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    Protesto de moradores do Jacarezinho - Foto: Ramon Vellasco/Futura Press/Folhapress

diário do Jacarezinho

Da vingança ao silêncio

A história da operação policial que matou 27 pessoas no Rio de Janeiro e não mudou nada na comunidade onde ocorreu – mas provocou a decretação de sigilo oficial sobre documentos do caso

Caio Barretto Briso | 26 maio 2021_17h30
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Edição: Fernanda da Escóssia

“Essa é a braba”, diz um vapor do Comando Vermelho, um jovem de 20 e poucos anos, cigarro na boca e chinelos nos pés. “A minha é melhor, soco no peito, arria a pressão”, grita outro, seduzindo um freguês indeciso diante de várias mesas fartas de maconha. Quatro homens disputam a atenção e o dinheiro de quem passa pela chamada “boca da Praça”, na entrada do Jacarezinho, Zona Norte do Rio. Dois soldados do tráfico seguram fuzis e observam tudo. Mais três homens armados, com mochilas nas costas e olhos atentos, dão plantão em um beco próximo enquanto se abrigam da chuva fina sob uma marquise. São 9h15 de sexta-feira, 7 de maio. Paredes estão marcadas por tiros da véspera, incontáveis perfurações que se sobrepuseram a outras mais antigas. Na Rua Amaro Rangel, coração da favela, lojas reabrem aos poucos para ninguém. Com transformadores de luz explodidos pelas balas e caixas d’água furadas, muitos estão sem luz e sem água em casa, outros não têm o que comer. A piauí reconstitui, a partir do relato de cinco dias passados no Jacarezinho, a história da matança que agora está sob segredo oficial: a Polícia Civil determinou sigilo de cinco anos sobre documentos dessa ação e de outras operações em favelas. No Jacarezinho, as ruas vazias e o silêncio incomum um dia após a invasão da polícia indicam que algo mudou por ali. As armas, as drogas e os jovens perdidos para o crime mostram que tudo continua igual.

 

DIA DE MATANÇA

Vinte e quatro horas antes, no dia 6 de maio, a Polícia Civil empilhava 27 corpos negros na favela. O primeiro a morrer não está nessa conta: foi o agente André Leonardo de Mello Frias, minutos após desembarcar de um veículo blindado com outros sete policiais, às 6h10, para retirar uma barricada do caminho na Rua José Maria Belo. Frias dava cobertura aos companheiros que removiam a barreira feita com trilhos de trem e concreto. A primeira rajada de tiros passou perto. A segunda feriu um agente no braço e derrubou Frias com um disparo na cabeça. Oito anos de polícia, casado, padrasto de um menino de 10 anos que o idolatrava, Frias era um dos 250 homens do Estado que invadiram a favela no amanhecer daquela quinta-feira. A morte imediata do policial de 48 anos foi a senha para o início da carnificina, com os agentes da lei entrando por todos os acessos, encurralando vapores, soldados e moradores no momento em que muitos saíam para trabalhar. 

“Sete homens armados pulando de uma casa para outra, de uma laje para outra, alguns deles com fuzis”, anunciou ao sobrevoar o Jacarezinho um repórter da TV Globo, enquanto a fuga era transmitida. “Agora são 7h26. É crime ao vivo no Bom Dia Rio”, empolgou-se o jornalista da maior emissora do país. Avisada na véspera, uma equipe da TV Record entrou na favela por terra com a tropa, filmando cada passo da Cidade da Polícia até o centro da comunidade. O Jacarezinho é tão perto da sede da corporação que muitos agentes foram a pé. Só precisaram atravessar a Avenida Dom Hélder Câmara, repleta de barracos de madeira que abrigam moradores de rua e usuários de crack, e caminhar 200 metros para entrar na comunidade. Não só jornalistas souberam da ação na véspera. Além dos corpos, dos sete presos e de 24 armas apreendidas, sendo cinco fuzis, policiais saíram da comunidade carregando um documento achado em uma casa e com papel timbrado do Ministério Público estadual, com informações sobre a operação. Quando a ação da polícia começou, o chefe do tráfico, Adriano Souza de Freitas, de 38 anos, vulgo Chico Bento, não estava mais na favela. 

