Há seis meses, o juiz Sérgio Moro condenava Lula à pena de prisão, no primeiro de sete processos que o envolvem na operação Lava Jato. Começava ali a corrida de Lula contra o efeito da Lei da Ficha Limpa, seu principal adversário na disputa pela Presidência da República em 2018.
A Ficha Limpa impede a participação nas eleições de quem for condenado por crimes específicos, em decisão tomada por órgão judicial colegiado – o que geralmente acontece na segunda instância –, mesmo que o processo não tenha transitado em julgado. Esse pode ser o caso de Lula, após o julgamento perante o TRF-4 nesta quarta-feira, 24 de janeiro, caso seja condenado e não consiga emplacar nenhuma das alternativas recursais disponíveis. Mesmo que o colegiado de juízes federais reconheça sua culpa no caso do apartamento do Guarujá, as possibilidades no processo estarão abertas até sua eventual diplomação. Mas, para que consiga chegar tão longe, dependerá de, ao menos, uma decisão favorável.
RECURSOS PERANTE O TRF-4
A primeira definição crucial é sobre o momento em que se encerra a manifestação da Justiça na segunda instância. Como o julgamento colegiado é o divisor de águas entre fichas limpas e fichas sujas, todos os esforços da defesa do ex-presidente se concentrarão em mantê-lo do lado que o deixe elegível. Para isso, Lula buscará adiar o encerramento da etapa “segunda instância”, preferencialmente através dos embargos infringentes, que são uma modalidade de recurso que permite nova análise por um colegiado ampliado de magistrados, somando-se aos três juízes originais mais três de outra turma. Apenas o resultado da condenação por 2 a 1 abriria essa opção recursal, que tem a força de manter suspenso o processo até que se resolva o recurso. Em caso de condenação por 3 a 0, caberiam apenas os embargos de declaração, que é um recurso com menor potencial de alteração da decisão, de modo que costuma ser utilizado tanto para ganhar tempo quanto para sanar possíveis contradições e omissões da decisão.
Embora pouco provável, os embargos infringentes perante o TRF-4 poderiam ficar sem definição até o dia 15 de agosto, quando se encerra o prazo para que os partidos apresentem o pedido de registro das candidaturas. Se até esse momento os efeitos da condenação estiverem suspensos pelo recurso, Lula será ficha limpa e poderá disputar as próximas eleições.
RECURSOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES – STJ e SUPREMO
Quando foi concebida, em 2010, a Lei da Ficha Limpa era temida em relação aos casos – provavelmente raros – em que determinado candidato fosse excluído das eleições diante de condenações em primeira e segunda instâncias, mas posteriormente inocentado antes do trânsito em julgado do processo. Em casos assim, o dano de ter ficado de fora de um ciclo eleitoral teria sido irreversível. Para minimizar esse risco, deputados e senadores acrescentaram um artigo na lei para permitir o recurso de suspensão da inelegibilidade aos tribunais, de modo que ficaram admitidas exceções à regra geral de exclusão das eleições. Nos últimos anos, diversos candidatos puderam concorrer a cargos eletivos, ainda que, em princípio, fossem fichas sujas.
Pois mesmo em um cenário de maior dificuldade para Lula, caso a condenação hipotética seja por 3 a 0 ou mesmo caso os embargos infringentes não tenham sido capazes de reverter a condenação por 2 a 1, a defesa deverá apresentar um recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça, o STJ, e um recurso extraordinário perante o Supremo, buscando paralisar a inelegibilidade decorrente da condenação. Entretanto, até que Lula obtenha do Supremo ou do STJ a liminar suspensiva, ele será ficha suja e, portanto, potencialmente inapto ao registro eleitoral, para qualquer cargo.
RECURSOS APÓS O PEDIDO DE REGISTRO DE CANDIDATURA
Imaginemos por um momento um quadro ainda mais complicado, em que a defesa do ex-presidente não tenha obtido resposta satisfatória no recurso perante o TRF-4 e também não tenha tido sucesso em relação às liminares esperadas nos recursos ao STJ e Supremo. Mesmo em situação como essa, ainda seria possível que o Partido dos Trabalhadores apresentasse o pedido de registro de candidatura de Lula para o Tribunal Superior Eleitoral, o TSE. Caso o registro não fosse concedido, caberia, então, novo recurso ao Supremo, desta vez não contra a condenação do TRF-4 de que derivou a inelegibilidade, mas contra o ato denegatório do registro da candidatura.
Como se sabe, esse é um processo que se inicia no começo da campanha e dura semanas. No contexto das novas regras eleitorais, em que as campanhas duram aproximadamente 50 dias até o primeiro turno, os candidatos inabilitados terão tido a oportunidade de expor-se provavelmente por mais da metade da campanha, e ainda lhes restará a possibilidade de reposição por outro candidato escolhido pelo partido até no máximo 20 dias antes da eleição.
