Luis Fernando Ospina caminha pelo centro de Medellín cumprimentando aqueles com quem cruza o olhar: o vendedor de celulares, o verdureiro, o idoso que espalha livros usados no chão, o segurança. Ele puxa papo, mesmo sem conhecê-los, mas a interação dura pouco. Desde que foi ameaçado de morte e obrigado a deixar a zona rural do povoado de San José de Apartadó, em fevereiro passado, o ativista social de 46 anos, baixo, pele clara e cabelos negros foi perdendo um a um todos os lugares onde se encaixava.
Ospina entrou para um programa de proteção do governo e buscou refúgio na metrópole, mas não se adapta a Medellín. Não tem amigos, não encontrou trabalho longe da lida no campo, não gosta do barulho da cidade. “As pessoas não têm paciência para conversar aqui”, diz, abrindo caminho entre transeuntes. Ao longo de mais de três décadas, cultivou mandioca e milho em lavouras do município do norte do país – uma região que se declarou neutra no conflito entre o Exército e as Forças Armadas da Colômbia, as Farc, mas foi palco de massacres dos dois lados – e tornou-se líder de um movimento por melhorias nas condições de trabalho locais: cursos de capacitação, estradas para escoar seus produtos e empréstimos para plantio. Ospina acostumou-se a tratar com os guerrilheiros, pedir permissão para qualquer atividade, e acreditou que o acordo com o governo, em dezembro de 2016, finalmente o livraria do poder paralelo. Mas a consequência foi mais pressão ainda sobre os agricultores – com a saída dos guerrilheiros, traficantes assumiram o controle e movimentos sociais como o de Ospina foram apontados como inimigos. A visita de um grupo de sicários no meio da madrugada levou o ativista a deixar seu sítio e embrenhar-se numa plantação de cacau. Voltou à casa uma só vez, para pegar seus documentos.
Mesmo depois que as Farc entregaram as armas e começaram a sair das selvas e montanhas colombianas em processo de reintegração à vida civil, a violência política não arrefeceu – pelo contrário. Instaurou-se nos territórios antes controlados pela guerrilha um vácuo de poder que está sendo disputado por paramilitares e traficantes. Zonas empobrecidas e de difícil acesso nos estados de Antioquia, Cauca, Chocó e Nariño registram os maiores conflitos, uma vez que fornecem abrigo à economia ilegal da coca e da mineração.
Um informe das Nações Unidas divulgado em 20 de dezembro dá a medida do risco para os líderes sociais na Colômbia pós-Farc: em 2017, 105 ativistas foram assassinados no país – quase um a cada três dias. Dados da Defensoría del Pueblo mostram uma escalada nesse tipo de crime. Antes da saída das Farc, o número de ativistas mortos era quase a metade: 55 assassinatos em 2014, 63 no ano seguinte e 80 mortos em 2016. Há ainda no país cerca de 500 líderes ameaçados de morte, segundo a Defensoría del Pueblo, órgão do governo responsável por indicar e negociar proteção a vítimas do conflito armado que, ao longo de cinco décadas, se desenrolou no país.
A ONU classifica a situação atual como “uma ameaça à consolidação da paz depois de quase seis décadas de guerra”, como disse Martín Santiago, coordenador do órgão sobre o tema na Colômbia, ao primeiro sinal de aumento dos assassinatos, no começo do ano passado. A Defensoría del Pueblo vê uma “violação generalizada aos direitos humanos, com número significativo de vítimas de características e espaços geográficos semelhantes”, conforme posicionamento divulgado em julho. O presidente Juan Manuel Santos, no entanto, despolitiza as causas dos assassinatos para eximir-se de responsabilidade. Em outubro, afirmou “não haver sistematicidade nas mortes” e que “a maioria dos homicídios ocorreu por motivos pessoais”. Um dos principais aliados do presidente, o ministro da Defesa, Luis Carlos Villegas, foi criticado por atribuir o aumento dos assassinatos, em dezembro, a “brigas por mulher”.
O avanço das ameaças e dos homicídios contra ativistas sociais ocorre sobretudo em territórios dominados pela economia ilegal. O controle de atividades ligadas à coca, madeira e mineração está sendo disputado por grupos de traficantes, paramilitares, dissidentes das Farc e pelo ELN (última guerrilha operante na Colômbia e que atualmente negocia um acordo de paz). Líderes locais tendem a se opor ao estabelecimento desses grupos, mas as políticas do governo para os habitantes dos territórios antes dominados pelas Farc até aqui não têm sido totalmente aceitas. O governo central tenta coordenar de Bogotá um plano de substituição de cultivos de coca entre os camponeses de algumas regiões, oferecendo uma alternativa à atividade ilegal. Entretanto, em outros pontos do país, operações capitaneadas pelo Exército ou pela polícia para erradicar a planta base da cocaína têm sido feitas sem antes tratar com os camponeses, resultando em conflitos violentos.
No início de outubro, em Tumaco, porto pesqueiro de um dos estados mais pobres do país, cerca de mil e quinhentos pequenos agricultores protestavam contra as operações de erradicação forçada quando entraram em confronto com o Exército e a polícia antinarcóticos. Sete camponeses foram assassinados, supostamente por membros das forças públicas. A Corregedoria Geral da Nação, equivalente colombiano ao Ministério Público, pediu o indiciamento dos comandantes da polícia e do Exército como responsáveis pela operação. “Os camponeses cocaleiros vivem do que plantam e o Estado ainda não mostrou uma saída para eles. Tumaco é um sintoma de que não há um projeto planificado para sustentar a paz em curso”, disse Ospina, enquanto caminhava por uma feira no centro de Medellín, alheio à gritaria dos comerciantes.