Acordada pelo estrondo de tiros e dois helicópteros, Thaciana Barbosa, de 18 anos, começou a gravar uma live com seu celular no Instagram. Moradora da Beira do Rio, à margem do Rio Jacaré, que atravessa e batiza a favela, filmava homens fardados passando em frente à sua casa quando o amigo Richard Gabriel Ferreira, de 23 anos, comentou na live: “Me ajuda, Thacy, por favor.” Kako, como era conhecido, estava escondido em uma casa na Rua São Manoel ao lado de Isaac Pinheiro de Oliveira, um ano mais novo, que morava com Thaciana e a mãe dela. Isaac havia sido baleado e a moradora da casa onde eles se esconderam gravou um vídeo, ao qual a piauí teve acesso, em que ele aparece com duas perfurações nas costas. Gabriel e Isaac, o Pé, eram inseparáveis na vida e no crime. Segundo Thaciana, Gabriel disse a Isaac que estava se sentindo fraco e pediu que ele fosse embora para se salvar. “Vou morrer contigo”, respondeu o amigo. Dois agentes chegaram à casa ao meio-dia com mandados de prisão contra os dois, mas preferiram improvisar sentenças de morte. Em um áudio de nove segundos, gravado por um morador que ouviu tudo, escuta-se a voz de um policial: “Kako, Kako, não bota a cara, não.” Oito disparos ecoaram no morro. Terminou ali a operação mais letal da história do Rio.

Em entrevista coletiva após a operação, os delegados Felipe Curi, diretor do Departamento Geral de Polícia Especializada da Civil, e Rodrigo Oliveira, subchefe operacional, disseram que o motivo da operação Exceptis era proteger as crianças e adolescentes do Jacarezinho. Segundo eles, menores estariam sendo aliciados pelo Comando Vermelho para ações criminosas como tráfico de drogas e roubo de trilhos da linha férrea que passa pela comunidade. “Não é razoável supor que crianças sejam aliciadas pelo tráfico. Eles aliciavam filhos de trabalhadores. Para realizar essa operação, fizemos muitos planejamentos e seguimos os protocolos. O resultado de hoje fala por si só”, disse Oliveira. Que há menores no tráfico é algo que até os postes da Avenida Dom Hélder Câmara sabem, mas o relatório do inquérito policial instaurado pelo delegado Pedro Bittencourt não menciona isso, informou o jornal Folha de S.Paulo. Segundo o documento, a intenção era cumprir 21 mandados de prisão. 

A intelligentsia da tropa fluminense se baseou em fotos no Twitter postadas pelos investigados. A polícia encontrou seis dos 21 procurados: prendeu três e matou outros três (Gabriel, Isaac e Rômulo). Durante a entrevista coletiva, o delegado Felipe Curi disse que “a única execução foi a do policial. As outras mortes que aconteceram foram de criminosos que nos atacaram”. Conduzida pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, a operação terminou com a morte de um menor de idade: Caio da Silva Figueiredo, de 17 anos, que não tinha antecedentes criminais. Sua irmã disse que ele morava em Paracambi, município da Região Metropolitana do Rio, mas mudou-se para o Jacarezinho um mês antes de morrer. Segundo ela, Caio vendia drogas – e, como todo vapor, estava desarmado. Faria aniversário dia 31 de maio.

 

DIA DE REVOLTA

Jornalistas do mundo inteiro se encontraram na manhã seguinte na quadra da escola de samba Unidos do Jacarezinho, na entrada da comunidade. Havia repórteres e fotógrafos dos principais veículos do país, correspondentes dos jornais The Guardian, Le Monde e até de uma emissora da Coreia do Sul. Todos esperavam uma oportunidade para entrar com segurança e conversar com as famílias das vítimas, algo difícil sem um morador antigo ao lado. Um protesto estava marcado para o fim da tarde. O presidente da associação de moradores, Leonardo Pimentel, de 35 anos, sem dormir na noite anterior, demonstrava exaustão. Em uma favela de comércio intenso, mas onde falta tudo, ele é uma espécie de prefeito. Não consegue andar sem ser parado por algum morador precisando de cesta básica, remédio, atenção. Em geral calmo, dessa vez parecia prestes a explodir ao participar de uma reunião com líderes comunitários. Ao chegar sua vez de falar, levantou-se: “O mal interessa a alguém. Essa quantidade de balas no peito e na alma dos moradores… Alguém lucra com isso. Se a gente se calar, amanhã acontece de novo. Podem ser vocês, pode ser eu. Enquanto tivermos vida, vamos lutar por ela. Hoje o Jacarezinho vai pra rua.”

