Quando a pandemia de Covid estourou no Brasil, o biólogo e divulgador científico Atila Iamarino era a pessoa certa no lugar certo. Ele, que durante anos escrevera em blogs para pesquisadores e cientistas, de repente se viu falando para milhões de pessoas sobre uma doença mortal – e se tornou a principal voz brasileira brasileira de divulgação científica durante a pandemia de Covid, no vácuo de informação que deveria ter sido ocupado pelo governo. O divulgador científico participou da segunda mesa do Festival piauí de Jornalismo, que acontece neste final de semana na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Ele foi entrevistado pelo repórter da piauí Bernardo Esteves, especializado na cobertura de ciência e meio ambiente, e pela diretora-geral do Youtube Brasil, Patricia Muratori.
“No começo da pandemia a gente tinha um Ministério da Saúde técnico, mas praticamente todos saíram logo depois. Não tinha ninguém para falar corretamente sobre os aspectos técnicos. Foi um desperdício de oportunidade das instituições e do governo”, disse ele. Iamarino contou que não estava preparado para se tornar uma celebridade. “Uma coisa é falar para um nicho científico, outra coisa é uma prefeitura decidir se vai fechar ou não o comércio local com base no que eu falo”, avalia ele. “Quando vocês me viam descabelado nas lives é porque eu estava assim mesmo”. Até hoje ele sente as consequências do trabalho que fez durante a pandemia – e reconhece que ficou marcado como “arauto do apocalipse”. “Eu sei que meu rosto causa estresse pós-traumático em muitos”, brincou ele.
Por sua atuação nas redes sociais, o biólogo se vê como um pária no universo acadêmico. Para ele, a divulgação científica ainda não está na pauta da ciência brasileira. “Num momento hostil como o da pandemia, os pesquisadores deveriam estar preparados para falar. Mas não estão”, diz. A avaliação dos cientistas ainda se baseia majoritariamente na publicação de artigos acadêmicos, muito longe do público geral, analisa Iamarino.
“Dentro da universidade, fazer qualquer outra coisa além de artigo acadêmico é perda de tempo. E os pesquisadores só vão desenvolver esse lado se forem treinados dentro da universidade para isso”, explica. O biólogo conta que, quando deu aulas para alunos de graduação, treinava-os para a produção de artigos na Wikipedia. Ele conta que um desses textos, sobre o vírus da zika, teve 1 milhão de acessos – alcance praticamente impossível para um paper acadêmico. “O conteúdo da Nasa é legal porque tem gente para tornar ele legal. Isso não acontece aqui”.
Mas a fama teve um custo para o pesquisador. Iamarino foi duramente atacado por defender a ciência em suas lives e redes sociais. Em sua avaliação, a manutenção do movimento anti-ciência na internet depende do ataque individual a vozes como ele. “Eu esperava receber ataques. O que eu não esperava era que isso fosse um movimento institucional organizado, como aconteceu”, diz. Iamarino lembra que, durante a pandemia, ele teve os dados pessoais alterados no aplicativo do Ministério da Saúde, o ConecteSUS. “E era número de Brasília tocando noite e dia, telefone dos meus pais com ameaças a mim. Eu não costumo falar de ataques pessoais para não dar a entender que eles funcionam. Mas esses passaram dos limites”, lembra. Na mesa anterior do Festival, a jornalista finlandesa Jessikka Aro também falou sobre ataques que recebeu por sua cobertura sobre a fábrica de desinformação russa na internet.
O período de pandemia foi pródigo em desinformação – principal tema debatido no Festival piauí de Jornalismo este ano. Como exemplo de mentira mais perigosa que circulou durante a pandemia, Iamarino citou os medicamentos comprovadamente ineficazes que foram vendidos como “tratamento precoce”. “Cerca de 25% das pessoas no Brasil usaram esses medicamentos. As pessoas acreditaram que estavam protegidas e acabaram circulando e se expondo ao vírus sem nenhuma proteção. Foi um instrumento de matança”, avalia ele. “É uma coisa que faz as pessoas circularem, se exporem desprotegidas”.
Respondendo a uma pergunta da plateia, Iamarino falou sobre a decisão do Twitter de retirar a moderação de conteúdo. A plataforma, recentemente comprada – e desmantelada – pelo bilionário Elon Musk, não vai mais rotular ou remover conteúdos falsos sobre Covid-19. “O Twitter acabou com uma das principais ferramentas que o tornava interessante. Isso é destruir o valor que a plataforma tem. Desinformação engaja mais. Se você não tem um desenho para barrar isso, é o que tende a crescer lá”, diz ele. “Valorizando o clique e a audiência, a longo prazo isso pode ser uma bomba-relógio de desinformação”.
Para o divulgador científico, é cômodo consumir desinformação em momentos de estresse, como foi o da pandemia no Brasil. “Para as pessoas é mais fácil acreditar que existe tratamento precoce que aceitar ficar trancado em casa”, disse. Uma lógica completamente diferente se dá entre os produtores de desinformação, que, segundo Iamarino, são organizados e financiados para atuar dessa forma na internet.
A pandemia – e a fama que veio com ela – foi uma experiência “agridoce” para Iamarino. Ele popularizou o conhecimento científico, seu principal desejo quando começou a escrever em blogs científicos há mais de dez anos, mas no pior momento possível – e praticamente sozinho. “É doloroso entender que isso só aconteceu pela falta de outras vozes. Espero não precisar ser chamado para a próxima”, disse.