“Agora ao vivo, direto da clínica São Vicente, informa a repórter Cristina Graeml”, disse Lillian Witte Fibe na bancada do Jornal da Globo, na noite de 27 de julho de 1998. Em frente à maternidade de fachada cor-de-rosa, onde a apresentadora Xuxa Meneghel havia se internado para dar à luz Sasha, a jornalista surgiu usando blazer e um cordão com pingente no pescoço:
– Pois é! Aqui do lado de fora, poucas informações. O que sabemos até agora é que Xuxa fez vários exames antes de entrar no centro cirúrgico. Tirou inclusive a pressão – começou, antes de contar que a estrela reservou uma ala do andar para a ocasião.
Por muitos anos, Graeml surgiu para espectadores de microfone na mão, em emissoras variadas, a maioria do grupo Globo. No canal pago Sportv, cobriu a campanha do Athlético Paranaense no Campeonato Brasileiro de 2001, quando o clube foi campeão. Na TV Mirante, afiliada da TV Globo em São Luís (MA), tinha o status de repórter de rede, com trabalhos veiculados em todo o país. Pela RPC TV, afiliada global no Paraná, onde ficou até 2016, chegou a gravar um programa especial na Antártida. O nascimento de Sasha foi uma das muitas reportagens que fez quando trabalhava na matriz, no Rio.
Corta para:
Passava das 19 horas do dia 5 de julho de 2021, uma segunda-feira, quando Graeml estreou, sorridente, o programa Hora do Strike, transmitido ao vivo pelo jornal Gazeta do Povo no YouTube e no Facebook. Usando um casaco lilás de lapelas largas e falando de sua casa – em Colombo, região metropolitana de Curitiba –, ela apresentou seus novos colegas, os influenciadores digitais Kim Paim e Gustavo Gayer, que já tinham certa notoriedade em bolhas digitais do bolsonarismo. A primeira edição também contou com a participação especial do jornalista Luís Ernesto Lacombe. A simpatia inicial dos primeiros minutos deu lugar a uma expressão sisuda. Afinal, não era hora de pegar leve. Era a hora do strike.
Em um momento ainda bastante letal da pandemia, ela lançou mão do arcabouço negacionista, reclamando das “falsas narrativas” da CPI da Covid e defendendo o “tratamento precoce”, à base de medicamentos ineficazes para o combate ao novo coronavírus. “Tá matando muita gente até hoje [o ato de] impedir o acesso ao tratamento [com cloroquina], impedir que médicos trabalhem”, disse. Àquela altura, a pandemia tinha matado mais de 525 mil pessoas no Brasil. Em defesa do então presidente Jair Bolsonaro, atacou o “vandalismo da esquerda” durante manifestações que pediam o impeachment do governante.
O restante do papo na live incluiu a defesa da “vida desde sua concepção” e a condenação do “globalismo”. Disseram que o Brasil vive uma “ditadura da verdade [por parte] da imprensa tradicional”. Lacombe, por exemplo, esbravejou que a imprensa agia como “um partido político derrotado nas eleições”, com o “objetivo único” de derrubar o governo federal. Na caixa de comentários, os internautas faziam coro.
Àquela altura, a Cristina Graeml conhecida na TV Globo já se mostrava uma outra Cristina Graeml.
A Gazeta do Povo já tinha radicalizado seu posicionamento declarado à direita, dando voz a nomes como Rodrigo Constantino e Alexandre Garcia. A estreia do Hora do Strike atingiu o público-alvo em cheio. Quando esse episódio inaugural terminou – um pouco depois das 20h15 –, os números impressionaram a direção da Gazeta. O programa tinha se tornado viral: do início ao fim, manteve uma audiência média superior a 40 mil espectadores em tempo real (hoje, só no YouTube, são mais de 267 mil visualizações). “Para o segundo programa, ninguém tinha dúvida de que seria um sucesso de renda e público”, resume um ex-colega de Graeml, que integrava a equipe da Gazeta.
O programa seguiu até abril de 2022. Algumas edições chegaram a superar 3 milhões de espectadores. Graeml se destacou e acabou se transferindo para o canal de tevê Jovem Pan, o maior motor de comunicação do bolsonarismo na época. Passou a defender que a esquerda corrompe jovens e “leva à miséria” e a martelar expressões como “ditadura da toga” (contra o Supremo Tribunal Federal). Chamou de “bandido” o hoje ministro do STF Cristiano Zanin, o que rendeu à emissora uma condenação por danos morais. Também condenou as prisões decorrentes de 8 de janeiro de 2022 e chegou a publicar um e-book, com histórias de quatros “presos políticos”, como ela se refere aos detidos por tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito. Foi demitida do canal paulista em novembro de 2022, mas seu capital ultradireitista havia se estabelecido.
