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questões epidemiológicas

Depois da festa, o pior da Covid

Rio Grande do Sul vive momento mais grave da pandemia, com mais jovens internados e a chegada da variante P.1; hospital aluga contêiner para corpos

Amanda Gorziza | 03 mar 2021_16h48
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O dia a dia de Anielle Ferrazza, 32 anos, enfermeira há oito anos no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, nunca foi tão angustiante como nas duas últimas semanas: atuando na linha de frente da Covid desde março de 2020, ela conta que a equipe se viu diante de um novo perfil de doentes superlotando as UTIs: se antes o mais comum era ver idosos em estado grave, agora há muitos pacientes com menos de 60 anos e jovens com sintomas graves de Covid-19 após as aglomerações de Carnaval.“Não tínhamos pacientes com 40 e 50 anos com tanta frequência. O sentimento que temos é que aumentaram expressivamente as internações de pacientes mais jovens”, afirma a enfermeira, que nunca vivera algo parecido. Diante do aumento de mortes, o hospital precisou expandir o necrotério e instalou nesta quarta-feira (3) um contêiner refrigerado – como medida preventiva, para não correr o risco de não ter onde guardar os corpos.

Os dados oficiais do Rio Grande do Sul, estado que subiu a bandeira preta em todos os municípios para sinalizar a alta gravidade da pandemia e registrou nesta quarta-feira lotação acima de 100% nas UTIs, confirmam o que a enfermeira observa em seu cotidiano: o estado vive o pior momento da pandemia. Segundo a Secretaria Estadual da Saúde, no intervalo que compreende as semanas epidemiológicas de 3 a 7 (26 de janeiro a 23 de fevereiro), foram registradas 885 novas hospitalizações por Covid-19 de pacientes de até 59 anos e que não apresentavam comorbidades. Esse grupo representa 17,3% das pessoas internadas. É um aumento significativo de 44% em relação ao período imediatamente anterior. Da semana epidemiológica 52 de 2020 à semana 3 de 2021 (29 de dezembro a 26 de janeiro), foram notificados 616 casos entre pacientes do mesmo grupo eles representavam 12% dos hospitalizados.

Um estudo realizado pelo Laboratório de Pesquisa em Resistência Bacteriana (Labresis) do Centro de Pesquisa Experimental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre dá pistas para ajudar a entender a situação caótica do estado. A equipe sequenciou 42 amostras de exames feitos em pacientes e funcionários do hospital, em grande maioria jovens de 30 anos ou menos que apresentaram alta carga viral no exame de PCR. Das 42 analisadas, em 25 foi encontrada a variante P.1, sendo 21 casos de pessoas residentes em Porto Alegre. Todas as amostras são de janeiro e fevereiro de 2021, no entanto, a nova cepa foi encontrada apenas nos exemplares a partir do final de janeiro. O sequenciamento foi realizado pelas pesquisadoras Priscila Wink, Fabiana Volpato, Franciele Monteiro, Fernanda de Paris, Clévia Rosett e Andreza Martins.

“O aparecimento da nova variante nessas amostras está relacionado ao grande número de casos em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul”, afirma Afonso Barth, coordenador do laboratório. Mas ele ressalta que, para fazer uma associação direta da variante com a explosão de casos, é preciso analisar um maior número de amostras, de pessoas com perfis variados. Dessa maneira, será possível investigar e afirmar se, de fato, a prevalência da P.1 é tão alta como a divulgada nesse grupo de jovens.

Levantamento realizado pela Secretaria de Vigilância em Saúde identificou outros nove casos da variante brasileira no Rio Grande do Sul – somados são ao menos 34 casos da cepa P.1. Nesta quarta-feira (3), a capital gaúcha tinha 560 pacientes com Covid-19 internados em UTIs, e outros 122 aguardavam nas emergências por leitos inexistentes de terapia intensiva. As internações cresceram 80% em quatorze dias. No estado, a letalidade hospitalar em UTI em fevereiro (até dia 23) foi de 75%, a mais alta desde o início da pandemia. Ou seja, a cada quatro pessoas que precisavam de um leito de UTI, três não sobreviveram. No total, já são 12.654 óbitos pela Covid-19 no Rio Grande do Sul.

