Eram 11 horas da manhã do dia 10 de março de 2020, início da pandemia na Europa, quando o trabalhador ucraniano Ihor Homeniuk, de 40 anos, casado e pai de dois filhos menores, desembarcou em Lisboa como passageiro de um voo oriundo de Istambul. Cerca de 56 horas depois, às 18h40 do dia 12, o ucraniano sairia morto do aeroporto, após agonizar durante as dez horas seguintes a uma sessão de espancamento iniciada por volta das 8h30 daquele dia. Teve oito costelas fraturadas. Além da brutal surra de quase meia hora, provavelmente com bastão, Homeniuk foi mantido algemado durante horas de barriga para baixo, em posição que favoreceu a asfixia lenta, segundo o laudo de autópsia. Três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foram condenados pelo crime.
A entrada do ucraniano em Portugal foi negada pelo SEF às 19 horas do dia 10, depois de ele ter dito em entrevista no aeroporto, feita inicialmente com auxílio do Google Tradutor, que assinaria no dia seguinte um contrato, junto com dois colegas, para trabalhar na construção civil ou dirigir trator na agricultura – dois setores que dependem de mão de obra estrangeira. Homeniuk ficou detido para aguardar a deportação, pois não tinha visto de trabalho. Na primeira noite, sentiu-se mal e foi levado para um hospital público, de onde recebeu alta, sem registro de agressões físicas, na manhã do dia 11. Ainda segundo o inquérito, ao voltar para o Centro de Instalações Temporárias (CIT) do aeroporto, ele passou o dia nervoso e agressivo, se recusou a entrar no avião de volta e foi medicado com calmantes. No dia seguinte, 12 de março de 2020, ocorreria o crime que se transformaria no maior escândalo da história recente do controle de imigração em Portugal.
Exatos dois anos depois, em plena guerra na Ucrânia, Portugal tenta reparar os efeitos desastrosos que a ação criminosa do Estado contra um cidadão ucraniano trouxe para a imagem e a diplomacia do país. Desde o início do conflito, o primeiro-ministro António Costa foi o primeiro líder político europeu a anunciar oficialmente abrigo aos refugiados, quando eles nem haviam ainda chegado à Polônia. A pedido da Anistia Internacional local, o governo português acaba de oferecer proteção à viúva de Ihor, Oksana Homeniuk, e a seus dois filhos menores para deixarem sua terra e se instalarem em segurança no país.
Antes da invasão russa, quando se falava de Ucrânia em Portugal, a associação imediata era com o caso de Homeniuk, que detonou uma crise política com desdobramentos até hoje e cujo epicentro foi o SEF. O serviço está em processo de extinção, decisão tomada após a enorme repercussão negativa do caso. Durante todo o ano de 2021, não só a opinião pública portuguesa, mas também a europeia, acompanharam as etapas de investigação, julgamento e condenação a nove anos de prisão de três inspetores – não por tortura e assassinato, com pena de 25 anos, como pretendia inicialmente o Ministério Público, mas pelo crime equivalente no Brasil a lesão corporal seguida de morte. A decisão foi confirmada em segunda instância há apenas três meses e ainda pode chegar ao Supremo Tribunal de Justiça.
“Agora, nós tivemos conhecimento de que a família de Ihor Homeniuk queria deixar a Ucrânia e tentamos ajudar – em especial pelo fato de terem perdido pai e marido sob guarda das forças de segurança do Estado”, relatou à piauí Paulo Fontes, diretor da Anistia Internacional de Portugal. “Mandamos uma carta para o Ministério da Administração Interna no último dia 2 pedindo ajuda para que consigam chegar e se instalar de forma segura em Portugal e tivemos a resposta positiva na mesma hora”, completa. Na carta, a Anistia diz que a solicitação excepcional de apoio pode ser “uma medida de reparação possível e complementar à família”.
Quem está cuidando do trâmite dos papéis, já encaminhados ao famigerado SEF, é o jovem advogado especialista em Direitos de Imigração José Gaspar Schwalbach – o mesmo que representou a viúva no julgamento e obteve, depois, por acordo, uma indenização estimada em 800 mil euros, uma das mais altas já pagas pelo governo português, para custear o sustento da família e os estudos dos filhos de Homeniuk até a vida adulta. Na última sexta-feira (4), o advogado disse às tevês locais já ter protocolado em nome da família Homeniuk o pedido de proteção temporária, que garante imediatamente um ano de residência a todo refugiado de guerra. Gaspar informou ainda que será necessário um salvo-conduto, a ser emitido pelo consulado de Portugal na região ucraniana de Lviv (onde está a família), próxima à fronteira com a Polônia, para permitir o deslocamento da criança de dez anos, que ainda não tem passaporte.
Em rara e pungente entrevista por videoconferência, concedida no final de 2020 à SIC Portugal, a viúva Oksana Homeniuk começou dizendo que não entendia como o crime violento que vitimou seu marido poderia ter acontecido no aeroporto de uma capital europeia, onde se respeitam os direitos humanos, e terminou revelando que não podia nem ouvir, sem sentir ódio, o nome Portugal. À época, afirmou também que, decorridos nove meses da morte, não havia conseguido contar aos filhos que o pai morrera por espancamento. A primeira versão da polícia de fronteiras era que o ucraniano havia sofrido um ataque epilético fatal.
Caso decidam emigrar, os Homeniuk irão juntar-se à segunda maior comunidade de estrangeiros em Portugal, depois dos brasileiros. Há oficialmente 29 mil ucranianos no país, distribuídos sobretudo por Lisboa, Faro e Porto. Esses grupos, que se mobilizaram contra o assassinato do conterrâneo nos dois últimos anos, agora protestam e se organizam para mandar suprimentos à Ucrânia e receber os milhares de compatriotas que já formalizaram pedidos de refúgio – e os primeiros vindos da Polônia já desembarcaram em Lisboa e Braga. Em Portugal, as doações não param de chegar aos muitos pontos de recolhimento. O presidente Marcelo Rebelo de Sousa – que prometeu em telefonema no dia 27 todo o apoio, inclusive armas, ao presidente Zelensky –, inaugurou em menos de uma semana um centro de alojamento para refugiados, colocando Lisboa à frente de muitas cidades europeias.
A ordem do governo é simplificar e agilizar a burocracia. Imediatamente após o primeiro-ministro afirmar, no primeiro dia de guerra, 25, que os ucranianos eram muito bem-vindos, até o Sindicato de Carreira de Investigação do SEF, que luta contra o fim do órgão, reconhecia, em comunicado à imprensa, a “ responsabilidade especial que tem nesta circunstância específica”. O mesmo sindicato informou que mais de vinte balcões de atendimento foram criados em todo o país para despachar exclusivamente os pedidos de proteção temporária dos cidadãos ucranianos – em regime de voluntariado e em horário pós-laboral. “A decisão, anunciada pelo governo, de facilitar a entrada de refugiados ucranianos no nosso país só pode ter uma resposta da parte do SEF: solidariedade, humanismo e generosidade”, escreveu a entidade que representa os policiais de fronteira.