Com bom número de seguidores (hoje são 677 mil só no Instagram), a jornalista se filiou ao nanico Partido da Mulher Brasileira (PMB) para disputar a eleição à prefeitura de Curitiba. Seu vice, um advogado e empresário careca e barbudo chamado Jairo Ferreira Filho, também integra o Partido da Mulher Brasileira. Ela começou como um azarão, mas sua campanha ganhou corpo na reta final, vendendo-se como a candidata da “direita raiz” e a “verdadeira representante da direita conservadora”. Terminou o primeiro turno com uma diferença pequena sob o primeiro colocado, Eduardo Pimentel (PSD), atual vice-prefeito da capital paranaense apoiado pelo governador Ratinho Junior (PSD). Ela conquistou 291.523 votos; ele, 313.347.
“Eu falo com toda humildade do mundo: eu não me surpreendo [com o resultado]. Eu sabia que ia acontecer. Minha candidatura é orgânica. Ela só existe porque o povo curitibano pediu”, disse Graeml,no dia da eleição, no Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR). Ela vestia uma camiseta amarela e estava com uma bandeira de Curitiba sobre os ombros.
Graeml não atendeu a piauí. Após pedidos feitos desde 14 de outubro, sua assessoria alegou dificuldade de agenda e não respondeu mesmo a perguntas enviadas por escrito.
A guinada de Graeml à extrema direita pegou de surpresa antigos amigos e jornalistas da RPC TV, emissora afiliada da Rede Globo, onde trabalhou de 2003 a outubro de 2016. Cinco ex-colegas da candidata ouvidos pela piauí descreveram um movimento semelhante: Graeml não tinha menor apego ou identificação a pautas ultraconservadoras. Havia sido casada com um cinegrafista “bem de esquerda”, com quem tem dois filhos. As pautas jornalísticas que lhe eram mais caras pareciam ser as que tratavam de temas sociais. No campo pessoal, não se incomodava com quem fumava maconha ao seu lado, por exemplo. Um ex-colega arrisca dizer: “Nunca foi algo declarado, mas se a gente tivesse que classificá-la, na época, todo mundo diria que ela era de esquerda.”
Os profissionais com quem conviveu se lembram de Graeml como uma pessoa firme, que brigava para defender seus interesses pessoais, como uma escala de plantão mais conveniente. Tinha uma característica que repete na política: falava rapidamente, emendando uma frase na outra, quase sem pausas. Por isso, ganhou nos bastidores o apelido irônico de Mudinha. Cinegrafistas, motoristas e repórteres a provocavam com comentários misóginos, como “mulher não sabe dirigir” ou “mulher não tem que trabalhar”, que não ficavam sem resposta.
Em suas redes sociais, não era de se posicionar. Postava as reportagens que fazia ou conteúdos leves, como fotos de gatinhos. Os primeiros acenos à direita foram tímidos e surgiram por ocasião da Lava Jato. Depois, seguiram com a defesa do impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
Essa fase coincide com o período em que Graeml começou a se relacionar com seu atual companheiro, o analista judiciário Anderson Alves Cordeiro Sabará, de São Paulo. Além de servidor público, ele também ministra sessões e cursos de “constelação sistêmica” – prática pseudocientífica controversa, conhecida também como “constelação familiar”.
Apesar de ter sido candidato a vereador de Cachoeira Paulista (sua cidade natal) e a deputado estadual, respectivamente pelo PT e pelo PV, Sabará é descrito como ultraconservador – ou como “um good vibes reaça”, como diz uma jornalista que conhece o casal.
Ela deixou a RPC em outubro de 2016. Segundo o sindicato dos jornalistas do Paraná, foi demitida, ao lado de outros quinze profissionais. Estava em uma fase de embate pelos horários de trabalho (não aceitava ser escalada muito cedo, o que dificultava a logística familiar). Ela hoje costuma dizer que pediu o desligamento por não concordar com a linha editorial “de esquerda” da emissora.