O Jacarezinho na rua não é pouca coisa. A favela é uma das maiores da cidade em território, com 94 hectares. Do tamanho do bairro do Leme, tinha 40 mil moradores em 2010 – a associação de moradores estima que hoje são 90 mil. É um aglomerado de becos estreitos e com apenas quatro ruas onde é possível transitar de carro. A comunidade que virou bairro em 1992, mas que nunca ganhou um equipamento de cultura e lazer, está sendo atingida por duas epidemias: a da Covid-19, com 1172 casos e 85 mortes (sétima favela com mais casos na cidade), e a da tuberculose, que tem índice de casos quatro vezes superior à média da cidade, a pior entre todas as capitais brasileiras, segundo o Ministério da Saúde. Longe da Zona Sul e sem a mesma exposição midiática de outras comunidades, é uma terra esquecida. A única diversão dos moradores, além dos bares, é jogar futebol no Campo do Abóbora, onde o ex-jogador Romário deu seus primeiros chutes. Um dia após a tragédia, ele discursou no Senado: “Precisamos de uma mudança profunda no combate ao crime no Rio e no Brasil. O Estado precisa investir massivamente nas favelas. Precisamos de educação de alto nível, saúde, estrutura, saneamento básico. O Estado precisa combater a pobreza e o preconceito, fatores determinantes para que tantas pessoas ainda vivam em condições degradantes e expostas à violência e à falta de oportunidades. O Rio de Janeiro e o Brasil poderiam aproveitar este momento e fazer uma profunda reflexão, ter este dia como um marco e oferecer algo novo às comunidades.”

A brutalidade policial no Jacarezinho repete-se em moto-contínuo há mais de trinta anos. Em 1987, policiais invadiram a comunidade com fuzis, novidade no armamento das forças de segurança na época, e o então governador, Moreira Franco, prometeu ocupação permanente. Foi após a morte de Paulo Roberto de Moura Lima, o Meio-Quilo, uma lenda do Comando Vermelho. Ao tentar fugir de helicóptero do antigo complexo penitenciário Frei Caneca, acabou caindo e ficou internado no Hospital Souza Aguiar. Sobreviveu, teve alta e foi transferido de volta para o presídio – onde chegou morto, assassinado no camburão. Três mil pessoas foram ao enterro e entoaram “ei, ei, ei, Meio-Quilo é nosso rei”. Com a visão assistencialista dos fundadores do CV, Meio-Quilo fazia obras e ajudava os mais pobres. Fazia sucesso dentro e fora da favela – namorou Maria Paula Amaral, filha do então vice-governador do Rio de Janeiro, relação noticiada à época por todos os jornais da cidade.

Em 2017, a Polícia Civil matou sete moradores – entre eles um feirante, um mototaxista e uma aposentada – após onze dias seguidos de incursões em busca dos responsáveis pela morte do agente Bruno Guimarães Bühler, de 36 anos, assassinado durante um confronto. No ano seguinte houve mais mortes no local depois que bandidos mataram o delegado Fábio Monteiro, que trabalhava na Cidade da Polícia e foi reconhecido ao sair para almoçar. “Existem rixas históricas ali, uma rivalidade de vizinhos próximos e um conjunto de mágoas antigas. É algo que está completamente fora de controle e que irá piorar porque estamos repetindo os mesmos erros”, afirma o delegado aposentado Cláudio Ferraz, ex-titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas. Ele lembra que o ex-governador Sérgio Cabral construiu a Cidade da Polícia na porta do Jacarezinho, uma das regiões mais miseráveis da cidade, mas não fez investimentos sociais na região. O edifício foi inaugurado em 2013 com 3 mil policiais e passou a sediar treze delegacias especializadas, cinco órgãos de chefia e também a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE, a tropa de elite da Civil). Tudo a poucos passos do Jacarezinho. “A comunidade foi completamente abandonada. Essas operações não mudam uma vírgula na organização criminosa do tráfico. Pelo contrário, aumentam o ódio e atraem mais jovens para o crime. Do ponto de vista dos moradores, criam a certeza de que o Estado é conivente com o extermínio. E a morte do policial não altera nada essa tragédia.”