Em Porto Alegre, as solicitações de internação de pessoas mais jovens acompanharam essa tendência em fevereiro. De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde, quase quadruplicaram as internações de indivíduos de 18 a 30 anos. Em janeiro, foram 51 e, em fevereiro, 194, um crescimento de 380%. No grupo de 41 a 60 anos, o aumento foi de 223%: as 748 solicitações de internações na capital gaúcha se transformaram em 1.665 no mês seguinte. O Hospital Moinhos de Vento, referência para casos de Covid-19 em Porto Alegre, também acompanha essa mudança de perfil: 25% dos pacientes em leitos de UTI tinham entre 30 e 60 anos em janeiro, percentual que aumentou para 30% no mês seguinte.

 

A 23 minutos a pé do Hospital Moinhos de Vento, na mesma rua, está localizado o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, outro centro de referência da Covid-19 na capital. Silvana Teixeira Dal Ponte, 40 anos, é médica emergencista e trabalha há sete anos no local. Ela relata que, além do aumento da procura por atendimentos, os pacientes estão em estado extremamente grave. Mesmo com a expansão da capacidade da emergência, os médicos não conseguem dar conta da alta demanda. Há pacientes em ventilação mecânica na emergência esperando leitos em CTI. “Como a gravidade do quadro dos pacientes é muito grande, ter leito não é uma garantia de que a pessoa vai sobreviver”, afirma a médica. Além disso, o perfil dos pacientes é diferente. Não são apenas pessoas do grupo de risco, mas também jovens sem comorbidades, que acabam, muitas vezes, precisando ser intubados. 

Na avaliação de profissionais de saúde ouvidos pela piauí, o que chama a atenção nesse momento da pandemia no estado é o grande número de internações de jovens sem doenças prévias e com quadros respiratórios graves. Algumas hipóteses levantadas para esse crescimento repentino são a maior exposição dos jovens ao vírus, principalmente nas festas de fim de ano e no Carnaval, e a circulação de novas variantes, como a chamada de P.1, originária da Amazônia. O que se sabe até agora é que a nova variante é mais contagiosa, mas ainda não há comprovação sobre ela ser responsável pelos casos mais sérios. “Não sabemos se isso se deve à agressividade do vírus ou ao fato dessa linhagem atingir um grande número de pessoas com maior facilidade, trazendo como resultado uma proporção maior também de jovens infectados”, afirma Luciana Tagliari, médica intensivista nos hospitais Moinhos de Vento e Ernesto Dornelles.

 

A rotina de plantões se tornou ainda mais exaustiva, com internações mais prolongadas devido ao maior número de pacientes com sintomas mais graves. De acordo com a enfermeira Ferrazza, do Hospital Moinhos de Vento, de janeiro para fevereiro duplicou o número de pessoas pronadas na UTI da unidade. A manobra prona é realizada em quem está com o quadro mais sério, no qual o indivíduo é virado de bruços para tentar melhorar a oxigenação. A enfermeira tenta ser otimista, mas diz que, sem medidas mais drásticas de fechamento de comércio e conscientização da população, o cenário só tende a piorar. No fim do expediente, dois sentimentos tomam conta dela: impotência e satisfação. Impotência por querer fazer mais pelos pacientes e não ter condições devido ao agravamento do quadro; e satisfação por interferir positivamente na vida de tantas pessoas. “Os dois sentimentos andam juntos a todo o momento.”

O número de mortos pela Covid-19 na UTI do Hospital Moinhos de Vento aumentou 128% em fevereiro: 41 pacientes internados morreram; em janeiro, foram 18. E o número de alta de pacientes diminuiu: em janeiro foram 173 e, em fevereiro, 156. Além disso, o hospital registrou nesta quarta-feira (3) 130,3% de lotação em UTIs, a maior de Porto Alegre. 

A médica Tagliari também relata, entre angústia e medo, a avalanche de internações nos hospitais em que trabalha e a busca incessante por leitos. Cada leito vago é ocupado rapidamente. “A sensação às vezes é de que não vamos dar conta. Quando um desaba, o outro vai lá e levanta, assim enfrentamos um dia de cada vez”, desabafa. 

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