Fora da Globo, Graeml ofereceu palestras, cursos e treinamentos, sem grande sucesso. Chegou à Gazeta do Povo em julho de 2018, em uma frente de produção de vídeos ainda incipiente no jornal. Começou a apresentar um programete chamado Última Análise, com comentários sobre temas diversos, sem muita audiência. Até que a Gazeta colou no bolsonarismo ascendente e os colunistas que se alinhavam ao ex-capitão cresciam em audiência. Ela seguiu essa tendência, dando uma prévia do que viria a dizer na campanha. Em um debate antes do primeiro turno, por exemplo, saiu-se com essa: “A temática LGBT, essa construção mental que fazem na cabeça das nossas crianças, dizendo que menino não é menino e que menina não é menina (…) vai acabar.”
“Para mim, ela criou um personagem”, aposta uma jornalista da Gazeta. “Os colegas se perguntam se, de fato, ela acredita nisso que ela diz e defende ou se é tudo uma estratégia de sobrevivência de mercado, de explorar um nicho… Se ela encontrou o Shangri-Lá dela na extrema direita”, aponta um repórter.
Sem tempo de tevê e com poucos recursos – ela gastou 520,6 mil reais, ante 13,8 milhões de reais de Pimentel –, a campanha de Graeml começou restrita à sua bolha. Na primeira pesquisa feita após o início oficial da corrida eleitoral, a Radar/Banda B, divulgada em 22 de agosto, aparecia com apenas 3,7% das intenções de voto. Ela apostou no discurso outsider “antissistema”, ao estilo do ex-prefeiturável por São Paulo Pablo Marçal (PRTB), de quem conseguiu apoio informal. Duas semanas antes do fim do primeiro turno, os trackings das campanhas começaram a captar o avanço acelerado de Graeml.
Na primeira semana após o primeiro turno, ela tentou manter a ofensiva, mas passou a escorregar em polêmicas e em episódios que explicitavam seu desconhecimento em relação a temas básicos. No debate da RIC, em 19 de outubro, não soube informar qual era o percentual mínimo da receita de impostos que uma prefeitura deve investir em educação (25%).
Até então, seu programa de governo não havia sido colocado em perspectiva, e ela não se mostrou tão eficiente sob ataques, abrindo caminho para que Pimentel a acusasse de “não ter propostas para a cidade”. O opositor também explorou bem o fato de a imprensa local ter noticiado que a campanha de Graeml utilizou ferramentas de inteligência artificial na elaboração do plano de governo. (O portal Plural, por exemplo, submeteu o documento à plataforma ZeroGPT, que detecta uso de IA em documentos. O resultado apontou que havia indícios de que 88% do programa de Graeml não teriam sido escritos por mãos humanas).
Não parou por aí. Graeml também apanhou por propostas polêmicas. A candidata sugeriu que municípios da região metropolitana dessem alguma “contrapartida” a Curitiba em razão de unidades de saúde da capital atenderem via SUS pacientes de outras cidades. Propôs, ainda, a adoção da cobrança de tarifa do transporte coletivo por quilômetro rodado – o que penalizaria moradores da periferia, que fazem deslocamentos maiores. Graeml anunciou, ainda, que pretende criar o Instituto Pró-Vida, para que gestantes que engravidarem “sem querer” e forem “abandonadas pelo marido” tenham acolhimento psicológico e suporte para “doar a criança” à adoção.
A candidata também comprou briga com ex-colegas. No debate da Band, em 14 de outubro, Graeml se vangloriou de ter recebido “com muita honra os maiores prêmios nacionais e internacionais” pela série de reportagens Diários Secretos, publicada em 2010 pela Gazeta do Povo e pela RPC. Posteriormente, gravou um vídeo em suas redes, reafirmando a história. A série, no entanto, é de autoria dos jornalistas Katia Brembatti, Karlos Kolbach, James Alberti e Gabriel Tabatcheik, que por dois anos investigaram um esquema de funcionários fantasmas na Assembleia Legislativa do Paraná. Após a apuração, para levar o conteúdo ao ar, o grupo contou com o apoio de repórteres da tevê para dar cara ao material apurado. Aí, efetivamente, Graeml foi o rosto que apareceu em uma das reportagens da série. Os prêmios conquistados pelo trabalho – inclusive o Prêmio Esso – foram dados apenas aos quatro integrantes da equipe investigativa.
