Em depoimento a Elane Oliveira
Nasci em Rondônia e, desde criança, convivi com a Floresta Amazônica. Eu e minha família vivíamos em Cacoal, uma cidadezinha pequena com muitos habitantes indígenas. Nossa situação financeira era difícil. Meu pai trabalhou durante muitos anos como garimpeiro e madeireiro, atividades infelizmente comuns naquela região. Cresci vendo ele adoecer diversas vezes por contrair malária.
Quando eu tinha 4 anos de idade, nos mudamos para São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, onde cresci. Terminei o colégio e passei no vestibular de zootecnia. Frequentei o curso por apenas dois dias: foi o tempo que demorei a perceber que minha vocação mesmo era medicina. Troquei de faculdade e me tornei médica, finalmente, em 2016. Passei numa prova para fazer residência em medicina de família e comunidade no Rio de Janeiro e me mudei para lá em 2019.
Lembro do dia em que, durante uma passagem de plantão, eu conversava com uma colega e ela me contou que havia trabalhado com um povo isolado no Acre. Eu não sabia como funcionava esse trabalho, e fiquei curiosa. Ela relatou toda a experiência. Aquilo me marcou. Pouco depois, em 2021, o Ministério da Saúde abriu um edital do Programa Mais Médicos. Decidi prestar o concurso e, dentre os lugares que eu podia escolher trabalhar, optei pela Terra Indígena Yanomami. A memória que eu tenho do convívio com os indígenas na minha infância pesou na decisão.
Fui aprovada no concurso e me mudei para Boa Vista (RR) naquele ano. Cheguei junto com outros dois colegas. Considerando os médicos que já atuavam na região, éramos doze. Minha rotina se transformou completamente. Passei a trabalhar em escala quinzenal: passava duas semanas dentro da terra indígena, circulando entre os diferentes povoados, e duas semanas de repouso na capital. Nós viajávamos sempre de avião para o território Yanomami, mas pousávamos em um lugar diferente cada vez. A terra indígena é enorme, tem 366 aldeias e 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI). Os voos duravam de uma a quatro horas.
Minha primeira visita foi marcante. Nós fomos de avião para Maturacá, povoado que fica no extremo Norte do estado do Amazonas, quase na fronteira com a Venezuela. A região faz parte da Terra Indígena Yanomami, embora a maior parte da área demarcada fique em Roraima. Durante o voo, fiquei fascinada com a imensidão da floresta vista de cima. Descemos do avião e fomos recebidos pelo Pelotão Especial de Fronteira (PEF) do Exército. Os militares, armados, anotaram nossos documentos e revistaram nossas malas – uma operação padrão nessa região.
Mal pousamos, uma enfermeira veio me chamar: uma indígena yanomami estava dando à luz. Já era possível ver a cabeça do bebê. Notei que a equipe médica dali tratava a mãe com um grau de violência. Queriam fazer uma episiotomia, o que não era necessário, e impedi-la de se mexer. Pedi que as pessoas se afastassem para abrir espaço. Com o auxílio de uma técnica de enfermagem, concluí o parto.
A situação naquela época não era diferente da de hoje. Muitos indígenas morriam de doenças tratáveis e havia uma falta generalizada de insumos. Constatei isso na visita a Maturacá e em todas as outras unidades de saúde por onde passei.
O território Yanomami é dividido em 37 polos-base, que são microáreas onde há uma sede com estrutura mais completa de atendimento. Cada polo-base administra várias unidades de saúde – as UBSIs, que atendem os indígenas cotidianamente. Quando surge um caso mais grave, o paciente deve ser transferido da UBSI para o polo-base. Se nem ali o problema for resolvido, pede-se então que ele seja transferido para a cidade. Assim funciona na teoria. Na prática, é muito diferente.
A maioria dos polos-base são desassistidos. Não têm material básico para o exercício da medicina, como luvas, máscaras, ou leitos de enfermaria. Em tese, deveriam ter não apenas isso como também oxigênio e medições venosas, mas nunca foi o caso. Isso faz com que, em vez de ser levado ao polo-base, o paciente seja transferido direto para a cidade. Uma operação complexa e que não é ideal. Já tive de pedir transferência para um paciente com malária porque não tinha medicação para tratá-lo. A malária é endêmica na região, uma doença comum.
Na maioria das unidades de saúde não havia sequer banheiro. Fazíamos nossas necessidades em buracos no chão, sem privacidade. Cozinhávamos nossa comida num fogo a lenha improvisado e, como esse preparo era muito trabalhoso, comíamos só uma vez por dia. A gente racionava a comida com receio de que o voo de volta atrasasse, o que frequentemente acontecia.
Trabalhei na Terra Indígena Yanomami durante onze meses. Nesse período, sempre tive a sensação de estar numa areia movediça. Quanto mais eu lutava para contornar aquela situação precária, mais eu era sugada por ela.
