Jair Bolsonaro é o pior governante que o Brasil já teve nos 199 anos desde o Sete de Setembro de 1822? Tudo depende da régua pela qual medimos seu desempenho. Se esperamos dele as realizações de um governo comum, como atender às grandes urgências do país ou pôr em prática um plano que nos eleve de patamar como nação, então, sim, Bolsonaro é o pior líder que já tivemos desde o grito do Ipiranga.
Mas e se seu plano for outro? Ou melhor: e se o plano de Bolsonaro for o mesmo desde sempre, aquele pelo qual ele trabalhou em todos os instantes de sua vida em que não estivesse dormindo, comendo, tomando banho, contratando funcionários fantasmas ou ensinando a arte da rachadinha aos filhos? Se enxergarmos em Jair Bolsonaro o propósito de trabalhar firmemente pela destruição da democracia implementada pela Constituição de 1988, documento que ele sempre desprezou por consagrar a derrota da ditadura cuja idolatria é o único sentido de sua vida pública, então Bolsonaro não vai mal. Ao contrário: nunca um presidente foi tão bem-sucedido em corroer as instituições de um sistema constitucional em tão pouco tempo.
Para um presidente que vive de hostilizar a democracia liberal, com as limitações de poder a ela inerentes, a tarde de hoje foi uma glória. Rivalidades políticas à parte, é impossível não se preocupar com a quantidade de gente que gastou um feriado ensolarado para se aglomerar empunhando cartazes golpistas, tietar Fabrício Queiroz e ouvir ameaças explícitas ao Poder Judiciário disfarçadas de exortações ocas à Constituição e suas quatro linhas, que Bolsonaro desenha conforme lhe convém. Em São Paulo, especialmente, o protesto foi expressivo.
É curioso notar a frequência com que Jair Bolsonaro tem invocado a Constituição que ele sempre desprezou. Até as vésperas da sua posse, a retórica dominante era a da guerra e da eliminação dos adversários, fuzilados ou encontrados na ponta da praia. Não era só papo de candidato: nos primeiros meses da pandemia, Bolsonaro e seu entorno mais fiel, inclusive de ministros de Estado, voltaram à carga contra os demais poderes que a Constituição empodera tanto quanto a Presidência da República: “não queremos negociar nada”, “acabou a época da patifaria”, alertou o presidente poucos dias após o STF confirmar os poderes de governadores e prefeitos na gestão da pandemia.
Desde então, estava claro o fundamento pelo qual Bolsonaro julgava que podia fazer o que faz: a especial relação que ele diz ter com uma parcela do povo que é tão especial quanto ele, por representarem, todos juntos, os verdadeiros brasileiros. “Agora é o povo no poder”, “agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Os partidos de oposição e Rodrigo Maia, Alexandre de Moraes e o resto do STF, prefeitos e governadores, a crescente proporção de brasileiros que reprova o seu governo, todos precisariam esquecer os direitos, as competências e poderes que a Constituição lhes reconhece e “entender que estão submissos à vontade do povo”, que não se confunde nem com maiorias eleitorais episódicas, nem com aqueles que oscilam na aprovação ou reprovação ao governo. O povo é quem se liga a Bolsonaro por uma relação de confiança e identificação metafísica. “Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil”, disse ele em 19 de abril de 2020, como poderia ter dito neste Sete de Setembro de 2021.
De lá para cá, ao menos duas mudanças importantes aconteceram no xadrez político nacional. A primeira, o controle da Câmara dos Deputados por Arthur Lira (PP-AL), político com quem Bolsonaro selou – “heteramente”, ele frisaria – um casamento de conveniência, no qual deputadas e deputados fazem a festa com o cartão de crédito do Tesouro Nacional, Bolsonaro segue destruindo a Constituição, e Paulo Guedes não reclama. A segunda, que se liga à primeira e explica muito do tom deste Sete de Setembro, foi a elevação do Supremo Tribunal Federal ao posto de inimigo número um de Bolsonaro. Performando ao fundo, enquanto isso, esteve a popularidade decrescente do governo, cuja percepção de ruim/péssimo subiu mais de 20 pontos percentuais desde abril de 2020 até o mês passado, pressionando Bolsonaro a recorrer cada vez mais à única habilidade de seu repertório: a capacidade de barbarizar.
