“O cinema profissional deixou de me atrair”, diz David Perlov no início do seu filme (Diário 1973-1983, DVD Instituto Moreira Salles).
Depois de duas legendas amarelas sobre fundo preto, uma com a epígrafe, outra com o nome do diretor, três planos curtos dão início ao Diário: (1º) Ao amanhecer, o quadrilátero em perspectiva da janela enquadra o fundo dos prédios vizinhos. A parede escura, em primeiro plano, forma uma moldura; (2º) no mesmo eixo, filmados com lente de maior distância focal, os prédios parecem mais próximos. As laterais esquerda e inferior da janela servem de meia moldura; (3º) a perspectiva da rua, vista através da janela ao amanhecer, agora sem bordas delimitadoras – carros estacionados, edifícios, árvores, algumas luzes ainda acesas – completa a sequência inicial, narrada por Perlov, na primeira pessoa:
“Maio, 1973. Eu compro uma câmera. Quero começar a filmar sozinho e para mim mesmo. O cinema profissional deixou de me atrair. Procurar outra coisa. Quero me aproximar do cotidiano. Acima de tudo do anonimato. Leva tempo para aprender a fazê-lo.”
Nos dez anos seguintes, além de alguns filmes realizados para o Serviço de Cinema do governo e a televisão israelenses, Perlov faria mais 5 partes do Diário, forma narrativa que retomaria, entre 1990 e 1999, fazendo três capítulos adicionais, o terceiro dos quais, filmado em 1999, com o título De volta ao Brasil.
Janelas delimitam o espaço e têm destaque especial no Diário, sendo ponto de vista privilegiado e abertura para a observação do mundo. Filme itinerante, nas várias cidades por onde passa, o primeiro olhar de Perlov é demarcado pelo quadrilátero da janela, hábito que pode ter origem na sua passagem pela École des Beaux Arts, em Paris, onde a lição de Alberti não terá deixado de ser transmitida – “Primeiro, traço um quadrilátero de ângulos retos do tamanho que quiser sobre a superfície a ser pintada, que tem para mim a função de uma janela aberta através da qual a história é observada […].” (Leon Batista Alberti, On Painting. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. Book 1, Parágrafo 19.)
Teria sido vendo os enquadramentos feitos pelas janelas dos trens, chegando ou partindo da Estação da Luz, na São Paulo da sua adolescência, que nasceu seu amor pelo cinema, pergunta Perlov (Diário Parte 6 1983, aos 17’09”).
Projeto pessoal iniciado com recursos próprios, o Diário passou a ser co-produzido pelo Channel 4, da Grã-Bretanha, em 1982, recebeu apoio do Fundo israelense para a promoção de filmes de qualidade, e contou com o apoio do Herzliya Studios, de Israel, acabando por serem reatados, dessa maneira, os laços de Perlov com o profissionalismo.
Apesar das dificuldades que enfrentou ao se afastar do “cinema profissional”, em 1973, manteve-se produtivo filmando por conta própria, e passou a obter reconhecimento crescente por seus filmes a partir de 1983.
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Perlov emigra para Israel aos 28 anos, depois de passar 6 anos em Paris, onde faz seu primeiro filme – o curta-metragem Tia chinesa e os outros -, concluído em 1957.
Nascido no Rio de Janeiro, passa a infância em Belo Horizonte, onde é criado por Dona Guiomar, a quem se refere no Diário como sua “madrasta negra”. A partir dos 10 anos, vive em São Paulo, primeiro na Vila Mariana, com seu avô, imigrante da Palestina, que identificou com Geppeto, “o bom velhinho”. Ao assistir, ainda menino, a Pinocchio – para ele, “um grande filme” –, Perlov ficou impressionado com o “crescimento até dimensões inimagináveis do nariz de Pinocchio cada vez que mentia,” e diria, referindo-se a si mesmo, que para ele “mentir era uma estratégia vital de sobrevivência.” (“They Changed my Life”, Ma’ariv newspaper, 3 de novembro de 1995). Por escolha “ditada pela consciência”, aos 19 anos se mudou para o Bom Retiro.
Sobre seu trabalho em Israel, a partir do início da década de 1960, período em que fez vários filmes, a maioria curta-metragens, há informações contraditórias. No Diário, Perlov refere-se a The Old Age Home como sendo seu primeiro filme, apesar de sequer constar nas suas filmografias publicadas. Em compensação, há indicação de dois curta-metragens anteriores – Viela dos sapateiros em Jaffa e Pescadores em Jaffa –, feitos em 1959 e 1960. Outras fontes, por sua vez, mencionam o documentário sobre o Holocausto, Em teu sangue, vive, de 1962, como tendo antecedido The Old Age Home.
