Consta que na estrada a caminho de Damasco um conhecido perseguidor dos cristãos chamado Saulo viveu uma experiência mística que o fez transcender a própria identidade. Renomeando-se Paulo, convicto da verdade do cristianismo, tornou-se um de seus maiores divulgadores, sistematizadores e apóstolos.
Em Damasco, Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni usam essa narrativa como uma espécie de ponto de fuga para a história de Saulo, um funcionário menor na burocracia de uma organização contemporânea em uma cidade grande. Este outro Saulo contemporâneo é um jovem acossado entre sua própria vida, apequenada num cubículo de empresa e num apartamento minúsculo, e uma outra vida, que deseja, mas não sabe qual é. Já Damasco, a cidade real da Síria – palco de conflitos sangrentos, arruinada – aparece logo no início como parte do pano de fundo.
O espectro amplo de recursos visuais que um quadrinho proporciona comunica bem uma história que, na forma de texto, talvez exigisse muito mais espaço e manobras. A riqueza expressiva das fisionomias humanas, configuradas em alterações muito sutis que expressam os mais variados estados de humor e de atenção, é um ponto alto de Damasco, que no mais reflete o momento impressionante de os quadrinhos nacionais, de forma mais geral. Há uma abundância de criadores muito diversos em poéticas e abordagens, como Marcello Quintanilha, Luli Penna, Marcelo D’Salete, Diego Gerlach, André Dahmer, e tantos outros. Mas há também o desenvolvimento consistente de uma audiência capaz de sustentar iniciativas editoriais como essa de Damasco, que deposita nos leitores a confiança de investir em uma narrativa ambiciosa e recompensadora.