.

Até o começo desta semana, ao menos 69 agentes de segurança já tinham morrido de Covid-19 no Brasil. Outras mortes ainda estão sendo investigadas. Oficialmente, há 1,2 mil casos confirmados de coronavírus nos órgãos de segurança das treze unidades da federação que responderam à piauí. Mas o número real é muito maior do que esse, já que os outros catorze estados, questionados, não divulgaram informações sobre mortes e contaminações de policiais. O vírus também se disseminou rápido nas Forças Armadas. Até o final de abril, Exército, Marinha e Aeronáutica somavam pouco mais de novecentos casos confirmados de Covid-19. Hoje, são 2,5 mil casos e nove mortes.

No Rio de Janeiro, atualmente, cerca de 2,2 mil policiais militares – o equivalente a 5% do efetivo da PM no estado – estão isolados em casa, a maior parte deles por suspeita de contaminação ou por fazer parte de grupos de risco. A instituição só confirmou o diagnóstico, até agora, em 675 casos. Dez policiais morreram. Na Polícia Civil do Rio, há 72 casos confirmados e uma morte. Outras três mortes ainda estão sendo investigadas.

Diante dessa baixa inédita na PM, policiais que exerciam atividades-meio – funções não relacionadas à atividade-fim da instituição, o policiamento ostensivo – foram reincorporados à tropa. Dezenas de agentes que trabalhavam à paisana em órgãos do estado, como o Tribunal de Justiça, foram convocados de volta às ruas. “Tive que botar a farda de novo, depois de seis anos à paisana. Agora estou trabalhando mais, a escala apertou. Não tem efetivo”, contou à piauí um sargento da PM que preferiu não se identificar. Segundo ele, os policiais que estão na rua têm evitado ao máximo fazer abordagens.

“O pessoal com receio. Já vi colega que nem é de grupo de risco pedindo para ir para casa, dizendo que tem hipertensão, mas não tem nenhum atestado. Você percebe que ele tá com medo de se contaminar e levar o vírus para a família”, afirmou o sargento. Ele alega que, até agora, as medidas adotadas para conter a disseminação do coronavírus entre os policiais foram inócuas. “Cada viatura roda, por dia, com duas ou quatro equipes, em turnos de oito a doze horas. O colete e as armas são de uso coletivo, quase todo mundo bota a mão. O fuzis, principalmente, passam de mão em mão, porque são poucos. Então o colega que trabalhou de manhã, se estiver infectado, vai contaminar o que trabalha à noite.”

No começo de abril, a PM do Rio publicou um informe interno com recomendações de higiene para os policiais. Sugeriu que os cumprimentos de mão fossem trocados por continências; que, nas abordagens, os agentes evitassem tocar os documentos das pessoas; e que o volante, os assentos e as maçanetas das viaturas fossem higienizadas com álcool 70% ao fim de cada turno. Nos carros de radiopatrulha, que carregam dois policiais, o banco do carona passou a circular vazio – enquanto um policial dirige, o outro agora senta no banco traseiro. Recomendou-se que os policiais lavem as mãos sempre que houver “sujidade visível”.

A PM determinou, além disso, que os agentes que tivessem pistolas próprias poderiam usá-las durante o serviço, para reduzir assim o contato indireto entre colegas. E os policiais foram orientados a usar máscaras de proteção sempre que possível, mesmo dentro das viaturas. As máscaras, no entanto, não chegaram a todos os batalhões – assim como o álcool em gel. “Algumas unidades receberam máscaras descartáveis, que duram poucas horas. Mas todos os meus colegas estão levando máscara de casa. Eu comprei cinco que podem ser lavadas”, afirmou o sargento. “A gente está tentando se virar do jeito que dá.”

Ao menos sete unidades da federação já registraram mortes de agentes de segurança por Covid-19, desde o começo da pandemia: Rio de Janeiro, Pará, São Paulo, Distrito Federal, Alagoas, Bahia e Amazonas. A situação mais crítica é a do Pará, onde, até o começo desta semana, 34 policiais militares e cinco bombeiros tinham morrido por causa do novo coronavírus. Além disso, cerca de mil agentes estavam afastados do serviço por suspeita de contaminação – o que corresponde a pouco mais de 6% do efetivo da PM. Os dados estão sendo coletados pela Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar do Pará (ACSPA), já que nem a PM nem a Secretaria de Segurança Pública divulgam números sobre a pandemia.

Dos 39 agentes que morreram no Pará, 25 eram da ativa. Boa parte deles eram jovens, como o cabo Rômulo Rogério Ferreira da Costa, de 35 anos. Ele foi internado no dia 20 de abril num hospital particular de Belém e morreu no dia 27, vítima de pneumonia viral e síndrome respiratória aguda grave. O soldado Wilson Roberto Martel dos Santos, de 31 anos, morreu de insuficiência respiratória no Hospital de Campanha do governo estadual.