Uma pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/Universidade Cândido Mendes), a partir de documentos obtidos via Lei de Acesso à Informação e divulgada em março deste ano, descobriu que o estado do Rio investiu 1 bilhão de reais na chamada “guerra às drogas” em 2017 – o suficiente para manter, por um ano, quatro hospitais de referência, ou bancar o aluguel social para 156 mil famílias por um ano. A cientista social Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios do CESeC, diz que a polícia deveria enfrentar o tráfico da mesma forma que combate as milícias e os bandidos de colarinho branco – sem operações homicidas e investindo em investigação, interceptação de armas e de munições. “O resultado dessa política de confronto é que, neste momento, os criminosos do Jacarezinho estão ligando para seus fornecedores de fuzil. Daqui a um mês eles estarão mais armados, não menos. Serão mais pessoas no tráfico, não menos. E na próxima operação haverá mais resistência e mais morte.”

Na noite de sexta-feira, 7, no bar do João, um rapaz escuta “Reflexo”, de MC Cabelinho, enquanto bebe uma Heineken e fuma um balão – baseado que começa com maconha e termina com tabaco, invenção das favelas cariocas. “Quantos dos nossos ainda vão morrer/ pra essa guerra se acabar/ quantos João Pedros e Ágathas/ na mira dos medos e HKs/ quanto mais tempo eu vou dizer/ e você vai fingir não me escutar/ é melhor aprender a não fazer/ pois estou aprendendo a me vingar”, diz a letra, conhecida por todos os jovens de lá. Gravado no Jacarezinho há 10 meses, o clipe foi visto mais de 6 milhões de vezes no Youtube. Um ex-soldado do morro, que decidiu sair do negócio após ver dois irmãos no crime, puxa conversa. “Mataram por vingança. Se morre um policial no fim de uma operação, eles voltam no dia seguinte. Dessa vez o cara morreu no início. O resto da história você já sabe”, diz. Seus irmãos se salvaram: um deles estava em outra favela, onde mora a namorada, e o outro no Jacarezinho mesmo, mas sobreviveu à caçada.

O protesto na Avenida Dom Hélder Câmara, na noite após a matança, começou em frente à Cidade da Polícia. Soldados da PM filmavam com celulares os rostos dos manifestantes. Estavam presentes ativistas sociais da cidade inteira, inclusive gente da Zona Sul que nunca entrara no Jacarezinho. Em homenagem aos mortos, cantou-se em iorubá – herança de Tia Dorinha, última rezadeira da comunidade que lutou para que o bairro mantivesse suas tradições de matriz africana, herdadas dos negros escravizados que fugiam dos engenhos da Serra do Matheus para o Jacarezinho, uma das comunidades mais antigas do Rio. Foi assim que nasceu a comunidade: como um quilombo. Tia Dorinha morreu em 2018 aos 104 anos, mas até hoje é uma referência mesmo para os mais jovens. Mães que perderam seus filhos rezavam. Crianças e adolescentes choravam com olhos revoltados, vivos. Dois meninos observavam a cena um pouco distantes. “Nunca vi tanta gente de fora”, disse o menor, com uns 10 anos de idade. O outro respondeu: “Hoje é o dia mais triste da minha vida.” 

 

DIA DE LIMPEZA

Na manhã de sábado, véspera do Dia das Mães, há manchas de sangue no chão por toda a favela. Uma senhora reclama de um agente que arrebentou o portão de sua casa – gastou 80 reais para trocar a fechadura e mais 20 reais com novas chaves. Muitas pessoas pedem doação de comida na associação dos moradores, mas nada há para doar. No primeiro andar de uma casa na Travessa Jerusalém, na parte alta do Jacarezinho, a família vela o corpo de Rômulo Oliveira Lúcio, de 29 anos, soldado do tráfico. Thaynara Paz, de 22 anos, diz que o marido foi visto algemado e andando na favela com policiais, mas depois apareceu morto. “Ele se entregou e mataram ele”, afirma. Tinham se casado havia sete meses. A polícia negou o uso de arma branca na operação. 

Perto dali, no meio da comunidade, Adriana Santana de Araújo chora inconsolável. Seu filho, Marlon Santana de Araújo, foi um dos 27 mortos. Ligou para a mãe às 8h20 contando que estava encurralado em uma casa e não conseguiria sair. Dez minutos depois, mandou um áudio pedindo a ela que rezasse por ele. Depois disso, silêncio. Oito policiais mataram Marlon e outros seis homens naquela rua. Adriana lembra a emoção do filho ao viajar para a Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, após ser selecionado em um sorteio por uma empresa patrocinadora. Tinha 12 anos. “Ele entrou em campo segurando a bandeira do Brasil”, diz em voz baixa, como se falasse para si mesma. “Ele segurou a bandeira do Brasil.”