Qualquer que seja a cronologia correta, parece certo que Perlov aceitou convite da Federação Geral do Trabalho (Histadrut) para fazer um filme sobre asilos de idosos. E, segundo conta no Diário (Diário Parte 2 1978 – 1980, 27’11” a 28’36”), “os funcionários com consciência social disseram que ele estava fazendo um filme irreal. Negativo. Depressivo.” Para Perlov, “a megalomania deles os levou a acreditar que idade pode ser revertida. Morte, negada, apenas com medidas burocráticas.” Resultado: a Federação não lhe encomendou outros filmes.
As razões variaram, mas os projetos de Perlov enfrentaram problemas sucessivos com instâncias estatais. Em Jerusalém, de 1963, que viria a ser considerado um dos marcos fundadores do cinema israelense, foi recebido, na época, com incompreensão. Segundo Perlov, o filme “se chocou com a abordagem do establishment oficial. Afinal, era sobre Jerusalém, a capital de Israel, com tudo que isso envolvia, e eu filmei no nível da rua. Tenho uma tendência de filmar o que está ‘abaixo’.[…] Sabia que minha câmera era dirigida muito para baixo, e que as pessoas que eu filmaria olhariam diretamente para ela. Havia pessoas no estúdio que diziam que eu era maluco. ‘Como ele podia permitir que as pessoas olhassem diretamente para a câmera e até mesmo acenassem para ela?’” (Entrevista concedida a Uri Klein. Haaretz, Israel, 1993. Reproduzida em David Perlov: Epifanias do cotidiano. Ilana Feldman e Patrícia Mourão (org.). São Paulo: Centro de Cultura Judaica, 2011. p.179-180).
Na cidade em que a visita dos Beatles foi proibida por serem considerados influência negativa sobre a juventude israelense, a inclusão de imagens filmadas em 1911, além da profusão de mendigos nas ruas, provocou tentativa de impor o corte dessas cenas. A questão acabou sendo levada ao primeiro ministro Levi Eshkol que, depois de assistir a Em Jerusalém, aprovou a liberação do filme com um comentário bem humorado: apesar de “haver mendigos suficientes para dois longa-metragens […] sua exibição vale a pena.”(Entrevista concedida a Uri Klein. Haaretz, Israel, 1993. p.181)
A iconoclastia de Perlov enfatiza a associação entre os mendigos e a volta do Messias, feita no documentário Em Jerusalém pela poeta Zelda Mishkovsky em seu depoimento – “segundo a lenda”, ela diz, quando Ele vier “estará vestido como um mendigo”. A sequência é o clímax do filme, antecedendo as duas finais – o renitente trabalho dos maçons, cortando pedras seculares com escápula e martelo, atividade que desde o início pontua a narrativa; e para terminar, o movimento de rua ao pôr-do-sol, marcando o fim do dia.
Com pleno domínio dos recursos narrativos, adquirido fazendo curta-metragens em 6 anos de carreira, Perlov faz de Em Jerusalém um exercício formal eclético, realizado com grande liberdade, sem deixar de ser rigoroso. Lança mão do documentário strictu sensu e da encenação, inclui trucagens óticas (íris, wipe, fotograma fixo etc.), efeitos de montagem, depoimentos em som direto, narração off com comentários irônicos, imagens de arquivo, metáforas visuais etc. Dividido em capítulos identificados por legendas, a cidade é vista através de suas edificações, além de segmentos dos seus habitantes, de alguns personagens e dos turistas; da fronteira que a divide em duas partes e do muro que as separa; de rituais cívicos e religiosos, da banda que toca no coreto do parque, da lapidação de diamantes, etc.
Perlov se propôs a observar Jerusalém como se a cidade estivesse sendo filmada pela primeira vez (Entrevista concedida a Uri Klein. Haaretz, Israel, 1993. Idem. p.178). Os habitantes vêm ao encontro desse propósito – alguns tapam o rosto, na tentativa vã de evitar que sua imagem seja registrada. Outros olham diretamente para a lente e pedem para serem filmados. Há os que sorriem, interagindo com a câmera, ou fazem de bom grado uma pequena coreografia de cinema mudo, chapéu numa mão, vassoura na outra. E há também universitários blasées que passam caminhando rápido, apenas esboçando um sorriso ou cumprimento.
Na cidade dividida, o ponto de vista dominante é o da janela da câmera de Perlov, naturalmente, mas duplicado em certos momentos pela simulação do que pode ser observado de um tanque, ou pelas aberturas e buracos no muro, através dos quais pessoas de cada lado podem ver as do outro e as “ruínas fotogênicas”, ou ainda pela singela vista da janela de uma casa. (cont.)
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Mostra David Perlov – jóia rara