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    O prefeito do Rio de Janeiro, preso hoje pela Polícia Civil; professor da USP questiona decisão judicial que afastou Crivella do cargo Foto: Andre Melo Andrade/Immagini/Folhapress

questões político-jurídicas

Crivella afastado, prefeitos ameaçados

Cargos eletivos protegem seus titulares contra afastamentos sumários realizados por autoridades judiciárias

Rafael Mafei | 22 dez 2020_17h38
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A apenas nove dias do final de seu mandato, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, foi afastado e preso por ordem do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em uma investigação conjunta da Polícia Civil e do Ministério Público do Estado. A decisão foi tomada pela desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, a mesma que já havia determinado, em medida cautelar de setembro deste ano, a busca e apreensão de documentos, computadores e dinheiro vivo contra muitos dos mesmos investigados atingidos por sua decisão de hoje, inclusive o prefeito Crivella.

Os promotores fluminenses estavam havia meses cercando o empresário Rafael Alves, filiado ao Republicanos (ex-PRB) e candidato à prefeitura de Angra dos Reis em 2016, pela suspeita de que ele seria um operador de esquemas ilegais na Prefeitura do Rio. Alves tem um pouco de tudo em seu currículo: já foi dirigente de escolas de samba e empresário de casas noturnas. Desde a eleição de Crivella, a quem apoiou inclusive como arrecadador de campanha, achou espaço para exercer sua influência junto ao Executivo municipal. Seu irmão, Marcelo Alves, é presidente da Riotur, empresa municipal com estreitos laços com o mundo do Carnaval da cidade, cujas boas relações com Crivella durante a última campanha teriam sido costuradas por Rafael Alves.

Em março deste ano, a Polícia Civil cumpriu mandado de busca e apreensão contra o empresário. Os investigadores buscavam provas de que Rafael Alves, mesmo sem cargo formal na prefeitura, mexia pauzinhos nos bastidores para lucrar com crimes contra os cofres do município. Enquanto os policiais estavam em sua casa, uma pilha de roupas emitiu um toque telefônico. O delegado revirou-a e encontrou, a tempo de atender à ligação, um celular. Era Marcelo Crivella, que soubera da ação policial e ligou para saber se tudo estava bem com Alves. O prefeito chegou a conversar com o delegado imaginando que era o empresário quem falava.

A ligação do prefeito levou a polícia a um aparelho celular que se mostrou crucial para o desenvolvimento das investigações. A decisão de setembro, primeira investida da polícia e do MP contra a pessoa de Crivella, fundamentou-se em grande parte nas quase duas mil mensagens encontradas. Chamava atenção o uso de mensagens cifradas e a frequente menção à necessidade de encontros presenciais para tratar de assuntos que não cabiam ser discutidos senão em pessoa.  Em uma das conversas, Alves dizia que a indicação de seu irmão para a Riotur facilitaria o “retorno do investimento” que ele fizera na campanha de Crivella. 

A operação na casa de Alves revelou que o empresário de fato exercia influência junto ao prefeito. Ele havia conseguido que Crivella apoiasse uma manobra da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA) para interferir nos resultados do Carnaval de 2018, impedindo o rebaixamento de duas agremiações. Noutra oportunidade, o empresário pediu ao prefeito que “segurasse” a demolição de parte de um imóvel do senador Romário (Podemos/RJ), parcialmente construído em área irregular. “Claro, amigo. Me dá o endereço”, respondeu Crivella. 

A demolição não ocorreu, a despeito da recomendação do parecer técnico da Secretaria Municipal de Urbanismo. Em outra conversa, o empresário gabou-se do feito para o doleiro Sérgio Mizrahy: “Iam demolir a casa do Romário. Não deixei. Me pediram ajuda e resolvi com o prefeito”. Mizrahy, atingido pela 23ª fase da Operação Lava Jato, batizada de “Câmbio, Desligo”, foi quem, em acordo de colaboração premiada, colocou Rafael Alves e seu irmão Marcelo no comando do que ele chamou de um “QG da propina” na prefeitura do Rio de Janeiro. Daí para se chegar ao prefeito, bastou um telefonema precipitado para um celular até então bem escondido.