Brasil era o sobrenome de outra vítima, Bruno, de 37 anos. Criado na Praça Seca e caçula de cinco irmãos, mudou-se com a família para o Azul, parte mais alta do Jacarezinho, ainda criança. Aprendeu a jogar capoeira com seu pai, mestre da arte marcial que criou um projeto social perto do Jacarezinho onde dava aula de graça para crianças. Bruno manteve o trabalho após o pai morrer no ano passado de aneurisma cerebral. Trabalhava desde os 15 anos, quando começou a fazer entregas em um supermercado perto da comunidade, além de biscates como pedreiro e eletricista. Envolveu-se com o tráfico na juventude, foi preso e passou três anos na cadeia, saindo em 2005. Nos dezesseis anos desde que pagou o que devia à Justiça, nunca mais teve problemas com a lei.

Trabalhava como porteiro em um edifício residencial de Botafogo, Zona Sul do Rio. Todos os dias postava uma foto no Facebook sorrindo na portaria. Foi demitido no meio da pandemia. Comprou um isopor com o dinheiro da rescisão e passou a vender água e doces nos sinais de trânsito da cidade. “Ele tinha orgulho desse trabalho, era o que pagava as contas da casa. Acordava quando o sol nascia para ir ao mercado comprar o que iria vender. Fazia isso todo santo dia”, conta sua irmã, Daniele Brasil, de 36 anos. Bruno estava a caminho do mercado, contam sua irmã e sua namorada, quando a operação começou. “Os policiais o pegaram no Beco da Zélia, levaram até uma casa e o mataram com um tiro na cabeça”, relata a namorada, Paula Cordeiro, de 42 anos, que vivia com Bruno há nove meses. A irmã, que tem passado mal e foi parar duas vezes na emergência de um hospital público após o assassinato, repete sem parar que o caçula, pai de dois filhos, não era bandido. Seu sonho era voltar a ter um emprego de carteira assinada, e que a pandemia passasse logo para retomar as aulas de capoeira. “Meu irmão era trabalhador. Não aceito que digam que ele era bandido”, lamenta Daniele.

Na Rua Santa Teresinha, o sangue de Omar Pereira da Silva, de 21 anos, tingiu de vermelho as paredes cor-de-rosa do quarto de Ana Lúcia, de 9. O rapaz, que trabalhava para o tráfico, foi morto pela polícia entre as bonecas da menina, brinquedos e um pôster da Galinha Pintadinha sobre a cama-box, comprada com o suor de quem vende sopa na rua. Os pais da criança tiveram que jogar o móvel fora, tamanha a quantidade de sangue. Ana Lúcia não quer mais voltar para casa e só dorme na avó. Na manhã da operação, Omar chegou na casa desarmado e baleado. Pediu socorro, uma toalha para estancar o sangramento e ficou deitado no chão, gemendo de dor. Quarenta minutos depois os agentes chegaram – apontaram um fuzil para o dono da casa abraçado à filha antes de executarem Omar a 2 metros de distância da criança, que viu tudo. Antes de sair, os policiais deram mais dois tiros de fuzil na parede do quarto. Declararam em depoimento à Delegacia de Homicídios que foram recebidos a tiros e reagiram à injusta agressão. 

Os 27 do Jacarezinho foram mortos em treze pontos diferentes da favela, entre eles cinco casas, onde os relatos e suspeitas de execução se repetem. Em uma delas, dois jovens foram assassinados em frente ao dono da residência, um estudante de letras de 24 anos. A sala onde a família se reúne à noite para assistir a filmes e séries da Netflix virou cenário de guerra, com sangue e massa encefálica espalhados pelo chão. “Eles estavam desarmados e rendidos. Por que não os prenderam? Nunca ouvi gritos como aqueles, não saem da minha cabeça. Os caras imploraram pela vida”, conta Wesley Leandro, que vive com sua mãe, Valderice, e com a avó Nelita, de 83 anos. Havia um terceiro homem escondido no quarto de dona Nelita. Após assassinar os dois que estavam na sala, os policiais entraram no quarto. A avó foi rápida: “Por favor, não mate ele, moço.” O agente reagiu com ironia: perguntou se poderia matá-lo fora da casa. Mas não o fez: ele foi preso com outros seis suspeitos. “Minha avó salvou a vida daquele menino”, diz o neto. 

