Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fazia um pronunciamento em rede nacional sobre a crise do coronavírus, na última terça-feira (23), Carlos Souza estava na cozinha. Fritava os salgados que levaria para tentar vender ainda naquela noite. O Rio de Janeiro já estava de quarentena, mas Souza precisava de dinheiro para o aluguel. A televisão da sala estava ligada, e Souza não estava prestando muita atenção – todas as suas opiniões já estavam consolidadas. Até ali, para ele, Bolsonaro era o cara de quem o Brasil precisava: um mito. O desencanto veio com o discurso do presidente. Souza ouviu quando Bolsonaro falou do coronavírus como uma “gripezinha”. Sem dinheiro, sem esperança de venda, com a filha sem aulas e o comércio fechado, Souza ouviu, em casa e na rua, reclamações sobre o pronunciamento. Para a família, ficou claro que a postura do presidente não correspondia à gravidade da crise. Foi o bastante para que o “mito” se tornasse uma grande decepção.
Souza, 47 anos, trabalha há quase vinte vendendo salgadinhos no centro do Rio de Janeiro. Antes era auxiliar de despachante em um escritório de contabilidade. No final do ano 2000, quando foi demitido, sua mulher estava grávida, e Souza precisou buscar uma nova fonte de renda para a família. Desde então sua rotina tem sido puxada. De manhã, ele compra os materiais, prepara os salgadinhos e deixa tudo pronto para fritar. No fim da tarde ou à noite, com os quitutes prontos, pega um ônibus perto de onde mora, na Pavuna, Zona Norte da cidade, até a Rodoviária Novo Rio. A porção com dez salgados custa R$ 4. Os clientes podem escolher: coxinha, bolinha de queijo, camarão, presunto, carne ou salsicha. Em média, Souza consegue lucrar um valor equivalente a quase dois salários mínimos por mês.
Ele mora com a mulher e a filha, uma universitária de 19 anos, numa casa de quatro cômodos: quarto, sala, cozinha e banheiro. Mesmo longe do centro, é o que dá para pagar com R$ 600. Sua mulher, Josineide Costa, trabalha como auxiliar de serviços gerais num escritório e ganha um salário mínimo e meio. Com o escritório fechado, vai duas vezes por semana fazer a faxina e está recebendo o pagamento – por enquanto. Souza normalmente prefere vender os salgadinhos na rodoviária, onde sempre há mais movimento e, consequentemente, possíveis fregueses. Mas nos últimos dias, o ambulante encontrou ruas vazias e viu suas vendas despencarem.
A prefeitura do Rio determinou o fechamento obrigatório do comércio na cidade, com exceção dos serviços essenciais, a partir de terça-feira (24). Sem gente na rua, Souza não tem mais a quem vender seus salgados. Mas, apesar de estar perdendo dinheiro, ele acredita que a medida é necessária. “Acompanho as notícias e acho preocupante o que está acontecendo”, conta. “Gostaria que o presidente levasse esse vírus a sério também.” Souza foi apoiador de Bolsonaro durante a campanha de 2018 e chegou a brigar com a família para defendê-lo. No dia da votação, a briga foi tão grande que ele preferiu ficar em casa, mas continuou defendendo o presidente.
O ambulante não é exatamente um bolsonarista-raiz. Não está interessado em defender a ditadura, atacar a imprensa, nem concorda totalmente com a liberação de armas. É parte do eleitorado mais flutuante, motivado pela aversão ao PT, e que viu em Bolsonaro um candidato antissistema. Agora, está desapontado. “Essa crise toda e ele nem sequer pensa no lado humano do povo”, desabafa. Souza diz que Bolsonaro não terá seu voto no futuro. Assim como ele, segundo o Datafolha, 33% da população está insatisfeita e avalia o desempenho de Bolsonaro em relação à epidemia como ruim ou péssimo. Isso, antes do pronunciamento pela televisão. Na manhã seguinte, o presidente ainda condenou o isolamento social, medida recomendada pela Organização Mundial da Saúde.
Souza discorda do presidente, mas, por necessidade, acaba fazendo justamente o que Bolsonaro pede: continua quebrando a quarentena. A venda de salgados é sua única fonte de renda e ele não tem esperança de receber qualquer auxílio do governo. Ou seja, se ele não sair de casa, não tem dinheiro. Para tentar melhorar as vendas no cenário atual, decidiu trocar o centro comercial por áreas residenciais do centro da cidade. Desce na rodoviária e, a pé, percorre as ruas de Santo Cristo, Gamboa e Morro da Providência. “É quase como se fosse o carro do ovo”, explica. “Eu grito que tem salgadinho e quem quiser me chama.” Mas os resultados não estão sendo muito animadores.
Antes da quarentena, Souza ganhava em média R$ 120 por dia com a venda dos salgados. Hoje, em um dia de sucesso, consegue no máximo R$70. A cada dia que passa, o movimento nas ruas diminui ainda mais. Souza não consegue fazer uma projeção do quanto espera ganhar nas próximas semanas. “Só o que eu sei é que vai piorar”, diz. “Eu acho até que as pessoas estão com medo de chegar perto de mim, de comprar.” A única opção de Souza é se expor, mas ele garante que toma os cuidados necessários. Sempre leva consigo álcool gel para limpar as mãos e mostrar para os clientes que leva a limpeza a sério. “Eu preciso continuar tentando”, desabafa. “Agora é entregar na mão de Deus.” Nesta quinta (26), Souza fritou 350 salgados e se preparava para tentar a sorte mais uma vez.