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    Intervenção de Paula Cardoso em foto de Eduardo Gomes/ ILMD Fiocruz Amazônia

cientistas da pandemia

“Deixamos o vírus circular demais”

Pesquisador da Fiocruz Amazônia alerta para casos de reinfecção pela variante identificada em Manaus

Felipe Naveca | 15 mar 2021_16h35
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Aos 43 anos, o virologista carioca Felipe Naveca é vice-diretor de Pesquisa e Inovação da Fiocruz Amazônia, em Manaus. Foi o primeiro a sequenciar o DNA do Sars-CoV-2 no Norte do país, há um ano. Desde então, o pesquisador e sua equipe realizaram quase quatrocentos sequenciamentos do genoma no Amazonas. As informações são inseridas num banco de dados mundial e ajudam a rastrear o movimento do vírus e a identificar as chamadas variantes de preocupação, como a P.1, surgida em Manaus. “Deixamos o vírus circular demais, e o resultado está aí. Quanto mais o vírus circula, mais mutações sofre e maiores as chances de aparecer uma variante como essa.” Há pelo menos três casos de reinfecção pela P.1 no estado. Suspeita-se que ela esteja escapando de anticorpos gerados de infecções prévias. Estudos em andamento também analisam a eficácia das vacinas para novas cepas. 

Felipe viveu a tragédia da Covid-19 dentro da família: perdeu o pai para a doença em maio do ano passado. Cinco meses depois, a avó morreu por AVC, que pode ter sido resultado de uma sequela da Covid. No relato a seguir, o pesquisador explica a importância do trabalho de vigilância genômica e o drama de perder parentes em meio à pandemia que bate recordes de óbitos em todo o país.    

(Em depoimento a Lia Hama)

Como pesquisador, trabalho com viroses emergentes, tanto desenvolvendo ferramentas para diagnóstico quanto estudando a parte genética para entender qual caminho o vírus percorreu até chegar a determinado local, como se espalhou e se existem mutações associadas a formas mais graves da doença que ele provoca.

No final de 2019, surgiu o alerta sobre a Covid na China. Os casos foram aumentando e começamos a nos preparar porque poderia chegar ao Brasil. Desde fevereiro do ano passado, a gente já tinha os insumos para fazer tanto o diagnóstico quanto o sequenciamento genético do Sars-CoV-2, uma vez que sabíamos que seria importante sequenciar um vírus que ninguém conhecia até então. Quanto mais dados genômicos fossem gerados, melhor seria para entender sua dinâmica.

O primeiro caso no Amazonas apareceu no dia 13 de março de 2020. Não tivemos acesso a essa amostra, mas conseguimos a do segundo caso. Era um homem que chegou da Espanha sem sintomas de Covid-19. Por vir de uma área de transmissão, nós o convidamos para ser testado. Foi o primeiro caso do novo coronavírus sequenciado na região Norte. De março até agora fizemos quase quatrocentas sequências do genoma no Amazonas, tanto de infectados da capital, Manaus, como do interior. Mapeamos 36 entradas diferentes do vírus, que chegou trazido por pessoas vindas de outros estados e também de países da fronteira, como Colômbia.

Essas informações sobre genomas são inseridas em bancos de dados internacionais. O principal deles se chama Gisaid  e é ligado à Organização Mundial da Saúde. Já existem mais de 780 mil dados inseridos do mundo inteiro. É um número impressionante, nenhum patógeno foi tão estudado quanto esse. Esses sequenciamentos são importantes para identificar mutações ligadas a formas mais graves da doença e também para fazer ajustes em testes de diagnóstico PCR, os mais usados hoje. Alguns precisam ser adaptados porque o vírus começa a acumular mutações e os resultados passam a dar falsos negativos, atrapalhando o diagnóstico.

Quando se encontra um evento extraordinário – um vírus com muitas mutações -, é preciso lançar um alerta internacional. Foi o que pesquisadores do Japão fizeram no último dia 10 de janeiro. Eles alertaram que quatro viajantes com sintomas de Covid que desembarcaram em Tóquio e haviam passado por Manaus estavam infectados por um vírus com doze mutações. 

A primeira coisa que fizemos foi baixar as sequências que os japoneses haviam produzido para comparar com as nossas. Então vimos que realmente a P.1 (hoje se chama P.1, mas na época ainda não tinha esse nome) era originada da linhagem 28, que circulava no Amazonas. Publicamos então um post no Virological, um fórum de discussão sobre virologia, mostrando que a origem das amostras era de fato o Amazonas, e alertamos que não eram da linhagem 28, como o programa estava classificando, mas uma nova cepa surgida a partir dela. Passaram-se alguns dias, eles revisaram os dados e criaram a nomenclatura de P.1.    

O registro mais antigo que temos de P.1 no Amazonas é de 4 de dezembro de 2020. A gente continua investigando para trás, para tentar descobrir quem foi o paciente zero. Em dezembro, a P.1 já passou a ser 50% dos genomas que sequenciamos e, em janeiro, 91%. Essa subida foi muito rápida, o que só pode mostrar que essa variante tem alguma vantagem em relação às outras. Queremos entender a interiorização da nova linhagem do vírus, que já chegou a áreas remotas, como comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas. 

Até agora tivemos três casos confirmados de reinfecção por P.1. São três mulheres que, felizmente, não tiveram a doença grave na reinfecção. Duas delas tinham 280 e poucos dias de diferença entre a primeira e a segunda infecção. A terceira tinha apenas 92 dias entre a primeira e a segunda infecção. Isso, para mim, é muito preocupante, porque num curto período de tempo, quando você espera que o organismo ainda tenha bastante anticorpos, houve a reinfecção pela P.1. Isso sugere que a P.1 pode estar escapando dos anticorpos gerados naturalmente de infecções prévias. Existem experimentos em andamento no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e também em Oxford, junto com o pessoal da AstraZeneca, para entender melhor isso. Também há estudos analisando a eficácia das vacinas para novas cepas. Resultados preliminares apontam que as vacinas continuariam protegendo.

Temos uma longa batalha pela frente. O Brasil hoje bate recordes de óbitos por Covid porque nós, como país, deixamos o vírus circular demais. Não é apenas culpa dos governos, mas também da população. A pessoa que sai na rua sem máscara está se expondo e expondo os outros. Perdi meu pai para a doença em maio do ano passado. Ele tinha 69 anos e nenhuma comorbidade. Ele, minha mãe e minha avó foram infectados na mesma época. Cinco meses após a morte dele, minha avó veio a óbito, após sofrer um AVC. Desconfiamos que o AVC tenha sido causado por microtrombos que se acumularam quando ela teve Covid. Essas perdas ainda são muito dolorosas para mim, mas meu pai dizia ser meu maior fã e é de onde eu tiro forças para seguir em frente.

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