 

DIA DAS MÃES

Depois das mortes, o sol abriu pela primeira vez no domingo, Dia das Mães. Saudades eternas”, lê-se numa faixa preta na Rua Amaro Rangel, um shopping a céu aberto onde se encontra de tudo: três supermercados, duas farmácias 24h, estúdio de tatuagem, consultório de estética, dentista, lojas de roupas, salões de beleza, hortifrútis, açougues, bares, costureira, sapateiro, boca de fumo. Na faixa de luto, apelidos dos mortos: Petrolinho, Sabará, Furão de Galo, Bolado, Du Mal. Em outra faixa, mais codinomes, as novas identidades de quem entra no tráfico: Índio, FB, Digo Digo, Cara Preta, Pé, Kako, Pezão, 2S, Carrapicho, Magneto, Preto, Bigão, Pato, 2Pac, Branco, Coração. Parentes e amigos de Gabriel, o Kako, e Isaac, o Pé, se encontram na região conhecida como Fundão, onde lotam um ônibus fretado que os levará ao cemitério de Inhaúma. Todos vestem uma camisa com a foto dos dois amigos abraçados. Essas camisas são uma tradição sempre que alguém é morto pela polícia nas favelas do Rio. A maioria das pessoas no ônibus eram amigos entre 15 e 20 e poucos anos, com medo de quem será o próximo. “Éramos como irmãos”, conta Thaciana, que gravou a live durante a operação e manteve contato com os dois até minutos antes dos assassinatos. “Escolheram o caminho errado, mas a gente amava eles. Só queriam viver a vida.”

Ela contou no ônibus como tentou evitar a morte dos amigos. Como sempre acontece em grandes operações, mulheres da favela tentam salvar da execução vapores e soldados do tráfico. Elas se aproximam o máximo possível do local onde seus filhos, namorados, maridos, primos e amigos estão para pressionar a polícia a prendê-los, e não matá-los. Mas dessa vez eram tantas as vítimas e em tantos locais diferentes que chegaram tarde. Só viram os sete presos. “Só não mataram mais porque conseguimos chegar perto e gritamos até eles saírem”, diz a jovem, olhos inchados de tanto chorar. 

Thaciana Barbosa (de máscara rosa caída), parentes e amigos no velório de Isaac – Foto: Alan Lima

 

Os corpos foram velados e, depois, enterrados em locais próximos, na mesma hora. Durante o velório de Isaac, seu pai, duas irmãs e a avó se mantinham um pouco afastados. Nenhum deles mora no Jacarezinho – a família se mudou para Xerém quando Isaac começou a fumar maconha e a andar com pessoas que a avó considerava más influências. “Em pouco tempo Isaac saiu de casa e voltou pra favela. Ele amava aquele Jacarezinho mais do que tudo na vida”, conta a avó, Célia Regina Homem de Mello. Ela diz que Isaac não ganhou dinheiro no crime, pois sempre precisava pagar a passagem de ônibus para ele voltar ao Jacarezinho depois de visitá-la. No último encontro, pediu ao neto mais uma vez que mudasse de vida. “Vou mudar pelo meu filho”, respondeu. Poucas semanas antes de morrer, descobriu que seria pai. Gabriel, por sua vez, deixou uma filha de cinco meses, Pérola, com quem pouco conviveu. A poucos metros dos caixões de Isaac e Gabriel, o corpo de Bruno Brasil era velado. Ao contrário da multidão que foi despedir-se dos dois amigos, havia dezessete pessoas no velório de Bruno Brasil, entre familiares e amigos da capoeira. O caixão era o modelo mais barato à venda. A família o comprou por 1,4 mil reais, após conseguir 400 reais de desconto com a funerária. O tiro na cabeça impediu que seus parentes se despedissem com o caixão aberto. Foi enterrado com sua roupa de capoeirista. 

