Além da estreia de Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos e do Festival É Tudo Verdade, aos quais foi dedicada a coluna anterior publicada em 27 de março, outros destaques em abril foram os lançamentos de Uma Baía, de Murilo Salles, já comentado aqui em 2021 (https://piaui.folha.uol.com.br/uma-baia-de-bracos-luz-e-sons/) e de Meu Amigo Lorenzo, documentário que sobressai por resultar da gravação de uma experiência de vida crucial, compartilhada, de 2007 a 2022, pelo diretor e o personagem. André Luiz Oliveira, com a câmera na mão, e Lorenzo Barreto, garoto autista que a partir dos 4 anos descobre na prática musical um meio para seu amadurecimento físico e mental, criam um elo nas gravações, à medida em que, lado a lado, vão alternando seus instrumentos.
Ao contrário da motivação impessoal predominante em documentários brasileiros recentes, André Luiz intuiu que as dificuldades psicomotoras de Lorenzo não impediam que ele tivesse “imensas qualidades musicais” e passou a gravá-lo, ao longo de quinze anos, “sem nenhuma ideia do que iria fazer, muito menos que resultaria num longa-metragem”, conforme ele declara no release de Meu Amigo Lorenzo. Mas, graças ao seu empenho e à sensibilidade aguçada que demonstra, o diretor foi capaz de estabelecer com seu personagem uma interação criativa, mediada pela câmera, que resultou na feitura do filme dedicado a “todas as pessoas com autismo, seus pais, cuidadores, terapeutas e especialmente a Áurea Daia, que teve a coragem de apostar no desenvolvimento de seu filho Lorenzo através da música, priorizando o seu bem estar físico, mental, emocional e espiritual”.
Esse é um caso raro de filme que corre o risco de se perder por excesso de didatismo nos 35 minutos iniciais, mas que a partir daí consegue se impor devido à vivência ímpar gravada, além da relação afetiva estabelecida entre André Luiz e Lorenzo.
Por outro lado, Meu Amigo Lorenzo atesta, mais uma vez, a ineficácia do sistema de produção-distribuição-exibição em vigor no que diz respeito a filmes sem pretensão de serem produtos de consumo de massa. Lançado de forma artesanal, com empenho real da parte do diretor e de sua equipe, Meu Amigo Lorenzo chegou a poucas capitais com uma sessão por dia, em horários extravagantes, sem ter meios mínimos necessários para tornar sua existência bem conhecida, e acabou sendo quase ignorado pela mídia até encerrar sua carreira hoje (8/5) no Rio de Janeiro. Quem perde com isso são todas e todos que poderiam se tornar seres humanos melhores se lhes fosse dada a oportunidade de testemunhar a comovente história de André Luiz e Lorenzo.
O Festival É Tudo Verdade anunciou, por sua vez, em 13 de abril, a decisão do júri que contemplou Tesouro Natterer, de Renato Barbieri, como o melhor entre os sete documentários brasileiros em competição, deixando de lado Inutensílios, provocação estimulante de Bruno Jorge, diretor também do extraordinário A Invenção do Outro, de 2022, comentado aqui no ano passado (https://piaui.folha.uol.com.br/uma-expedicao-e-um-filme-bem-sucedidos/).
Tesouro Natterer é bem produzido, realizado e acabado, sem dúvida, embora falhe por não circunscrever seu tema, deixando transparecer a pretensão de ser grandioso. Recursos narrativos convencionais, em especial as múltiplas vozes de especialistas que acentuam o didatismo da narrativa, tornam o documentário de Barbieri aquém de sua fonte de inspiração – as proezas do naturalista austríaco Johann Natterer em suas expedições através do Brasil durante dezoito anos, a partir de 1817.
Escrito, dirigido, fotografado, montado e produzido por Bruno Jorge, com música de Bruno Palazzo, Inutensílios se contrapõe de forma explícita, desde o título, à vertente dominante e desgastada de documentários úteis (didáticos, informativos, publicitários e persuasivos). Definido pelo diretor como sendo “íntimo, quase introspectivo”, feito para “sublimar tudo isso da vida (inclusive a tristeza)”, Inutensílios resulta da coleta de imagens feita sem objetivo pré-definido ao longo de cinco anos. Imagens lindas e fortes, em preto e branco, “que não estavam a serviço de nada”, conforme Bruno Jorge escreve no catálogo do Festival. Para ele, “se o que você faz não vale nada, você pode inverter essa lógica [utilitária] e ocupar um lugar de liberdade para além da necessidade.”
Edileuza Penha de Souza, curadora de mostras e realizadora do curta-metragem Filhas de Lavadeiras, premiado no 25º Festival É Tudo Verdade; Miriam Biderman, editora de som consagrada, e o cineasta Walter Lima Jr. – integrantes do júri – perderam excelente oportunidade, ao premiarem Tesouro Natterer, de fazer justiça e chamar atenção para a força e novidade do cinema de Bruno Jorge.
O lapso dos jurados, recorrente em festivais de cinema, pode ser atribuído à precariedade, para não dizer carência, de reflexão e debate entre nós acerca do cinema que estamos fazendo. Perdem-se desse modo contribuições valiosas para pensar a respeito, como por exemplo as declarações de Wim Wenders, dadas à revista The New Yorker em dezembro do ano passado. Para começar, o entrevistador, Nathan Taylor Pemberton, lembra a afirmação feita pelo diretor do magnífico Dias Perfeitos no seu filme de 1989, Identidade de Nós Mesmos: “O cinema deveria ser apenas um modo de vida levado adiante por nada além da curiosidade”.
Segundo Wenders “precisamos de mais personagens utópicos”. Ele acha “que é bom ver algo nos filmes que leva o espectador a um reino que ele ainda não conhece, e que talvez não exista, mas que acha que seria bom se existisse e que é algo para almejar ou alcançar. Se não existe utopia, a questão de como se vive é irrelevante porque então se pode viver de qualquer maneira”.
Wenders considera ainda que “filmes demais são feitos atualmente com receitas ou o que quer que leve as pessoas ao cinema. Eu costumava sempre ficar até os créditos em todos os filmes. Há filmes em que depois de dez minutos sinto que estou perdendo meu tempo – sei exatamente aonde isso vai dar. Essa violência que está acontecendo agora é gratuita e não é necessária para a história. Percebi que posso sair. Que sensação maravilhosa é sair às vezes”.