É possível imaginar que essa mudança deva-se não apenas à neutralização da ameaça que poderia vir do Congresso Nacional, onde a turma liderada por Arthur Lira está ocupada demais fazendo o papel de cupim, como também à percepção do presidente de que o STF assumiu o papel impróprio de oposição ao governo. Em maio de 2020, o então decano Celso de Mello, liderança incontestável do Supremo àquela altura, expôs ao Brasil as entranhas de uma reunião de governo ocorrida no mês anterior, onde ministros como Abraham Weintraub e Damares Alves falavam em prisão de adversários, inclusive ministros do STF. Estavam todos inflamados pela derrota imposta pelo tribunal ao governo federal na disputa contra prefeitos e governadores por conta da possibilidade de decretação de medidas restritivas em razão da pandemia. A decisão é até hoje pretexto para mentiras e campanhas de desinformação, inclusive com participação pessoal do presidente.
O antagonismo entre STF e Bolsonaro espraiou-se a partir de então para o inquérito das fake news, uma investigação que existia desde 2019 e não havia incomodado o governo até ali, enquanto mirava apenas adversários como os procuradores da Lava Jato de Curitiba e outras figuras desimportantes da fauna bolsonarista. A coisa mudou de figura quando os canhões do inquérito voltaram-se contra nomes importantes do bolsonarismo nas redes sociais, como os blogueiros Oswaldo Eustáquio e Allan dos Santos, em julho de 2020. Foi só então que Bolsonaro passou a invocar as balizas da Constituição, insistindo na ilegalidade de um inquérito tocado à revelia do Ministério Público: a PGR já havia se manifestado pelo arquivamento da investigação desde a gestão Raquel Dodge, em abril de 2019. O restante da Constituição, que ordena coisas como decoro presidencial, demarcação de terras indígenas ou proteção do meio ambiente, ele seguiu ignorando.
Dando a Jair Bolsonaro um crédito que ele não merece, é possível especular que o seu transtorno paranoide contra o STF, que serviu de principal mote aglutinador para o festival golpista de hoje, tenha chegado ao cume com a surpreendente decisão do ministro Edson Fachin de anular as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em março de 2021. A decisão, que abriu caminho para devolver a Lula os direitos políticos a tempo das próximas eleições, não é mesmo fácil de ser explicada, não tanto pelo seu mérito, e sim por seu indecifrável percurso.
Desde os primeiros momentos da Lava Jato, Lula brigou com unhas e dentes por sua inocência nas ações penais e depois por seu direito de candidatura, na Justiça Eleitoral, e invariavelmente perdeu. Como era possível que, apenas três anos depois, os mesmos ministros e ministras reconhecessem que tudo estava errado, e havia de ser desfeito? Um espanto adicional vinha tanto do meio – uma decisão solitária do ministro Fachin, que aparentemente desautorizava um edifício de julgamentos anteriores que vinham da primeira instância e alcançava o próprio STF – quanto do fundamento de sua decisão, que apontava a incompetência da 13ª Vara de Curitiba para a condução dos processos. O leigo perguntará, como toda razão, se algum dos supremos achava que Moro era juiz do Guarujá, ou de Atibaia. É evidente que os mais céticos se perguntarão se não houve mesmo cálculos políticos por trás dessa suprema bateção de cabeças.
O percurso absolutamente irracional do Supremo para decidir as ações em que os interesses e direitos de Lula estavam em jogo fornece um importante combustível para a desconfiança do imaginário bolsonarista contra a integridade das eleições e da Justiça Eleitoral. Os protestos contra “voto não auditável” e “apuração sigilosa” ganham apelo para quem enxerga que os mesmos ministros que defendem o atual formato das votações deram um cavalo de pau em sua jurisprudência para reabilitar um candidato condenado em duas instâncias, e que estava dentro de uma cela, com aval desses mesmos ministros, quando Bolsonaro foi eleito.
Como fazem os céticos das vacinas e da Terra esférica, é claro que esses mesmos descrentes ignoram as evidências que vão contra suas certezas, como as reportagens da Vaza Jato e as vozes de tantos juristas que sempre apontaram ilegalidades na atuação de Sergio Moro e da trupe de Deltan Dallagnol. Preferem fixar-se na certeza da qual não estão dispostos a abrir mão: todos que estão contra Bolsonaro participam de uma conspiração esquerdista para impedir o sucesso de seu governo, e não há por que excluir dela os membros do tribunal que estão montando o tabuleiro para a derrota do Mito no ano que vem, seja escolhendo o candidato com mais chances de batê-lo (Lula), seja escolhendo as urnas (eletrônicas e sem comprovante de voto impresso) na qual a farsa eleitoral será encenada. Neste Sete de Setembro, os gritos contra as urnas foram também gritos contra o Supremo Tribunal Federal.
