As cartas diplomáticas trocadas entre soberanos respondem a regras protocolares estritas e raramente contêm algo mais que expressões ponderadas de “afeto” mútuo, de “alta consideração” e de votos em prol de “relações mais estreitas” entre os dois países. Com isso, a maior parte desses documentos traz pouca informação histórica além das frases previsíveis.
Os secretários dos monarcas europeus traziam-lhes todo dia dezenas de cartas, sempre cuidadosamente caligrafadas, para transmitir agradecimentos, votos de Natal, comunicar os nascimentos e mortes ocorridos nas famílias, responder às comunicações dos nascimentos e mortes ocorridos em outras famílias reais, etc..
Poucas vezes uma dessas missivas oficiais destaca-se entre a massa de mensagens insossas, e são necessárias circunstâncias excepcionais para que isso ocorra.
É o caso da carta reproduzida aqui, assinada pelo futuro D João VI, na época príncipe regente de Portugal, dirigida ao filho do rei da Inglaterra, o duque de York. O que torna a carta excepcional é sua data: 13 de março de 1808, cinco dias apenas após a chegada de D. João ao Rio de Janeiro, deixando para trás Portugal invadido pelos franceses. É impressionante que com tanto a ser feito para sua instalação pessoal, para a organização do governo e a distribuição de milhares de pessoas pelas residências do Rio de Janeiro, D. João tivesse tempo e empenho em responder a cartas de príncipes europeus, menos de uma semana após a sua chegada.
É possível que, nesse caso, tenha procurado responder em prioridade ao filho de seu aliado mais poderoso.
Como não podia deixar de ser, a carta evoca a retirada estratégica da família real para o Brasil (que os franceses naturalmente apresentavam como “fuga covarde”). A vinda para o Rio de Janeiro tivera o incontornável beneplácito da Inglaterra e navios de guerra ingleses acompanharam as naus portuguesas ao Brasil.
A carta exalta a partida como uma decisão digna e corajosa: “Os sentimentos de amizade e o laço verdadeiro que Vossa Alteza Real evoca em sua carta, que acabo de receber, tocaram meu coração, ainda que este não se surpreenda com sua expressão. Estou firmemente persuadido que Vossa Alteza Real (assim como Sua Majestade Britânica e Sua Alteza Real, o príncipe de Gales), aprovariam a resolução firme e enérgica que tomei para salvar a dignidade, independência e a honra de minha coroa, assim como os direitos da minha família real. Quando a Europa saberá com que boa fé tentei, com tanto sacrifício, poupar o sangue de meus povos, em pleno acordo com o nosso antigo e fiel aliado, Sua Majestade Britânica, será então reconhecida tanto a pureza de minha conduta quanto a perversidade de nossos inimigos. Em meio a tantos perigos, é bem doce ao meu coração ver reforçados os laços que unem há tantos séculos meus súditos ao de Sua Majestade Britânica e que, por tudo que acaba de ocorrer, tornam-se agora indestrutíveis”.
Poucas cartas protocolares mencionam tão claramente eventos fundamentais como esta, que apresenta como heroico o apressado traslado de toda a corte portuguesa ao Brasil.
A carta é também particularmente notável por trazer uma forma rara da assinatura de D. João: batizado como D. João Carlos, o príncipe regente assina “Jean”, com um entrelaçado à inicial J.
Esta carta, desconhecida pelos historiadores, ressurgiu no final do ano passado, num leilão nos Estados Unidos, quando foi adquirida por seu atual detentor.