A terapeuta Adriana Czelusniak levava o filho, Gabriel Czelusniak Cabrera, à psicóloga na tarde de sexta-feira (13). Mãe e filho estavam apreensivos: o resultado do vestibular da Universidade Federal do Paraná (UFPR) estava para ser divulgado a qualquer momento – e ambos tinham prestado os exames para Pedagogia. No banco do passageiro, Cabrera atualizava continuamente em seu celular o portal da instituição, tentando acessar a relação de aprovados. “Mãe, eu passei”, anunciou o rapaz, quando a lista, enfim, foi publicada. Ainda ao volante do carro, Czelusniak pegou o celular e, surpresa, constatou que também tinha sido admitida. Ela e o filho são diagnosticados com transtorno do espectro autista e, a partir do fim de março, vão começar a frequentar juntos o curso universitário.
Depois da sessão de terapia de Cabrera com a psicóloga, mãe e filho foram direto ao campus de Ciências Agrárias da UFPR, em Curitiba, onde os aprovados celebram o êxito no vestibular passando por um “banho de lama”, rito de passagem já tradicional na universidade. Antes, no entanto, Czelusniak fez questão de conferir as listas impressas, afixadas em uma das paredes do complexo. Só após confirmar que tinham, mesmo, sido admitidos é que ela e Cabrera foram celebrar com futuros colegas de curso – e tiraram uma série de fotos, já após o banho de lama, em que aparecem sujos e com o rosto pintado.
“Eu tive que olhar a lista várias vezes para acreditar. A sensação era de que eu estava vendo a lista errada. Até agora, ainda é difícil acreditar. Foi, realmente, uma surpresa enorme”, disse Czelusniak, de 41 anos. “Por um lado, eu fico com pena de pessoas que passam anos tentando e não conseguem passar. Mas fiquei feliz, porque fizemos [as provas] com nosso conhecimento e passamos. Foi merecido”, comemorou Cabrera.
Ao fazer as inscrições para o vestibular, Czelusniak não tinha foco na aprovação. Ela queria ver como o filho se comportaria ao longo das provas, em um ambiente cheio de restrições e com pessoas que não são do convívio comum. Cabrera estava cursando o 3º ano do Ensino Médio no Sesi, em uma turma regular, com alunos neurotípicos. A pedido de Czelusniak, mãe e filho prestaram os exames na mesma sala, que não estava tão cheia – com menos de dez pessoas, todas com algum tipo de necessidade especial. Ambos teriam direito a se inscrever para disputar uma vaga suplementar – ofertada além das reservadas ao sistema de cotas e que se destina a pessoas com deficiência. Para isso, no entanto, precisavam de laudo educacional, que Czelusniak não conseguiu providenciar a tempo. Ou seja, mãe e filho se candidataram pela ampla concorrência. “O vestibular não é uma prova amigável à pessoa do espectro autista. Também por essas dificuldades, ficamos muito felizes com o resultado”, completou a recém-aprovada.
Cabrera articulou as primeiras palavras na idade considerada ideal – por volta de um ano. Quando o filho estava prestes a completar três anos, no entanto, Czelusniak desconfiou que poderia haver algo de incomum com o desenvolvimento do menino. “O Livro do Bebê [publicação a ser preenchida de acordo com os progressos da criança] dizia que ele estava na idade de articular frases curtas, mas o Gabriel tinha dificuldades em se expressar de forma mais elaborada”, contou a mãe. Além disso, ela notava que o filho não mantinha contato visual constante, preferia brincar sozinho ou com adultos e tinha interesse não por carrinhos, mas por letras e números. Até que uma tia de Czelusniak, que trabalhava na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), levantou a hipótese de o menino ter uma deficiência. Cabrera foi diagnosticado por especialistas com transtorno do espectro autista, nível dois – em uma escala que vai de um a três.
“Eu fiquei bem perdida, assustada. Tive várias dúvidas: O que vai ser daqui para frente? O que isso significa? Ele não vai poder frequentar a escola? Não vai se casar? Não vai poder trabalhar? O que tenho que fazer para ajudá-lo? Foi um momento de dúvidas e de medo”, relembrou Czelusniak.
Por conta própria, a mãe se aprofundou no tema. Na ocasião, Czelusniak trabalhava como repórter na Gazeta do Povo – que era, então, o maior jornal do Paraná – e passou a propor pautas sobre autismo, entrevistando especialistas de todo o país. Em 2010, foi uma das fundadoras da ONG União de Pais Pelo Autismo (Uppa), da qual chegou a ser presidente por cinco anos. O grupo promoveu uma série de manifestações, inclusive participando da mobilização que culminou com a sanção da Lei Federal 12.764/12, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, e de outras leis estaduais e municipais.
Paralelamente, Czelusniak se inscreveu em um curso de cinema, pensando em produzir um audiovisual sobre o tema. Assim que se formou, ela produziu e dirigiu o documentário Um Só Mundo. A partir dali, passou a olhar mais para si. “Eu entrevistei um autista adulto que tinha 35 anos. Não se falava disso, de autismo tardio. Fiquei com aquilo na cabeça. Fui percebendo que muito daquilo podia dizer respeito a mim, também”, relembrou.