Desde que, em junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal determinou a suspensão de operações nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, as polícias fluminenses já mataram 1086 pessoas em todo o estado, segundo dados do Instituto de Segurança Pública – que não incluem os números de maio, ainda não contabilizados pelo órgão. Depois da operação, o STF apreciou um recurso de movimentos sociais e do Partido Socialista Brasileiro alegando o descumprimento da suspensão por parte do governo do Rio. O ministro Edson Fachin, relator do caso, votou para que o Ministério Público Federal, com apoio da Polícia Federal, investigue se a decisão está mesmo sendo desrespeitada, inclusive no caso da matança do Jacarezinho, e para que o governo fluminense elabore em noventa dias um plano de redução da letalidade policial, com metas e cronograma. Um dos pontos mais sensíveis do voto, celebrado por entidades que defendem os direitos humanos no Rio, é a instalação de GPS e de câmeras com captação de áudio nas viaturas e nas fardas, e que o conteúdo seja digitalizado e armazenado. Para que a decisão entre em vigor, faltam os votos de outros ministros. Três dias após o voto de Fachin, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista – antes previsto para acabar até o dia 28 de maio, o julgamento foi suspenso. Para a socióloga Silvia Ramos, do CESeC, o nome da operação, Exceptis (“exceção” em latim), “é puro sarcasmo com a proibição do STF. Essa chacina não é exceção, mas a regra na polícia”, afirma.

Segundo o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), 44% das mais de quatrocentas operações policiais entre junho de 2020 e fevereiro deste ano foram em territórios do Comando Vermelho, e 10,7% em áreas de milícias – embora os grupos paramilitares dominem 57,5% da cidade, segundo o Mapa dos Grupos Armados, produzido pelo Geni. Em outubro, as mortes em operações policiais triplicaram em relação ao mês anterior – e são mais frequentes em áreas de tráfico que de milícia. Para o professor José Cláudio Souza Alves, pesquisador da Universidade Federal Rural Rio de Janeiro, o novo governador do Rio, Cláudio Castro, tem se mostrado tão sanguinário quanto o ex-governador Wilson Witzel, o do tiro na cabecinha. “O número de mortes tem aumentado progressivamente. Primeiro na região da Baixada Fluminense, como no caso do Complexo do Roseiral, onde as forças de segurança já mataram 22 pessoas desde janeiro para instalar uma base da Polícia Militar no local. Era um ensaio do que seria feito na capital, como estamos vendo agora”, afirma o professor. “Esse movimento, direta ou indiretamente, fortalece a expansão das milícias no Rio.”

Relatos de execução no Jacarezinho chegam seguidamente à Defensoria Pública, que presta atendimento às famílias com apoio das comissões de direitos humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio e da Ordem dos Advogados do Brasil. Sobre a investigação policial em si, há pouca esperança. No inquérito que investigava a operação do Batalhão de Choque da Polícia Militar nos morros do Fallet e dos Prazeres, em fevereiro de 2019 – policiais mataram treze jovens ligados ao Comando Vermelho no Fallet e mais dois nos Prazeres –, havia indícios de tortura e execuções. Os laudos de necrópsia foram feitos às pressas – um deles em apenas dez minutos – e omitiram lesões como a evisceração de um dos mortos, como a piauí revelou na época. A pedido do MP, o caso foi arquivado no mês passado. Segundo o sociólogo Michel Misse, em seu livro Quando a polícia mata, publicado em 2013, 99,2% dos inquéritos que investigam assassinatos cometidos por policiais são arquivados a pedido do MP. Agora comandado por um novo procurador-geral de Justiça, o promotor Luciano Mattos, de 52 anos, o MP anunciou a criação de uma força-tarefa para investigar a atuação da Polícia Civil no Jacarezinho. Quatro promotores terão quatro meses para trabalhar, período que pode ser estendido. 

A Ouvidoria da Defensoria Pública apura se os agentes prestaram falso socorro para atrapalhar a investigação. Os hospitais Souza Aguiar e Evandro Freire informaram nos boletins de atendimento médico que 26 dos 28 mortos já chegaram sem vida — o que pode configurar desfazimento intencional das cenas dos crimes, algo que o STF também proibiu. Pelo menos um deles estava com as vísceras expostas. Outra vítima tinha o rosto desfigurado. Os boletins não identificam os cadáveres. Para o Ouvidor da Defensoria Pública, o advogado Guilherme Pimentel, “o que estamos vivendo é a tensão entre dois Brasis: um que acredita na democracia, na igualdade de direitos, e outro que acredita que bandido bom é bandido morto, que aposta na violência. Vivemos no estado que elegeu um governador que defendia dar ‘tiro na cabecinha’, que comemorava esses assassinatos publicamente. Não temos nenhuma dúvida de qual Brasil estamos defendendo”.

