A ilha da Queimada Grande é uma velha conhecida dos cientistas. Situada 32 quilômetros ao largo da costa sul do estado de São Paulo, ela é mundialmente famosa por abrigar uma enorme quantidade de cobras – são cerca de 55 serpentes por hectare (área equivalente a de um campo de futebol), de uma única espécie conhecida como jararaca-ilhoa, que só existe ali. Mas esse não é (mais) o único diferencial ecológico da ilha. Pesquisadores marinhos descobriram recentemente que a parte submersa da “ilha das Cobras” também abriga um tesouro biológico único: um recife de corais de 75 mil metros quadrados, também formado por uma única espécie, chamada Madracis decactis, com milhares de anos de idade e povoado por uma grande diversidade de organismos marinhos.
Segundo os cientistas, é o recife de corais mais austral do oceano Atlântico – cerca de 1 mil quilômetros ao sul do Banco dos Abrolhos, no sul da Bahia e norte do Espírito Santo, cujos recifes detinham esse título até agora. Além de ser o único recife formado exclusivamente por M. decactis de que se tem notícia no mundo. Tudo isso a apenas 12 metros de profundidade, no lado mais visitado da ilha – não só por cientistas, mas também por turistas, pescadores e praticantes de caça submarina –, no quintal oceânico do estado mais cientificamente ativo do país.
“É um negócio que sempre esteve lá, na cara de todo mundo, mas ninguém tinha visto”, diz o pesquisador Guilherme Pereira Filho, do Laboratório de Ecologia e Conservação Marítima (LabecMar), do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, em Santos. Foi ele quem notou o recife pela primeira vez, em março de 2015, durante um mergulho com o colega Fabio Motta. O objetivo era iniciar um trabalho de monitoramento da fauna marinha da região – que deu certo e continua sendo feito até hoje –, mas Pereira Filho acabou notando que havia algo diferente ali. A descoberta foi mantida “em sigilo” até recentemente, para que os cientistas tivessem tempo de mapear e descrever o recife adequadamente, antes de atrair atenção para ele. “Tínhamos muita preocupação com descrever algo que realmente se encaixasse no conceito de recife de coral, para publicar com solidez e não correr o risco de ser contraprodutivo para a ciência ou a conservação”, conta Pereira Filho.
Foi uma descoberta fortuita, mesmo porque não havia razão para imaginar que houvesse um recife de coral ali, naquelas águas frias do Sudeste, onde a temperatura da água beira os 15 graus Celsius no inverno – 10 a menos do que em Abrolhos, por exemplo, onde a temperatura fica entre 25 e 30 graus Celsius o ano todo. E também porque, se houvesse um recife de corais ali, é óbvio que alguém já teria visto. Acontece que não.
“Como é possível isso?”, foi minha primeira pergunta, quando os pesquisadores me procuraram para anunciar a descoberta, no fim do ano passado. “Todo mundo estava tão ocupado com as cobras na superfície que não percebeu o que tinha debaixo d’água”, pondera Motta, enquanto navegamos numa lancha a caminho da ilha, de 43 hectares. Ele e Pereira Filho tentam me explicar em palavras como é o recife, e porque ele passou despercebido por tanto tempo, mas só vendo mesmo para entender. Colocamos a roupa de neoprene, máscaras de mergulho, tanque de ar nas costas, nadadeiras, e caímos na água. O dia está claro, o mar está calmo e a visibilidade é ótima, beirando os 20 metros. Perfeito para o mergulho.
A primeira coisa que vemos ao entrar na água é o costão rochoso da ilha, com várias colônias de coral-cérebro crescendo sobre ele. Até aí nada de novo – os corais-cérebro do gênero Mussismilia são comuns em grande parte da costa brasileira, e podem até formar grandes recifes (como os famosos recifes verticais de Abrolhos, conhecidos como chapeirões), mas aqui no Sudeste existem apenas na forma de colônias individuais, que parecem cérebros humanos grudados nas pedras. Há também várias espécies de coral-mole, que crescem como uma pele sobre os rochedos, sem formar recifes.