2021 foi o ano em que Jair Bolsonaro percebeu que seu projeto de destruição substantiva da nossa democracia seria muito mais difícil se ele mantivesse sua tradicional retórica de explícito antagonismo à Constituição de 1988. Celebrar a ponta da praia, o coronel Ustra e o fuzilamento de adversários objetivamente reduz as chances de êxito desse seu objetivo maior, porque aliena apoio de gente que acha a atual Constituição ruim e toparia substituí-la por outra sem pestanejar, mas não fica totalmente à vontade em comemorar extermínios e tortura. A retórica ponta da praia dá combustível fácil a quem quer desacreditar Bolsonaro como sujeito cruel, pecha que se tornou mais crível para fora do círculo de seus adversários a partir de seu comportamento chocantemente insensível e desumano para com as mortes da pandemia.
Para mudar esse quadro, ele precisa, de um lado, desacreditar a instituição majoritariamente associada à defesa da Constituição em nosso imaginário político – o Supremo Tribunal Federal. Este tem sido o principal objetivo político no qual ele realmente se empenha de uns tempos para cá. De outro lado, Bolsonaro precisou começar a adotar ele próprio uma retórica valorização da Constituição, ainda que completamente desprovida de substância. Isso explica por que temos ouvido, à exaustão, a cantilena das “quatro linhas”, que começou a ser repetida por ele a partir de março deste ano, mesma época em que o STF começou a reabilitar a candidatura de Lula para 2022, e foi repetida em suas falas de hoje.
Bolsonaro parece ter aprendido duas lições valiosas que ensinamos nas faculdades de direito. A primeira é que estar ao lado do direito é uma vantagem para qualquer governante, seja ele um democrata ou um autoritário: além de eficiência burocrática, o direito fornece um princípio de legitimidade para qualquer ação governamental, que passa pela simbologia de suas formas e pela aparência de normalidade que ele confere. A segunda é que o direito é relativamente indiferente à qualidade democrática dos atos que ele viabiliza: as economias escravistas, os governos segregacionistas na África do Sul e nos Estados Unidos, o nazismo e as ditaduras sanguinárias da América Latina, todos tinham direito, constituições e juristas que os justificavam com naturalidade.
A escolha entre aniquilar uma constituição ou apropriar-se dela para mudar-lhe totalmente o sentido é, para uma alma autocrática com a de Bolsonaro, uma decisão de momento, a ser tomada à luz da conjuntura do dia. É neste pé que se encontra seu projeto golpista, bastante visível nas comemorações de hoje: como já aconteceu com a camisa amarela da Seleção, com a bandeira do Brasil e com a própria data festiva da Independência, seu principal objetivo de momento é apropriar-se da Constituição, desde que ele possa controlar o modo como ela é interpretada. Para isso, além da insistente projeção de desconfiança sobre o Supremo como intérprete preferencial do texto constitucional, há um trabalho de formiguinha que Bolsonaro e seu séquito têm cumprido com obstinação.
A habilidade de distorcer a Constituição para enxergar nela o que convém vem sendo treinada na esfera pública há algum tempo pelos bolsonaristas, que teimam em defender que o artigo 142 da Constituição eleva as Forças Armadas a uma espécie de Poder Moderador. O atual fetiche dessa escola de pseudopensamento jurídico está no conceito de “liberdade”, que para os bolsonaristas se resume à ausência de limites, sem parâmetros ou responsabilidades. No imaginário constitucional bolsonarista, não há diferença entre aquilo que o bêbado pode dizer em um boteco vazio sobre os ministros do STF e aquilo que o presidente da República pode incitar a seus milhões de apoiadores a fazer contra o tribunal, ainda que a Constituição textualmente exija deste último o compromisso com o livre exercício do poder Judiciário, concorde ele ou não com suas decisões.
Nessa Constituição imaginada, as quatro linhas aplicam-se mais aos outros do que ao presidente. Do Poder Judiciário, por exemplo, o presidente pode exigir que não estique a corda, ao mesmo tempo em que ele próprio fica dispensado de considerar a temperatura e a pressão do momento, pintando alvos a todo instante nas costas de ministros do Supremo com os quais ele escolheu antagonizar. Como alguém que insiste em se identificar essencialmente com o povo, que é soberano – não por acaso, outro trecho da Constituição reiteradamente lembrado por Bolsonaro –, os limites da ordem jurídica valem mais para os outros. Ele observa as regras de cima, sem submeter-se propriamente a elas. No constitucionalismo bolsonarista, esquerdistas devem ir para a cadeia e Alexandre de Moraes deve sofrer impeachment, mas o presidente da República nunca será preso e só deixa o cargo quando Deus quiser.