Se não são poucas as evidências em desfavor de Crivella, e se há abundantes razões para que acreditemos na existência de um QG da propina na Prefeitura do Rio de Janeiro, duas questões jurídicas recomendam que guardemos precaução contra o afastamento e a prisão cautelar do prefeito. A primeira é seu timing, a pouco mais de uma semana do término do mandato. Se, como aponta a acusação, foi a ascensão de Crivella à prefeitura que permitiu aos irmãos Alves instituírem um quartel-general da corrupção na administração municipal, que contava inclusive com a participação ativa do prefeito na assinatura de documentos que os beneficiavam, sua derrota na eleição municipal fatalmente prejudicou a eficácia dessa específica estrutura criminosa. Sendo assim, não parece convincente o fundamento de que a prisão preventiva seja necessária para garantia da ordem pública, de modo a impedir que os crimes de Crivella continuem sendo praticados. O outro fundamento apontado para sua prisão – ter entregue celular de outra pessoa durante a busca e apreensão que sofreu antes – tampouco parece suficiente para sustentar seu aprisionamento. Investigados e acusados não têm qualquer obrigação de produzir provas contra si, o que os desobriga de ajudar promotores de justiça e policiais a localizarem documentos e aparelhos que os incriminem. O que investigados e acusados não podem, sob risco de prisão cautelar, é destruir provas, ameaçar fuga, coagir testemunhas e autoridades.

Em segundo lugar, e sem prejuízo da profunda e autêntica repulsa política que se possa ter em relação a Crivella, não devemos estar em paz com a ideia de que uma desembargadora pode, sozinha, afastar um prefeito do cargo e mandar prendê-lo. Se é verdade que o Código de Processo Penal prevê medida cautelar de “suspensão do exercício de função pública […] quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”, é também verdade que cargos eletivos protegem as autoridades neles investidas contra afastamentos sumários realizados por autoridades judiciárias. 

 

A Constituição de 1988, para o bem e para o mal, elevou os municípios ao status de entes políticos federativos, ao lado dos estados e da União. Deu-lhes o direito de se regularem por leis orgânicas, bem como aos prefeitos, chefes do Poder Executivo desses numerosos entes federativos, o direito de serem julgados pelos Tribunais de Justiça dos respectivos estados. A Lei Orgânica do Rio de Janeiro é clara ao dizer que os prefeitos só devem ser afastados do cargo, por acusações de crimes comuns, quando for recebida a denúncia pelo Tribunal de Justiça. É uma regra muito razoável, que está de acordo com uma concepção de democracia reverente à soberania popular: quem foi eleito pelo voto direto de milhões de cidadãos não deveria ser afastado do cargo pelo ato concertado de, no limite, duas pessoas – o membro do ministério público que pede o afastamento e o membro do Tribunal que o afasta, cautelarmente, com uma canetada solitária. 

Crivella não foi o primeiro prefeito afastado dessa maneira. Seu caso é ruim para a defesa de princípios, eu sei: ele gera repulsa, inclusive na população que o elegeu quatro anos atrás, mas que agora negou-lhe recondução ao cargo e mostrou-lhe a porta da rua, escoltado por uma enorme taxa de rejeição. Além disso, o fim próximo de seu mandato faz com que algumas das objeções aqui levantadas pareçam firulas jurídicas, já que ele deixaria de fazer jus às proteções do cargo de prefeito em menos de dez dias. Logo mais, ele estará sob a autoridade de uma juíza ou juiz de primeiro grau, como qualquer outro réu. 

Mas o direito trabalha com regras, que são padrões universais: ou bem os cargos eletivos têm a mínima proteção contra investidas judiciais, ou não têm. Não é bom negócio deixar a integridade dos mandatos de cada um dos mais de cinco mil prefeitos do Brasil à revelia de uma decisão cautelar monocrática de desembargadoras e desembargadores que, no limite, não prestam contas a ninguém pelo teor de suas decisões. Vale lembrar que o tribunal hoje festejado pela medida combativa contra um prefeito (ao que tudo indica) corrupto é o mesmo que, há pouco mais de um mês, elegeu para seu Órgão Especial uma desembargadora que desonrou a vereadora assassinada Marielle Franco e pediu o fuzilamento de um deputado. Que políticos essa outra desembargadora afastaria cautelarmente, se pudesse?

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