Adjacente a esse costão rochoso há uma faixa de areia, com alguns metros de largura, e do outro lado dessa faixa está o recife. A razão pela qual é difícil notá-lo é que ele tem uma estrutura compacta e relativamente homogênea, que se mescla ao leito marinho com harmonia, sem grandes rupturas na paisagem. É um recife discreto, digamos assim, sem aquela exuberância arquitetônica e multicolorida de um recife clássico de águas tropicais – mas um recife de coral, sem dúvida, que margeia quase toda a borda oeste da ilha, de 1 800 metros de extensão, numa configuração conhecida como “recife de franja”.
Visto de cima, o recife parece um fundo de areia rugoso, coberto de rodolitos – nódulos de alga calcária, de tons avermelhados, que chamaram a atenção de Pereira Filho em 2015. Ele notou que a base de formação dos nódulos, sobre a qual as algas calcárias cresciam, eram fragmentos de coral morto. “Então, tinha de haver um recife de coral ali”, concluiu. Olhando mais de perto, encontrou alguns pontos de quebra nas laterais onde era possível ver a estrutura interna do recife: uma massa compacta de colunas de carbonato de cálcio – que são o esqueleto do coral Madracis decactis –, com 50 centímetros a 1 metro de altura, cimentados no topo por algas calcárias e esponjas de diversos tipos. Colônias vivas do coral despontam por entre os rodolitos aqui e ali.
Associada a essa crosta do recife vive uma pletora de vida marinha, de pequenos invertebrados que buscam abrigo em suas reentrâncias até tartarugas marinhas e peixes de diversas espécies e tamanhos, incluindo eventuais raias e tubarões. “Apesar de as colunas estarem fundidas no topo, o espaço lateral entre elas permite que uma miríade de pequenos organismos encontrem um ambiente seguro para viver e se reproduzir”, explica Pereira Filho. “Esses pequenos organismos, por sua vez, atraem predadores maiores que se alimentam deles, como garoupas e vermelhos”, completa Motta. A quantidade de vida com que nos deparamos é surpreendente, especialmente para um local que é totalmente aberto ao uso público.
Queimada Grande é um dos pontos de mergulho e caça subaquática mais conhecidos da região Sudeste. Sua parte terrestre, onde vivem as cobras, é classificada com Área de Relevante Interesse Ecológico, acessível apenas a pesquisadores. Mas não existe nenhuma restrição de acesso à parte marinha. No início dos anos 2000 houve um movimento para transformar a ilha em Parque Nacional Marinho, que chegou a ser encampado oficialmente pelo Ibama, mas não prosperou, frente à forte oposição de organizações de pesca amadora e caça submarina.
A ilha agora faz parte da Área de Proteção Ambiental (APA) Marinha do Litoral Centro, criada em 2008, que poderia incluir algum tipo de controle, mas o plano de manejo da unidade até agora não foi concluído. Os pesquisadores aproveitaram essa “brecha” para incluir o recife no processo de discussão do plano, que foi retomado no fim do ano passado. A descoberta foi comunicada ao Conselho Gestor da APA em meados de 2018 e serviu de embasamento para uma proposta de reconhecimento do entorno da ilha como Área de Interesse para o Turismo, proibição da pesca de arrasto num raio de 500 metros da ilha e ampliação de uma zona de uso de baixa escala num raio de 3 quilômetros – que ainda precisam ser aprovadas no Conselho Estadual do Meio Ambiente paulista, o Consema.
A publicação do trabalho que descreve o recife foi até acelerada, para fortalecer o embasamento científico do processo. O artigo inicial foi submetido em agosto e publicado online em outubro, na revista Bulletin of Marine Science; e há outro em preparação, para ser publicado em breve, com mais análises sobre o contexto histórico de formação e desenvolvimento do recife.
Os pesquisadores deixam claro, porém, que não têm nenhuma intenção de fechar o acesso à ilha. A ideia é trabalhar em parceria com vários segmentos de frequentadores de Queimada Grande – pescadores comerciais e amadores, caçadores submarinos, operadoras de mergulho e turismo – para que suas atividades tenham pouco impacto sobre o recife, num esforço coletivo e voluntário de conservação.