“Ela não estava na equipe que investigou esse caso”, ressalta Tabatcheik à piauí. “Ela não recebeu prêmios nacionais e internacionais por isso. Esses prêmios foram entregues à equipe investigativa. O que eu acho lamentável é que ela tenha usado nossa reportagem em um debate eleitoral, para dar vazão à sua plataforma política. Isso é antiético”, acrescenta o jornalista.
Além disso, Graeml teve que lidar com uma série de denúncias contra seu vice, o reluzente barbudo do Partido da Mulher Brasileira. Entre os casos que vieram à tona, está um processo que ele responde na esfera cível, sob acusação de ter lesado uma mulher brasileira idosa em 400 mil reais, em um esquema de pirâmide. Ela afirma ter repassado o dinheiro para que Ferreira Filho o investisse, com a promessa de retornos financeiros de 10 mil reais por mês. Em dois anos, no entanto, a vítima não recebeu nenhum repasse. Na semana passada, o site da revista Veja publicou o relato de dois empresários que acusam Ferreira Filho de estelionato. Passando-se por representante de uma empresa especializada, ele recebeu dinheiro para fazer a articulação junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para destravar empréstimos, segundo os empresários. Graeml tem evitado comentar o histórico de seu vice, argumentando que a responsabilidade sobre os fatos é dele.
O oponente da jornalista é também um nome de direita e candidato do establishment, Eduardo Pimentel Slaviero passou pela campanha sem grandes deslizes. Ele provém de duas oligarquias. De um lado, é neto do ex-governador e empresário Paulo Pimentel. Do outro, estão os Slaviero, que têm forte atuação no setor hoteleiro. Desde 2018, é vice de Rafael Greca (PSD) e, na primeira gestão, acumulou o cargo de secretário de obras. É apoiado por nomes como o governador Ratinho Junior (PSD) e o deputado cassado Deltan Dallagnol (Novo). Seu vice é o ex-deputado Paulo Martins (PL), um dos principais expoentes do bolsonarismo no Paraná.
Mesmo com maior tempo de campanha e com mais recursos, sua candidatura demorou a engrenar. Com o slogan “Tá preparado”, Pimentel tenta fazer o tipo bom moço, com fala pausada e gestos ensaiados – o que faz com que Graeml o acuse de ser produto de media trainning. Diante de suas propostas, a candidata costuma reagir com frases do tipo: “Por que não fez antes, quando era vice-prefeito?”
Na segunda-feira (21), o instituto AtlasIntel divulgou a mais recente pesquisa, e o resultado mostrava Pimentel à frente com 51,4%, contra 43% das intenções de voto. Na pesquisa Quaest, de dois dias antes, o placar era de empate técnico: 42% para ele e 39% para ela.
Ao longo da campanha, a candidata ressuscitou o repertório negacionista sobre a pandemia. Criticou políticas adotadas por Curitiba, como lockdowns em períodos mais agudos, que disse ser coisa de “médicos esquerdistas”.
Graeml anunciou que, caso seja eleita, sua secretária de Saúde será a médica Raíssa Soares, conhecida como “Doutora Cloroquina”. Filiada ao PL e candidata derrotada ao Senado pela Bahia, Soares foi secretária de saúde em Porto Seguro (BA), onde desestimulou a vacinação contra a Covid e defendeu o chamado “tratamento precoce” com medicamentos como cloroquina e ivermectina, comprovadamente ineficazes para este fim.
A campanha de Graeml também aglutinou negacionistas de fora de Curitiba. Seu maior doador – com o aporte de 50 mil reais – é o empresário bolsonarista paulista Otávio Fakhoury, que se notabilizou por tentar desqualificar as vacinas e as políticas de enfrentamento à Covid. Ele é investigado pelo STF nos inquéritos que apuram fake news e a organização de atos antidemocráticos. Graeml também recebeu 20 mil reais em doação do médico psiquiátrico Augusto Fonseca da Costa, de Cascavel, interior do Paraná. Em uma live transmitida no auge da disseminação do novo coronavírus, ainda em 2020, ele classificou o episódio como “panicodemia”: disse que o clima de pânico é mais nocivo do que o próprio vírus.
Ainda que não vença a eleição, Graeml sairá deixando uma marca significativa. A exemplo de candidatos como Marçal e Bruno Engler (PL) – respectivamente, de São Paulo e Belo Horizonte –, a jornalista se inscreveu como um dos novos nomes em ascensão da direita ultraconservadora. Nas próximas eleições, a enviada especial à extrema direita terá motivos para permanecer por lá.