“Hoje estamos nos deparando com a falta de estrutura da nossa polícia. Nosso plano de saúde é defasado, não temos atendimento médico de qualidade”, afirmou a cabo Karla Cristina Mota de Souza, de 37 anos, presidente da ACSPA. Ela mesma foi contaminada com coronavírus e se isolou dentro de casa no final de abril. Faz vinte dias que não sai do próprio quarto. Mora com a filha de 12 anos e o pai, de 72. Ele, além de ser idoso, tem câncer de próstata em fase avançada e faz tratamento de quimioterapia há dois anos.

A policial acredita ter se contaminado no batalhão em que trabalha, em Belém. “Alguns policiais contaminados ficaram catorze dias em casa, de quarentena, e voltaram ao trabalho ainda com sintomas. Isso foi um erro. Não houve acompanhamento dos casos por parte da PM”, afirma Souza. Ela relata que, pouco antes de começar a sentir os sintomas, esteve com um subtenente de seu batalhão que acabara de voltar da quarentena. “Almocei com ele no refeitório. Ele ainda não estava 100%, não sentia o gosto da comida. Três dias depois ele foi internado às pressas no hospital de campanha do governo e morreu.” Na mesma semana em que almoçou com o subtenente, Souza começou a sentir a garganta inflamada, dores no corpo e uma forte dor de cabeça. Foi então que decidiu se isolar dentro de casa. Alguns dias depois, foi ao Batalhão de Choque da PM em Belém para fazer o teste, disponibilizado em algumas unidades da corporação. O resultado foi positivo.

A cabo já perdeu dois amigos do próprio batalhão para a Covid-19. Só na unidade dela, trinta policiais foram afastados por apresentarem sintomas da doença. No dia 23 de março, a associação que ela dirige enviou ofícios ao comando da PM e do Corpo de Bombeiros do Pará solicitando informações sobre a distribuição de EPIs – os Equipamentos de Proteção Individual – nos batalhões. Não houve resposta, segundo ela. “O primeiro lote de máscaras só chegou no dia 11 de abril, e a distribuição geral começou no dia 16. Se isso tivesse sido feito antes, o número de baixas não seria tão alto quanto está sendo agora”, diz Souza.

No último dia 7, a PM do Pará publicou uma portaria abrindo um Inquérito Policial Militar contra a cabo Karla de Souza por causa das críticas que ela fez à corporação numa entrevista ao jornal paraense O Liberal. Na reportagem, publicada no dia 1º, ela diz: “Estamos tendo baixas na nossa corporação devido a não ter sido feito um preparo do alto Comando para se precaver.” A portaria não deixa claro qual é a transgressão pela qual a cabo será julgada. No Código de Ética da PM, consta entre os motivos para abertura de processo disciplinar que o policial tenha violado, entre outras coisas, “o sentimento do dever no exercício da função” ou “a honra pessoal, o pundonor policial-militar ou o decoro da classe”.

Se for constatado que ela incorreu em algum crime ao fazer as críticas, a cabo Souza poderá ser expulsa da corporação. Ela afirma que está sendo perseguida por denunciar as condições de trabalho a que os policiais estão submetidos. Procuradas, nem a PM nem a Secretaria de Segurança Pública do Pará se posicionaram sobre as críticas de Souza.

A contaminação por coronavírus nas polícias brasileiras repete o que aconteceu em outros países. Nos Estados Unidos, o exemplo mais extremo disso se deu na cidade de Detroit, em Michigan. A cidade foi uma das mais impactadas pela pandemia, e, no final de abril, sua polícia tinha registrado três mortes por Covid-19 – entre elas, a do chefe do departamento de homicídios. Nove funcionários estavam internados. O diretor-geral da polícia foi um dos contaminados pelo vírus, mas se recuperou. O batalhão municipal conta com 2,8 mil militares e funcionários civis. No pico da contaminação, um terço deles esteve isolado em casa ao mesmo tempo, segundo reportagem publicada no jornal The New York Times.

Os indicadores de violência em Detroit começaram o ano numa curva de crescimento e se estabilizaram em março, quando os americanos passaram a adotar o isolamento social. Na primeira semana de abril, contudo, houve aumento significativo na incidência de crimes. Foram registrados oito homicídios e 27 tiroteios, a maior parte deles ligados ao tráfico de drogas. No ano passado, a média tinha sido de cinco homicídios e quinze tiroteios por semana. Esses dados sugerem que a presença reduzida de policiais nas ruas – que se deu principalmente no começo de abril – acarretou um aumento nos indicadores de violência.

Ainda não é possível afirmar se o exemplo de Detroit se repetirá no Brasil. Na maior parte dos estados, ainda não estão disponíveis as estatísticas de crimes em abril. No entanto, essa é uma possibilidade que está no horizonte. Em março, apesar do isolamento social e da quarentena decretada no final do mês, ocorreu aumento em alguns indicadores de violência. No estado do Rio, houve 372 homicídios em março – alta de 8% na comparação com março do ano passado. Esse crescimento se explica, em boa parte, pelo conflito entre facções criminosas, que se intensificou nos últimos meses. Em algumas áreas do estado, como na Região dos Lagos, os homicídios subiram até 70%.

A mesma tendência se repetiu em São Paulo. Houve aumento de 16% nos homicídios registrados no estado, na comparação entre março deste ano e março do ano passado. Foram 296 assassinatos, o maior número para um mês de março desde 2017.

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