“Chegar com uma ótica de proteção integral num lugar que já tem usos históricos consolidados como esse não seria uma boa estratégia”, avalia Motta. Esse enfrentamento, lembra ele, já aconteceu na proposta do Parque Nacional (que implicaria na proibição da pesca e da caça submarina, por se tratar de uma categoria de proteção integral), sem resultados positivos. “Acho que temos a oportunidade de inovar nessa gestão da APA, chamando o protagonismo da conservação para os usuários. Vamos chamar todo mundo para conversar e ordenar da melhor forma possível o uso turístico, evitando qualquer restrição que inviabilize a presença da sociedade naquele espaço.”
Para isso, é preciso ciência, e a pesquisa está longe de acabar. Muito mais do que descrever o recife, os cientistas querem entender como ele se formou, se desenvolveu, e qual é o papel ecológico que ele desempenha no ecossistema marinho. Não só da ilha, mas de toda a região.
A análise de uma amostra de 1,5 metro de profundidade do recife indica que ele tem pelo menos 5 mil anos de idade, e que sua taxa de crescimento (ou acreção) diminuiu muito nos últimos 2 mil anos, chegando próximo de zero nos dias atuais, por conta das condições ambientais menos favoráveis, entre elas a turbidez e baixa temperatura da água no inverno, já que os recifes de coral são ecossistemas típicos de águas quentes e transparentes. Um experimento está em andamento agora para medir exatamente qual é essa taxa, utilizando um sistema conhecido como CAU (Unidades de Acreção de Calcificação, em inglês), que são placas de plástico presas ao substrato marinho, para serem colonizadas pelos mesmos organismos calcificadores que constroem o recife. Analisando o que cresce nas placas ao longo do tempo, é possível estimar o quanto o recife está crescendo, ou não.
Por que ele se formou ali? E será que é mesmo único ou há outros como ele espalhados por aí, escondidos a olhos vistos; ou talvez soterrado pelas areias do tempo? Os pesquisadores não sabem, mas pretendem descobrir.
A reconstrução da história do recife, e do ambiente no qual ele se formou milhares de anos atrás, também poderá ajudar a entender processos ecológicos do presente, diz Pereira Filho. Por exemplo, a região de Queimada Grande é usada como berçário por diversas espécies de tubarão: seria isso uma memória evolutiva, preservada na espécie desde os tempos em que as águas ali eram mais quentes e claras, e o recife servia como fonte de abrigo e alimento para o desenvolvimento dos filhotes?
“Muitos animais retornam ao local de nascimento para reproduzir. Seriam essas condições do passado que fazem esse litoral ser ainda tão especial? A descoberta e a continuidade das investigações nesse recife nos ajudará a compreender essas questões”, disse o pesquisador. Outro bicho magnífico que costuma dar as caras por ali, principalmente no inverno, são as raias-manta; até mais em alguns anos do que no Parque Estadual Marinho da Laje de Santos, cerca de 50 quilômetros ao norte.
“Fico imaginando como era isso aqui 3 ou 4 mil anos atrás, quando esse recife estava bombando”, reflete Pereira Filho, olhando para a ilha que agora se afasta no horizonte, iluminada pelo entardecer. Fizemos dois mergulhos do lado protegido da ilha, que é voltado para o continente, e um do lado exposto, voltado para o alto-mar. Para mim, também, foi uma espécie de retorno às origens – Queimada Grande foi um dos primeiros lugares onde mergulhei na vida, uns quinze anos atrás; e mesmo já tendo passado por alguns dos recifes mais famosos do planeta desde então, foi um prazer voltar para lá. Quem diria que tinha um recife de coral “escondido” bem debaixo do nosso nariz? “Nós exploramos petróleo a milhares de metros de profundidade, mas desconhecemos um ecossistema recifal de 75 mil metros quadrados, a 12 metros de profundidade e a menos de 1 hora de barco do litoral de São Paulo”, diz Pereira Filho. “É um exemplo emblemático do descompasso entre conhecimento e desenvolvimento na sociedade atual.”