Outro pilar da fantasia constitucional bolsonarista está na ideia estapafúrdia de que o Executivo, com apoio das Forças Armadas, tem o direito de responder “fora das quatro linhas” caso o STF tome alguma medida que o mesmo Executivo julgue constitucionalmente imprópria. Além do contrassenso de que a própria Presidência da República será o juízo final das circunstâncias nas quais ela pode justificadamente abandonar a Constituição e partir para cima de um tribunal, esse poder não existiria sequer na hipótese de haver relativo consenso jurídico sobre o erro de alguma decisão judicial. A Constituição não pode garantir que juízes, ou qualquer outra autoridade, acertem sempre; ela só pode garantir meios para que eventuais erros tenham a chance de ser corrigidos, através de recursos. Mas de modo algum o dever de obediência a decisões judiciais, especialmente por parte de agentes públicos, está condicionado à concordância com o mérito das decisões.
Por fim, essa Constituição inventada acaba com a proibição de que militares tomem partido nas disputas políticas civis. Até aqui, nunca houve dúvida sincera de que a linha que demarca o protesto legítimo ou ilegítimo desses agentes esteve no binômio ativa versus reserva: militares da ativa devem guardar estrita neutralidade diante das oposições que agitam a política civil, pois terão o dever de servir a qualquer lado que vença eleições. Na nova hermenêutica bolsonarista, os binômios pretendem-se outros, sempre de modo a permitir que oficiais da ativa, que empunham armas e exercem o monopólio estatal da violência, tomem partido: militares em dia de folga, de férias, ou simplesmente sem farda estariam liberados para participar de manifestação que pedem o fechamento de um tribunal que, no dia seguinte, eles podem ser convocados para proteger – ou seria para constranger? A hermenêutica golpista de Bolsonaro dá fundamentação jurídica à anarquia militar.
O Sete de Setembro de Jair Bolsonaro, ao fim e ao cabo, foi uma grande encenação para passar alguns recados claros. O primeiro é que o governo está enfraquecido por sua incompetência notória e por sua impopularidade crescente, mas não é uma força política morta. Bolsonaro não foi amador como Fernando Collor, que convocou um protesto de improviso em 1992 e viu o tiro sair pela culatra: preparou sua manifestação por meses, empenhou-se pessoalmente em sucessivas convocações e garantiu financiamento para caravanas e carros de som, de modo a não correr o risco do insucesso. A briga está longe do fim, o governo não está morto e sabe usar seus poderes, inclusive legais, para manter-se na disputa.
O segundo recado é estampar, em cores fortes e letras garrafais, o risco que o Supremo corre ao seguir tomando decisões que o governo desaprove, já que há um número não desprezível de cidadãos e organizações dispostos a bancar o Executivo em um confronto com o Judiciário mesmo “fora das quatro linhas”. Quem esteve hoje nas ruas, e quem aprova as manifestações mesmo sem ter ido a elas, aplaudirá qualquer medida do governo que desafie o tribunal, que terá cada vez mais de fazer o cálculo mais perigoso para uma instituição judicial: como garantir que suas decisões sejam cumpridas caso o governo ou seus apoiadores oponham resistência a elas. O Supremo terá força para executar uma decisão sua que fira os brios do Exército, ao atingir, digamos, um militar que faz ou tenha feito parte do governo? Os ministros mandariam empregar força contra um local cercado por apoiadores civis do presidente? Eles terão como garantir fidelidade de agentes policiais dos quais suas ordens poderão depender?
Os ministros do STF hão de saber que qualquer recuo seu, a partir de agora, perigará desacreditar o tribunal, o que seria fatal para sua autoridade. Tribunais só têm força na medida em que há expectativa social de que suas decisões serão obedecidas, pois são legítimas e obedecê-las é um dever inegociável. Se a alternativa da desobediência tornar-se carta que algum dos jogadores se disponha a jogar, o tribunal precisa garantir que esse jogador seja exemplarmente punido e eliminado do jogo, sob pena de rumar para a irrelevância. Mas como garantir isso quando esse jogador é o próprio presidente da República, embalado por um número considerável de fiéis apoiadores, e blindado por uma costura até aqui bem feita na Câmara dos Deputados? Esta carta está no jogo, e Bolsonaro a tem nas mãos: este foi um segundo recado de hoje, especialmente em sua fala na Avenida Paulista.
Um terceiro recado foi para os outros ministros do Supremo que não são Alexandre de Moraes ou Luís Roberto Barroso: ou o STF “enquadra os seus”, ou acontecerá “aquilo que não queremos”. Hoje foi o dia em que o presidente da República convocou multidões para servirem de testemunha à escolha que ele apresentou aos demais ministros do tribunal. Ou eles convencem seus dois colegas a deixarem o governo em paz, ou todos os onze estarão em situação pior em breve. Na Constituição imaginada de Bolsonaro, ele tem o direito constitucional de não ser contrariado por juízes. Ameaçá-los em praça pública é liberdade de expressão, não crime de responsabilidade.