A Justiça Eleitoral é um ramo especializado do Poder Judiciário e tem competências próprias. Ainda que a vida pregressa dos candidatos, particularmente as condenações criminais por órgão colegiado, deva ser considerada nos momentos de análise dos pedidos de registros dos candidatos, a conclusão sobre inelegibilidade dos candidatos é tomada apenas pela Justiça Eleitoral e não pela Justiça Federal, por onde tramita a maior parte dos casos contra Lula. Até a etapa do registro – e antes de qualquer decisão –, um candidato que se enquadre nas condições de ficha suja será, de fato, apenas ficha suja em tese.
PRISÃO E SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS
Além da preocupação imediata com a possibilidade de ser candidato, a defesa de Lula também buscará reverter a condenação com argumentos de mérito e tentará anular o processo alegando existência de vícios desde antes da sentença proferida por Moro. Portanto, além dos efeitos da Lei da Ficha Limpa sobre sua candidatura, Lula também poderá ser afetado pela antecipação da pena de prisão, mesmo antes do final do processo.
Em 2016, o Supremo alterou sua jurisprudência e passou a admitir a chamada execução provisória da pena, quando um colegiado de juízes, em grau de apelação, decide pela prisão mesmo que o processo ainda não tenha se encerrado e caiba o recurso especial ou extraordinário. Antes da mudança de interpretação, o entendimento da Corte era que a prisão antes do trânsito em julgado seria vedada pelo princípio constitucional da presunção de inocência.
Esse entendimento do Supremo não parece estar pacificado. Há poucos meses, declarações contrárias à nova regra feitas pelo novo ministro Alexandre de Moraes, que não integrava a Corte no momento da decisão, e pelo ministro Gilmar Mendes, que havia votado em favor da mudança em 2016, indicam que poderá haver, a qualquer momento, uma nova reviravolta na jurisprudência. A volta à regra antiga, que não permitia a prisão antes que se encerrassem todos os recursos disponíveis, pode favorecer Lula e mantê-lo em liberdade mesmo que não consiga livrar-se dos impedimentos da Ficha Limpa.
Em relação aos direitos políticos, vale lembrar que apenas o trânsito em julgado da sentença levaria à suspensão dos direitos de votar e ser votado, pelo tempo que durar a pena. Se a Ficha Limpa antecipa esses efeitos apenas para o direito de ser candidato, a suspensão completa da capacidade política se daria apenas quando não coubessem mais os recursos.
DOSIMETRIA DA PENA
O processo contra Lula é controverso. Poucas sentenças penais foram tão debatidas e escrutinadas antes. Um dos pontos que suscitaram maior discussão foi o da dosimetria da pena. Para definir a pena de um réu condenado, os juízes seguem um método para arbitrar a dose correta de pena no caso concreto diante da flexibilidade deixada pela lei.
Assim, para cada crime há uma pena mínima e máxima. No caso do crime de corrupção passiva, ela vai de 2 a 12 anos. Já para a lavagem de dinheiro, de 3 a 10 anos. Caso fosse condenado às penas mínimas, a sentença teria estabelecido 5 anos. Porém, ao fazer as considerações de atenuantes, agravantes e avaliação das causas de aumento e de diminuição da pena, o juiz Sérgio Moro atribuiu a pena de 9 anos e meio a Lula.
Alguns analistas apontam que ao fundamentar a elevação da pena além do mínimo, o juiz teria se utilizado de elementos que extrapolam a eventual responsabilidade de Lula, como por exemplo o fato de se tratar de um esquema amplo, de corrupção sistêmica, no qual outros, inclusive seu partido, teriam se beneficiado. Da mesma forma, houve apontamentos críticos sobre o aumento da pena em função do cargo ocupado, o que não seria um fato discriminante para fins de agravamento do crime praticado.
O FUTURO DA LAVA JATO E A INTERFERÊNCIA NAS ELEIÇÕES
O julgamento de Lula provocará reflexões que irão além das consequências para a sua liberdade e para suas pretensões de candidatura. O debate provocado sobre a eventual seletividade do sistema de Justiça brasileiro pode levar instituições como o Ministério Público – em especial os Ministérios Públicos dos estados – à revisão de seus métodos de definição de prioridades. Por um lado, caso a defesa de Lula consiga suspender os efeitos da Ficha Limpa e ser candidato, tanto a eficácia da festejada lei quanto a capacidade da Lava Jato de punir as mais altas lideranças políticas serão questionadas. Por outro lado, se, ao fim da longa teia de possibilidades processuais, Lula for impedido de participar do pleito de 2018, a própria legitimidade das eleições será questionada. Tanto mais por ocorrer dois anos depois do controverso impeachment contra sua sucessora.
O fato de que Lula é apontado seguidamente como o candidato preferido nas pesquisas de opinião torna a tarefa dos juízes que lidarão com os seus recursos processuais espinhosa. Não surpreende, portanto, que alguns dos adversários de Lula, como Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, tenham afirmado que preferem ver o petista derrotado nas urnas. Em breve saberemos se também os juízes vão preferir delegar às urnas a dura tarefa de julgar Lula.