 

DIA DE GRITO E SILÊNCIO

No sábado, 15 de maio, trinta grafiteiros da cidade inteira tomam as ruas do Jacarezinho. Pintam murais enormes sobre as paredes cravejadas de tiros da semana anterior. Muitas crianças participam da ação, idealizada pelo coletivo LabJaca, e se divertem com câmeras fotográficas emprestadas pelo projeto, fotografando e filmando o trabalho dos grafiteiros. Ajudam a colorir os muros marcados pela tragédia. Thiago Nascimento, de 23 anos, um dos fundadores do LabJaca – um laboratório de dados que usa as redes sociais para informar o Jacarezinho sobre índices e dados que os moradores não conseguem entender quando assistem ao Jornal Nacional – conta que a comunidade luta pela construção de uma vila olímpica “desde que me entendo por gente”. 

Muitos governantes já prometeram a desapropriação do terreno da General Electric, uma área quase do tamanho do Jacarezinho, colada à comunidade. É uma das quase quinhentas fábricas que fecharam as portas na região ao longo das últimas três décadas – em passado não muito distante, a área era um polo industrial menor apenas que o de São Cristóvão. Ex-atleta, aluno de direito na Uerj, Thiago criou o projeto Jacaré Basquete, para ensinar o esporte a crianças e adolescentes. Só falta uma quadra – a mais próxima fica no bairro de Del Castilho, a dois quilômetros de distância. “Sonhamos com uma vila olímpica aqui dentro há muito tempo. O poder público faz promessas que nunca cumpre, já foram pautados diversos projetos, mas a fábrica da GE continua abandonada. Não há nenhum investimento em esporte, cultura e lazer. O Jacaré Basquete só não saiu do papel ainda porque não temos onde treinar”, diz o futuro advogado.

Como a operação se baseou em postagens no Twitter, chefes do Comando Vermelho espalharam mensagens pelo WhatsApp e redes sociais proibindo fotos com armas. Quem não seguir a ordem “vai pagar com a vida”, diz o texto, que lamenta as mortes: “A família CV está de luto pelos amigos do Jacaré. Que Deus possa confortar o coração das famílias. Jamais vamos nos acovardar diante de um Estado tirano e genocida. Que Deus proteja quem fica e guarde em bom lugar os que se foram no cumprimento do dever.” Favelas aliadas ergueram faixas de luto: “Saudades eternas dos amigos do Jaca”, dizem mensagens na Vila Kennedy e Rato Molhado. A maioria das comunidades dominadas pelo CV cancelou seus bailes em homenagem aos mortos – traficantes da Mangueira e do Complexo do Chapadão, da mesma facção, estão sendo criticados por não terem feito o mesmo. O Jacarezinho chora, e o crime se prepara para as próximas batalhas. ”Esses caras vão pagar pelo que fizeram”, diz um jovem do CV no Twitter. 

A Polícia Civil decretou sigilo de cinco anos sobre documentos da operação, revelou o portal Uol. A medida foi estendida a todas as operações policiais em favelas do Rio desde 5 de junho. Procurada pela piauí, a assessoria de imprensa da corporação não respondeu ao pedido de entrevista com os delegados responsáveis pela invasão ao Jacarezinho. O Ministério Público fluminense, por meio de sua assessoria, disse que os promotores da força-tarefa que está investigando a ação da Civil não tinham nada a declarar além do que foi dito pelo procurador-geral na coletiva em que anunciou o projeto. 

De volta ao Jacarezinho, um antigo morador que já perdeu dois sobrinhos na guerra da polícia contra as favelas lembra que no tempo do Meio-Quilo não havia crianças e adolescentes no tráfico. Aos 65 anos, o homem zomba do motivo alegado pela tropa da Civil para invadir o Jacarezinho em mais uma operação. “Quem se preocupa com a infância não entra pra matar. Todos esses mortos têm filhos, enteados, irmãos mais novos. Sabe o que acontece com essas crianças? De medo, elas passam a sentir ódio da polícia.” E avisa que, na alta rotatividade do crime, o tráfico não tem muito trabalho para conseguir novos soldados. “Tem fila de menores de idade querendo entrar. Todos esses mortos já foram substituídos.”

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