Sem uma estrutura adequada de atendimento, não era possível tratar doenças que requerem um cuidado diário, como malária, tuberculose e pneumonia, sem falar na desnutrição. A malária, por exemplo, exige controle preventivo para diminuir o número de mosquitos transmissores, senão a doença não acaba. As pessoas continuam se contaminando, e eventualmente isso produz casos graves. A malária, se não tratada, pode causar lesões cerebrais, anemia e insuficiência hepática.
Entre as crianças yanomami, era comum haver doenças respiratórias como asma e pneumonia. Muitas vezes não havia oxigênio para cuidar delas. A primeira criança que vi morrer, desde que virei médica, foi um bebê yanomami de quatro meses de idade. Assisti àquilo sem poder fazer nada. Eu não tinha equipamento para reanimá-la, não tinha nada. Ainda tenho muita dificuldade em falar desse dia.
Para quem já trabalhou nessa região, as notícias que saíram nas últimas semanas não são surpresa. A novidade é o governo se mobilizar para resolver o problema. Vendo o noticiário, me sinto angustiada e impotente. Lembro das situações traumáticas que passei ali dentro. Queria que tudo pudesse se resolver da noite para o dia, mas a verdade é que essa crise é profunda e muito enraizada.
Os yanomami em sua maioria não falam português e, portanto, não entendem as receitas escritas. Quem faz essa mediação são os Agentes Indígenas de Saúde (AIS). Mas nem todos AIS conseguiam fazer a tradução, porque não receberam treinamento nos últimos anos e desaprenderam o português. Isso sempre fez com que o acompanhamento dos pacientes fosse difícil. Além disso, os yanomami têm uma relação diferente com as doenças. Quando são tratados e deixam de ter sintomas, não querem mais tomar o remédio. É preciso ter profissionais de saúde em contato permanente com eles para auxiliar e explicar esse tratamento.
Nas aldeias impactadas pelo garimpo, a saúde é só a pontinha de um problema muito maior. É comum que yanomami, sobretudo os homens adultos, sejam cooptados pelos garimpeiros. Às vezes recebem uma quantia de ouro por mês – na minha época, a média costumava ser de 11 gramas – para deixar os trabalhadores do garimpo comerem na aldeia todos os dias. Como não há onde gastar esse “salário”, os yanomami compram mercadorias trazidas da cidade pelos próprios garimpeiros. Costumam ser produtos como cerveja, celular, sardinha enlatada e arroz – sempre vendidos por um preço muito acima do que realmente valem.
Esse contato com garimpeiros não apenas causa o endividamento dos indígenas, como muda completamente seu modo de vida. Na cultura yanomami, os homens são responsáveis por plantar a roça e caçar alimentos. Muitos deixam de fazer isso quando passam a prestar serviços para os garimpeiros, e suas famílias ficam desassistidas. Os indígenas se tornam dependentes de álcool e cigarro trazidos pelo homem branco. Com a proximidade das máquinas do garimpo, que fazem muito barulho, os animais que os indígenas costumam caçar desaparecem. Essa dinâmica também leva mulheres yanomami a se prostituir. Se engravidam dos brancos, são expulsas de suas aldeias. É um ciclo de destruição completo.
Em março de 2022, decidi deixar o trabalho na terra indígena. Tomei essa decisão porque estava com medo de morrer. Nas últimas viagens que fiz ao território Yanomami, presenciei tiroteios. Não sabíamos ao certo a causa desses conflitos. A gente só se escondia. Além dos garimpeiros, alguns indígenas andavam armados. Era intimidador. Nós estávamos sempre perto de uma área de garimpo.
Mas não era só isso. Toda a situação era muito frustrante. Eu assistia a pessoas adoecerem e morrerem sem poder fazer nada. Chorei escondido no dia em que comuniquei meu desligamento. Eu sentia que era preciso recuar. Estava começando a ficar insegura. Quando Bruno Pereira e Dom Phillips desapareceram, fazia pouco tempo que eu tinha pedido demissão. Eu só conseguia pensar que isso poderia ter acontecido comigo ou com algum de meus colegas indigenistas.
Hoje trabalho atendendo refugiados venezuelanos e outras comunidades indígenas próximas à fronteira, em Pacaraima (RR). Mas decidi que quero voltar à terra dos yanomami. Não há muitas pessoas no país que conhecem esse território, então sinto como se tivesse uma obrigação moral de voltar a trabalhar para esse povo. É a minha prioridade. Na saúde indígena, a gente costuma dizer que há o “chamado da floresta”. Uma coisa da ordem espiritual. Quando a floresta chama, se você não ouvir, você enlouquece. E eu sinto que a floresta está me chamando.