Ao mesmo tempo, ela tinha que lidar com a solidão e as dores de ter um filho neurodivergente. Cabrera nunca foi convidado a uma festa de aniversário de coleguinhas da escola. Aos 8 anos, começou a falar em suicídio. Perguntava a Czelusniak se ele morreria caso saltasse do terceiro andar ou se se atirasse na frente de um carro. Obstinada, ela foi procurar a melhor forma de conviver com as questões relacionadas ao autismo. Chegou a participar de congressos na França e na Escócia.
“Quando o Gabriel passou a falar em suicídio, eu fiquei assustada. Não sabia bem como reagir. E eu percebi que lá na Europa o foco é outro. No Brasil, ainda se fala muito em tratamento, em inclusão na escola. Lá, há um movimento relacionado à qualidade de vida da pessoa autista”, apontou Czelusniak. “Às vezes, a pessoa autista está sobrecarregada, tendo que mascarar quem ela é, tendo que fingir que não é autista, enquanto familiares estão desamparados e perdidos. A solidão está tanto no autista quanto na família”, apontou.
Um pouco adiante, ela deu uma guinada profissional. Deixou o jornalismo e começou a cursar Psicologia – hoje, está no terceiro ano. Ao mesmo tempo, formou-se em outras terapias, como mindfulness – que abrange técnicas de meditação – e Terapia Comportamental Dialética (DBT, na sigla em inglês). Como terapeuta integrativa, atualmente, ela presta serviços à Câmara de Curitiba. No fim de 2021, veio uma virada pessoal: Czelusniak procurou um psicólogo ao perceber que vinha tendo perda de memória. Foi submetida a um teste que apontou que ela tinha autismo no nível 1. Posteriormente, um neuropsicólogo confirmou o diagnóstico e identificou que ela também tem Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e altas habilidades.
Quando ouviu o diagnóstico pela primeira vez, Czelusniak voltou chorando para a casa. Passou a olhar a própria vida em retrospecto e constatou que tudo fazia sentido. Em sua carreira como jornalista, por exemplo, apesar de ter ficado por nove anos na Gazeta do Povo e de ter ganhado prêmios, ela tinha dúvidas se era uma boa profissional. Não lidava bem com as pressões por prazos e sofria quando era enviada para cobrir entrevistas coletivas – quando muitos jornalistas perguntam, e ela tinha medo de perder alguma informação. Também nunca se saiu bem em processos seletivos e em dinâmicas de grupo.
“Mudou a questão da autocobrança, que era bastante forte. Passei a me cobrar menos. Entendi que a pessoa autista requer uma energia diferente, um tempo diferente”, disse. “Passei a entender que eu não era uma péssima jornalista. Eu só tinha características diferentes para algumas condições da profissão. Não me vi mais como alguém incapaz ou menos capaz, mas como alguém que tem características cerebrais diferentes”, acrescentou.
Àquela altura, Czelusniak tinha acabado de tirar do papel um novo projeto, o Vivendo a Inclusão, por meio do qual promove ações voltadas a melhorar a qualidade de vida de pessoas com autismo e seus familiares. Entre os eventos, estão passeios guiados, viagens e sessões semanais de cinema, em ambiente adaptado para autistas.
Na tarde de terça-feira (17), Czelusniak e Cabrera foram recebidos na reitoria da UFPR pela coordenadora do curso de Pedagogia, Dulce Dirclair Huf Bais. A professora queria entender se mãe e filho teriam demandas especiais e se colocar à disposição dos novos calouros. Ao longo da conversa, Cabrera disse que gostaria de, depois de formado, trabalhar atendendo crianças, como terapeuta. No colégio, o rapaz participava ativamente de um projeto social em que recebia crianças da Vila das Torres – uma comunidade local – em eventos educacionais.
“O Gabriel sempre se interessou em ajudar as pessoas, em cuidar. Sempre teve instinto de proteger outras crianças, de se posicionar contra bullying. Ele é uma pessoa muito sensível, com um senso de justiça enorme. A coordenadora do curso deu a sugestão de, posteriormente, ele fazer especialização em neuropsicopedagogia, para atender crianças”, contou Czelusniak.
Enquanto deixavam o prédio da reitoria, mãe e filho ainda tentavam assimilar todas as novidades da vida universitária conjunta que se avizinha. Cabrera viu os dois lados da moeda de ter Czelusniak na mesma sala. “Se a gente ficasse em salas separadas, não pareceria que estou precisando de ajuda materna. Mas, por outro lado, ficarmos juntos pode ser legal. Nós podemos nos ajudar. Eu também posso ajudar ela”, disse o jovem.
Czelusniak, por sua vez, toma fôlego para a tripla jornada: psicologia, trabalho e pedagogia. Enquanto realiza um sonho – ela achava que jamais seria capaz de cursar uma universidade federal –, espera entender melhor sobre a própria condição, ao mesmo tempo em que quer viver um novo ciclo importante ao lado do filho.
“Acho que vai ser incrível. Claro que tem uma parcela de querer protegê-lo em um ambiente diferente, mas isso é pequeno perto da satisfação de vê-lo num curso pelo qual ele se interessa e com que vai contribuir muito. Ele tem uma sabedoria que é lindo de se ver. Vai ser uma celebração à inclusão”, disse a mãe.