Tornou-se infame a teoria do cientista político Francis Fukuyama segundo a qual a História teria chegado ao fim. A democracia liberal desenvolvida no Reino Unido e nos Estados Unidos se espalharia por todo o mundo, que alegremente adotaria a economia de livre mercado e todos seriam felizes para sempre. Obviamente, deu tudo errado. Poucas teorias na ciência política foram provadas falsas com tanta clareza a ponto de se tornarem ridículas. Ainda assim, a tese do fim da História se mantém influente no debate público, mesmo sob disfarces.
Ela aparece nas opiniões publicadas por uma pá de cientistas políticos e jornalistas desde que Jair Bolsonaro mostrou-se um candidato competitivo para a Presidência. A eleição dele nada mudou na certeza desses analistas, que afirmam categoricamente, como se lei fosse, que a democracia brasileira não corre risco. O problema é que a democracia como a conhecemos é um fenômeno recentíssimo e absolutamente nada garante que continuará existindo.
Para começo de conversa, definir democracia é uma coisa mais difícil do que parece. A Inglaterra, depois da Revolução Gloriosa, seria uma democracia? Foram criadas instituições sólidas – o parlamento britânico existe com mais ou menos a mesma estrutura até hoje –, mas só algo como 3% dos homens podiam votar. E os Estados Unidos? Surgiram com uma Constituição tão bem desenhada que sobrevive há 231 anos. Mas podiam na sua origem ser considerados uma democracia, mesmo com um quinto da população escravizada? Mesmo com o voto restrito a homens brancos? Podem ser considerados uma democracia hoje, com o presidente eleito indiretamente e, por vezes, a despeito da vontade da maioria do eleitorado?
Não quero, com isso, insinuar que os Estados Unidos não sejam uma democracia (embora considere que são, sim, uma democracia muitíssimo problemática). Quero apenas apontar que democracia é uma variável contínua – há bem mais que cinquenta tons de cinza entre o branco de uma democracia utópica e o preto de um autoritarismo distópico.
Nossa visão, porém, é ofuscada pela história recente. Os textos clássicos da ciência política contemporânea foram em larga medida escritos entre as décadas de 70 e 90, quando o mundo de fato vivia uma onda de democratizações na América Latina e Europa Oriental. No resto do Ocidente, ninguém concebia que houvesse fenômeno capaz de ameaçar as democracias americana e europeias.
Mas há. Fenômenos como aumento da desigualdade e o ressurgimento do racismo nos Estados Unidos e na Europa mostram que é, na verdade, bastante fácil eleger populistas de direita que conseguem enfraquecer a democracia sem muita dificuldade.
Basta diminuirmos o zoom da câmera com que vemos a história para nos darmos conta da fragilidade da democracia. Eleitorado que inclua toda a população adulta, que finalmente trate mulher e minorias raciais como gente, é coisa só do século XX. E, mesmo assim, foi um processo gradualíssimo. Até nos Estados Unidos, o acesso de negros e latinos às urnas não está garantido em vários estados, como indicam as tentativas do Partido Republicano de estabelecer exigências de documentos inalcançáveis para a população mais pobre.
A própria estabilidade política americana é, em algum nível, uma ilusão. Os americanos passaram a maior parte de sua história polarizados acerca do que fazer com a população negra. No século XIX, a divisão levou a uma guerra civil. Foi só com o grande acordo social feito por Franklin Roosevelt em resposta à Depressão de 1930 que negros e brancos foram postos mais ou menos do mesmo lado. Durante quatro décadas, o New Deal – como é conhecido esse pacto – deu a sensação de estabilidade política inabalável. Mas o crescente antagonismo racial alimentado pelos republicanos, que começou na década de 60, passou por Richard Nixon e Ronald Reagan e encontrou seu ápice em Donald Trump, evidenciou que a grande divisão americana estava só adormecida. A eleição legislativa da última terça-feira é mais uma prova: os democratas levaram os cada vez mais diversos centros urbanos, enquanto os republicanos ganharam nas homogeneamente brancas zonas rurais. Nelas, o racismo explícito de Trump é qualidade, não defeito.
Hoje, o consenso é que o estado natural da política americana é polarizado. O que vimos entre 1935 e 1980 foi só o legado do gênio político de Roosevelt. E um país polarizado é, quase que por definição, instável. Um levantamento com especialistas da revista americana Foreign Policy colocou em nada tranquilizadores 35% a chance de uma nova guerra civil nos Estados Unidos nos próximos 10 a 15 anos.
Vemos hoje a Europa como o bastião de governos democráticos, mas essa ideia seria ridícula antes do fim da Segunda Guerra. A democracia só prosperou no velho continente depois do fim do conflito, quando os Estados Unidos praticamente impuseram as constituições de França, Alemanha e Itália – para ficar só nos exemplos mais famosos – vigentes até hoje. O sul do continente só se livrou de ditaduras nos anos 70 e o leste, só na década de 90 (na medida em que isso de fato aconteceu).
No grande esquema da História, os 73 anos decorridos desde o fim da Segunda Guerra é pouco mais que um frame num filme longo e complexo. Nada garante que as últimas sete décadas de relativa estabilidade democrática vividas pelo Ocidente não tenham sido a exceção, em vez da regra. É plenamente possível que o predomínio democrático nada mais tenha sido que um reflexo do tipo de liderança internacional exercido pelos Estados Unidos e que, à medida que as correntes globais mudam, nossa breve era democrática chegue ao fim.
E quanto ao Brasil? Em minha última coluna antes da eleição, argumentei que, probabilisticamente, nossa democracia está seriamente ameaçada por Bolsonaro. Claro que é cedo demais para ter certeza do que quer que seja, mas nada que o governo eleito tenha feito até agora me deu motivos para reverter esse julgamento. Infelizmente.
Nela, porém, cometi um erro sério: escrevi que não há nada que nós, democratas convictos, possamos fazer. Há, sim. É preciso, como escreveram Gil e Caetano, estarmos atentos e fortes contra qualquer tentativa de enfraquecer a democracia. É um trabalho ingrato, porque lento e pouco visível. Mas é o que nos resta fazer.
E só de estarmos nos remetendo a canções de 1968 já é um sinal dos tempos.