O economista Bruno Carazza, autor de Dinheiro, Eleições e Poder – As Engrenagens do Sistema Político Brasileiro, conheceu a fábrica de salsichas por dentro. Servidor público, ele trabalhava no Ministério da Fazenda quando a equipe de Antonio Palocci, no início do governo Lula, propôs ao Congresso uma agenda de reformas “microeconômicas”. A Lei de Falências e novas regras para o setor de construção civil, entre outras iniciativas, tinham como objetivo facilitar a realização de negócios e elevar a eficiência econômica do país. Uma das tarefas de Carazza, na época com menos de 30 anos, era acompanhar a tramitação desse pacote na Câmara e no Senado.
Mais de uma década depois, o pesquisador defenderia uma tese de doutorado sobre “interesses econômicos, representação política e produção legislativa no Brasil”. Acrescido de depoimentos de políticos e empresários às investigações da Lava Jato, o texto deu origem ao livro que a Companhia das Letras lançou no mês passado. Nele Carazza apresenta, com riqueza de detalhes, os custos – tanto democráticos, quanto financeiros – do nosso arranjo institucional.
Um desses custos – ao mesmo tempo financeiro e democrático – aparece ainda na campanha eleitoral. Eleger-se é algo particularmente caro, no Brasil. No caso das vagas para a Câmara dos Deputados ou para as Assembleias locais, há simultaneamente muitos candidatos, em cada estado, disputando a atenção de milhões de eleitores. Não é barato, para cada postulante, tornar-se conhecido pelo maior número possível de pessoas em cada unidade da Federação. A isso são acrescidos os custos com que cada um deles tem que arcar para tentar se destacar, aos olhos do eleitor, entre os muitos concorrentes.
“Os distritos eleitorais são muito grandes, e isso encarece a campanha”, observou Carazza pelo telefone, numa conversa recente.
No Brasil, esses distritos – o território que define o conjunto de eleitores que o deputado irá representar – equivalem aos estados. São grandes, de fato, e abarcam um impressionante número de cidadãos. Na Assembleia Francesa, em comparação, cada deputado é eleito por uma circunscrição com não mais do que 200 mil eleitores, em geral bem menos do que isso. Nos Estados Unidos, a maioria dos estados é subdividida, para efeitos eleitorais. A Califórnia, por exemplo, tem 53 distritos.
Na maior parte dos países, com distritos menores do que no Brasil, um número menor de candidatos disputa um número menor de cadeiras. Como nesse caso os políticos precisam falar com um número não tão grande de eleitores, concorrendo com uma quantidade menor de adversários, as campanhas tendem a ser mais baratas. A democrata Nancy Pelosi é a representante do 12º distrito da Califórnia, que coincide com a cidade de São Francisco. É ali – e apenas ali – que ela tem que fazer campanha, tornar-se conhecida dos eleitores e tentar derrotar seu rival republicano.
“Esse quadro com centenas de candidaturas, às vezes mais de mil candidatos, disputando dezenas de cadeiras junto a milhões de eleitores é peculiar ao Brasil”, explica o cientista político Bruno Wanderley Reis, que participou da banca de doutorado de Carazza e, assim como o economista, é crítico da particular conjunção de regras de financiamento e sistema eleitoral do país.
Reis chama a atenção para o fato de que, ao mesmo tempo que há pulverização da demanda por recursos – muitos candidatos, que precisam de quantias não desprezíveis de dinheiro para concorrer –, nossas regras de financiamento permitem que a oferta de verbas se concentre num grupo muito pequeno de doadores – dirigentes partidários, grandes financiadores. Trata-se de um mecanismo que concentra poder nas mãos de quem paga as contas das campanhas.
“A elite parlamentar no Brasil está no colo dos grandes financiadores”, afirma Reis. “É por que todo mundo é corrupto? Claro que não, eles podem ter recebido doações legais. É por que são sacanas, safados? Um monte de gente não quis fazer isso. O que aconteceu? Em muitos casos, perderam a eleição.”
Uma vez eleitos, nada garante que os novos deputados conseguirão fazer avançar seus projetos ou representar os interesses do seu eleitorado num sistema político que volta a concentrar poderes, dessa vez nas relações entre o Executivo e o Legislativo.
Como já se observou aqui, o arranjo institucional brasileiro permite ao presidente da República e a um pequeno grupo de líderes partidários determinar o que vai ser votado, quando vai ser votado, e o que vai constar no texto de cada projeto. As barganhas se dão entre o Planalto e os caciques no Congresso, sobretudo, num processo ao qual a sociedade tem pouco acesso, mas que ao mesmo tempo é bastante vulnerável à influência dos grupos de interesse – empresas, funcionalismo público, sindicatos, entidades patronais – e dos anseios dos grandes financiadores de campanha.
Segundo Carazza, o regimento da Câmara oferece aos líderes partidários um arsenal de instrumentos para encurtar prazos na apreciação de projetos, “para criar comissões especiais – em vez de passar pela discussão em várias comissões –, para escolher quais serão os membros dessas comissões”. Daí a dificuldade de se fazer o escrutínio público – ou mesmo o debate pelos demais integrantes do Congresso – do que vai ser votado. Como os líderes detêm poderes regimentais que fazem muita diferença no resultado final de qualquer legislação, eles possuem também grande capacidade de barganha com o Executivo.
Ao analisar o caso particular das medidas provisórias, Carazza descreve como essa interação entre o Planalto e o “alto clero” no Congresso abre espaço para a ação dos grupos de interesse.
“As medidas provisórias têm sido o principal veículo de aprovação legislativa de todos os governos, desde a redemocratização”, afirma o economista. “E elas têm, em si mesmas, mecanismos que favorecem a atuação dos grupos de interesse. As medidas provisórias têm, por exemplo, prazo determinado para serem aprovadas. O governo tem interesse na sua rápida aprovação, e o Congresso tem o poder de alterá-las. Ao longo da tramitação, com base nessa premência de tempo, os líderes têm um poder de barganha muito grande. O governo precisa ceder em determinados pontos, propostos pelos líderes. Boa parte desses pontos visa atender o interesse de grupos específicos. Podem ser empresas, categorias do funcionalismo, o que seja. Como o processo legislativo é opaco, pouco transparente, abre-se o flanco para a atuação dos grupos de interesse.”
Qual o poder dos demais deputados, nossos representantes, os que por acaso não são líderes partidários, nesse processo? Pequeno, diz Carazza. “A própria denominação ‘alto clero’ e ‘baixo clero’ evidencia isso.”
Há uma percepção, certo senso comum, de que um dos problemas do Congresso brasileiro está no “baixo clero”, na massa de parlamentares tidos como mais ou menos desqualificados que vive à margem das grandes negociações entre Executivo e Legislativo. Trata-se de uma visão conservadora, comum na sociedade brasileira, de resto pouco democrática. Importam os “grandes”, os poucos, os que conduzem.
Do jeito que as coisas estão organizadas, contudo, faz mais sentido dizer que o problema está no “alto clero” e no modo como são conduzidas as negociações entre o Executivo e os líderes partidários – ou, melhor, o problema está na dose extra de hierarquia dentro do Legislativo brasileiro, nessa separação que nossas regras institucionais criam entre dois tipos de parlamentares. Em prejuízo da transparência, da possibilidade de a sociedade acompanhar e participar dos debates legislativos, em detrimento do poder do voto e da relação entre representantes e representados.