A profecia era óbvia demais para que não se realizasse. Quantos de nós não alertamos para a possível repetição de cenas como as da invasão do Capitólio no Brasil. Exatos dois anos e dois dias após as lamentáveis cenas na América do Norte, o Congresso – além do Planalto e do STF– foi invadido na América do Sul.
Em junho do ano passado,escrevemos, aqui para o site da revista piauí, um artigo comentando as investigações que o Congresso dos Estados Unidos estava fazendo sobre a invasão de 6 de janeiro. Comentamos que as palavras da então deputada republicana Liz Cheney sobre os fatos passados lá pareciam prever o futuro no Brasil. Ela disse, à época:
“Centenas de nossos compatriotas enfrentaram processos criminais. Muitos estão presos porque acreditaram no que Donald Trump estava dizendo sobre as eleições e atuaram a partir disso.”
Claro que há diferenças entre o Capitólio e o Planalto. Duas principais, Lula já tomou posse, Trump ainda era presidente em 6 de janeiro de 2021. E Trump incitou diretamente seus apoiadores à invasão, enquanto Bolsonaro foi mais discreto. Mas a própria fala de Liz Cheney evoca o fato de que a principal responsabilidade de Trump não foi incitar diretamente os atos, e sim o fato de alimentar constantemente a mentira de que a eleição não havia sido limpa. E, nesse ponto, Bolsonaro é tão ou mais responsável que seu modelo do Norte.
As semelhanças, em compensação, são inúmeras. Na violência, no desrespeito às instituições democráticas e suas representações simbólicas, no patriotismo falso que ama a bandeira e odeia a Constituição e, principalmente na sustentação das manifestações violentas em uma rede de mentiras sofisticada e bem articulada, capaz de mobilizar eleitores e criminosos de maneira espetacularmente poderosa.
Claro que a metáfora mais bem acabada das semelhanças entre os dois países se materializa na figura de George Santos, filho de brasileiros eleito para o Congresso norte-americano. Republicano, trumpista e bolsonarista, ele conseguiu se eleger a partir de uma quantidade cavalar de mentiras a ponto de o jornal The New York Times publicar um artigo com a seguinte manchete: “George Santos está alargando a tolerância a mentiras na política dos Estados Unidos.”
A rede de produção e propagação de mentiras como principal arma política não é exclusividade de Estados Unidos e Brasil. Mas há algo de específico na situação desses dois países. São os dois únicos casos que elegeram líderes autoritários a partir dessas redes de desinformação, mas que viram uma resistência cidadã se articular e derrotar esses líderes nas urnas. Em todos os outros casos, os líderes foram reeleitos e iniciaram um processo até agora sem volta de destruição gradual da democracia.
É como se Brasil e Estados Unidos tivessem ganhado uma segunda chance da democracia. Não sabemos quantos países ganharão essa segunda chance. Nem se a democracia nos dará alguma outra. Portanto, há que pensar como aproveitá-la. E há que aprender com erros e acertos dos dois países.
Tanto o caso do Capitólio quanto o caso de George Santos têm mostrado uma dificuldade enorme dos Estados Unidos em atuar para responsabilizar as redes de mentira, seus articuladores, financiadores e beneficiários. O que vemos é um país que se notabilizou por utilizar a força de seu aparato estatal para enfrentar formas novas de criminalidade (guerra às drogas e guerra ao terror são dois exemplos) atuando de forma tímida quando a vítima é o processo democrático.
A escala do desafio exige novas instituições e novas formas de se empreender o esforço estatal para enfrentar o autoritarismo extremista nessa que pode ser a última oportunidade que a democracia nos confere.
O Brasil conseguiu em grande medida sobreviver à crise democrática dos últimos quatro anos não porque suas instituições funcionaram normalmente, mas sim porque, cientes dos ataques constantes à democracia vindos diretamente do presidente da República e de seus sustentáculos econômicos e militares, o Poder Judiciário assumiu funções e exerceu uma força no limite de sua autoridade Constitucional. Isso foi necessário principalmente pela cumplicidade da Procuradoria-Geral da República que silenciou o Ministério Público, afetando o equilíbrio dos freios e contrapesos da República.
Esse modelo, de uma hipertrofia do Judiciário como única instituição de defesa da democracia, não é desejável e nem sustentável a longo prazo. É por isso que é fundamental que o Estado brasileiro se reformule para estar preparado para enfrentar a maior ameaça à democracia desde a promulgação da Constituição de 1988.
Claro que um dos elementos centrais para a construção da resistência republicana aos ataques antidemocráticos é a reconstrução do papel do Ministério Público. Não surpreendeu a resposta tardia e ínsipida do Procurador-Geral da República Augusto Aras, que após atravessar esse período tenebroso de nossa história de braços dados com o autoritarismo, cravou o último prego em sua reputação inerte enquanto a República exigia força.
A indicação do próximo procurador-geral deve ter como foco uma pessoa com um programa para transformar o Ministério Público Federal em uma instituição apta a defender a democracia dos ataques a que ela vem sendo submetida.
Mas o Poder Executivo também deve se estruturar para isso. E, nesse sentido, além da postura firme do ministro Flávio Dino mesmo antes da posse, vários passos positivos já foram dados. No Ministério da Justiça, a indicação da advogada Estela Aranha, com ampla experiência no debate sobre direitos digitais é um ótimo prenúncio. Na Secretaria de Comunicação Social da Presidência, a criação da Secretaria de Políticas Digitais demonstra a necessidade de se pensar uma comunicação ativa contra o extremismo nas redes, como forma de proteger a democracia.
Mas talvez a principal medida tenha sido a criação, pelo ministro Jorge Messias, da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia no âmbito da Advocacia-Geral da União. Esse órgão, visto com ceticismo por alguns na primeira semana de governo, mostra-se um grande acerto depois dos ataques do dia 8. É necessário compreender que, no Brasil, em que a rede de mentiras age constantemente no ambiente político, não é possível implementar políticas públicas sem uma estratégia jurídica de combate à desinformação. A política de vacinação, de combate ao desmatamento, a oferta de benefícios sociais aos mais vulneráveis, são exemplos de alvos claros dessas redes de mentiras, e cabe à Advocacia de Estado, exercida pela AGU, tomar as medidas cabíveis para que a desinformação não afete a implementação de políticas públicas. Também cabe à AGU a defesa de servidores federais e agentes políticos que sejam vítimas de discurso de ódio e ameaças. E, finalmente, cabe à AGU atuar para proteger o patrimônio público ou empreender todos os esforços para recuperar os danos ocorridos, como foi o caso da destruição do último domingo. A ação rápida do Advogado-Geral da União na noite do dia 8 de janeiro mostra a necessidade de tal estrutura.
É claro que essa reformulação de órgãos estatais para equipar a democracia brasileira para a defesa de ataques autoritários deve ser acompanhada com atenção pela sociedade civil, pela imprensa e pelos órgãos de controle. É sabido que pode ser nebulosa a fronteira entre discurso de ódio e liberdade de expressão, entre desinformação e a crítica legítima a políticas públicas. Mas com estruturas independentes para fiscalizar e com a imprensa livre para apontar excessos, pode-se criar, no Brasil, um modelo eficiente para enfrentar o autoritarismo.
O que aprendemos olhando para os Estados Unidos e para o Brasil é que o sistema de freios e contrapesos montado pela Constituição norte-americana há mais de duzentos anos já não é suficiente para proteger a democracia. O enfrentamento do autoritarismo vai exigir um esforço coletivo de todos que se considerem democratas.