Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, foi lançado em doze capitais brasileiras, na quinta-feira seguinte ao Carnaval (23/2), após ter estreado no Festival de Berlim, em 2022, participado em seguida de inúmeros festivais e sido premiado em alguns eventos, no Brasil e no exterior.
Não assisti a Era Uma vez Brasília (2017), filme anterior de Queirós que, para meu espanto, conforme só fiquei sabendo agora, relata a missão do desonrado agente intergaláctico WA4, enviado à Terra em 1959 para “matar o presidente Juscelino Kubitschek no dia da inauguração de Brasília. Mas sua nave se perde no tempo e aterrissa em 2016 em Ceilândia, às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff” (segundo a sinopse disponível na plataforma Mubi).
Comentei, no entanto, em 2015, neste site, Branco Sai, Preto Fica, escrito e dirigido por Queirós. O filme fora premiado um ano antes como Melhor Filme do Festival de Brasília e avalizado pouco depois pelo Forumdoc.bh ao ser exibido na abertura do evento mineiro. Conforme escrevi na ocasião, Branco Sai, Preto Fica resulta “aquém da expectativa criada pelo rufar dos tambores brasilienses e belo-horizontinos” (comentário disponível na íntegra aqui). Decepção que se renovou agora com o mais recente filme de Queirós, codirigido por Pimenta, lançado coberto de louros, inclusive nada menos que pelo Grande Prêmio do Réel – 44ª edição do Festival Internacional do Filme Documentário, em março de 2022.
Causa certa estranheza que Mato Seco em Chamas seja considerado um documentário, pois, na verdade, encenações predominam nele, ainda que inseridas em contexto realista. Mesmo ciente do alargamento do gênero documental que passou a incluir desenhos animados e filmes feitos com miniaturas e bonecos, delimitações continuam a preservar sua importância para poder avaliar de modo adequado o que nos é dado assistir.
Salvo lapso de memória, Mato Seco em Chamas inclui apenas duas sequências documentais stricto sensu – os cerca de 8’ da celebração evangélica e a comemoração bolsonarista perto do Congresso Nacional que dura uns 5’. Nos 140’ restantes, embora pretenda transitar entre fantasia e realidade, prevalece mesmo é um enredo ficcional repetitivo, com vertentes que não se completam. Resulta daí uma espécie sui generis de realismo fantástico destituído de verossimilhança (é difícil entender, por exemplo, como o petróleo é refinado no quintal da casa no bairro Sol Nascente, de Ceilândia, na periferia de Brasília, para ser comercializado como gasolina). Diante das deficiências narrativas e carências de estilo, nem mesmo o empenho sincero do elenco principal, formado por atrizes não profissionais, é capaz de tornar Mato Seco em Chamas menos entediante – sucedem-se closes das irmãs Léa (Léa Alves da Silva) e Chitara (Joana Darc Furtado) olhando para o horizonte e fumando, imersas em pensamentos aos quais o espectador não tem acesso.
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Destaque (XXIX):
“… o tempo é um rato roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto… Há, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem. Outros que a imaginação inventa para suprir os perdidos, e nem por isso a história morre.
… o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro.” Machado de Assis, Esaú e Jacó. Segunda Edição. Rio de Janeiro, Paris, H. Garnier, Livreiro-Editor,1904. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, Obra Completa, Volume I, 2004. pp. 946-1093.
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A coluna de Eduardo Escorel agora é quinzenal e estará de volta em 22 de março.