Um em cada três homicídios de ativistas sociais registrados em 2017 ocorreu em zonas de cultivo de coca, segundo o Centro de Investigación y Educación Popular, o Cinep, um órgão que estuda o conflito armado no país. Estima-se que 200 mil colombianos trabalham hoje com o cultivo da folha de coca – e não há estudos que mostrem diminuição nesse número desde o fim da guerra com as Farc. Na região de Urabá, onde fica San José de Apartadó e onde Ospina passou quase toda sua vida, 24 ativistas sociais foram mortos desde que as Farc começaram a deixar a zona. A área é considerada estratégica para a produção e exportação de coca, madeira e minérios ilegais aos Estados Unidos e à Europa, e por dar acesso ao mar do Caribe, ao oceano Pacífico e ao Panamá. Por isso, desde os anos 90 a região de Urabá é disputada, seja por guerrilhas, traficantes ou paramilitares.
Filho de um verdureiro e de uma cozinheira, Ospina cresceu em meio à violência perpetrada na segunda metade dos anos 80 na Colômbia. O caminho que escolheu é sem volta, comentou uma tarde o ativista ao assistir ao socorro de ambulância a um motoqueiro que havia sofrido um acidente no centro de Medellín: “Há duas maneiras de se tornar líder: ou está no seu DNA, ou as circunstâncias te formam. Eu entrei para tentar me defender dessa guerra, mas, como até hoje não consigo sair disso, acho que nasci desse jeito mesmo.”
As ameaças a Ospina se intensificaram porque, ao contrário dos paramilitares que atualmente dominam sua região no vácuo do estado, os guerrilheiros não costumavam ver os ativistas como problema. Quando houve o pior conflito entre a guerrilha ELN e as Farc em Urabá, nos anos 90, Ospina já trabalhava na associação de agricultores da região, conhecida como Acasa, e conseguia transitar entre os grupos. Em 2002, no entanto, com a guerra no auge, a AGC (Autodefensas Gaitanistas de Colombia, maior grupo paramilitar do país, de extrema-direita, que antes atuava como AUC, as Autodefensas Unidas de Colombia) fez uma ofensiva na zona – foi quando o ativista aprendeu que, para comandar a organização de agricultores, precisaria sempre da permissão da guerrilha ou de paramilitares, quem estivesse mais próximo de dominar a região. Ospina equilibrou-se entre os lados até dezembro de 2016, quando as Farc deixaram suas posições também em Urabá. Ao contrário do que esperava, sua situação piorou.
Logo no dia seguinte à saída dos guerrilheiros, Ospina, que ganhou o apelido de Madera por negociar duro com seus adversários, recebeu uma ligação de um número não identificado, insistindo que desaparecesse dali. Uma voz tranquila com sotaque caribenho se identificou como sendo da AGC. O homem perguntou com cordialidade quanto custaria para que ele atuasse em favor do grupo. A partir daí, Ospina relata mês a mês o que vê como uma “decaída” em sua trajetória.
Em janeiro, mesmo diante da negativa do ativista, os paramilitares voltaram a lhe oferecer 4 mil reais. Com a oferta negada pela segunda vez, ameaças começaram a chegar por meio dos camponeses locais. O líder acudiu então à Unidade Nacional de Proteção (órgão governamental responsável por salvaguardar pessoas ameaçadas) para pedir segurança. Deram-lhe um celular, um colete à prova de balas e a promessa de uma mesada de 100 reais mensais como ajuda de custo.
A medida não foi suficiente. Três homens desconhecidos apareceram de madrugada na porta do seu sítio em meados de fevereiro. A base do Exército a vinte minutos dali não os intimidou. “O cachorro conhece todo mundo, é manso. Mas ele latiu com raiva, aí percebi que era gente de fora”, contou Ospina. Como cercaram o portão da frente, saiu pelos fundos da casa de pijama e se refugiou em uma plantação de cacau. Quando o dia clareou, foi até a residência mais próxima, para ligar a companheiros da associação. Sua preocupação era tirar de sua casa os planos de projetos futuros e os envolvidos neles. Nomes e endereços poderiam ser usados pelos paramilitares. “Arrisquei que eles teriam cansado de me esperar e voltei. Separei meus documentos, um pouco de roupa e tudo o que era da associação e não voltei mais. É uma guerra de informação também”, comentou.
No dia seguinte, o ativista foi retirado de Urabá por um carro de uma ONG local. Sem ter para onde ir, partiu para Bogotá a fim de pedir ajuda do governo. O apoio recebido até ali do Estado colombiano – além de colete à prova de balas e celular, a inclusão de seu nome no cadastro federal de pessoas ameaçadas – não lhe deu conforto. “Ano passado um líder também de Urabá estava com todo esse esquema e o assassinaram. Não é o suficiente”, diz. Decidido a resolver ele mesmo sua situação, o ativista voltou a fazer contato com a família, que havia se mudado para Medellín no início dos anos 2000, cansados da violência no campo – por segurança, ele não contava às pessoas em San José que tinha familiares vivos.
Ospina foi morar em um quarto pequeno na casa de uma tia na periferia de Medellín, segunda maior cidade da Colômbia, deixando o sítio, a plantação, a associação, seus amigos e seu cachorro Kaliman para trás. Em maio, fez seu último trabalho remunerado, ligando direitos humanos e a União Patriótica, partido de esquerda. Dois meses depois, a Unidade Nacional de Proteção lhe pagou a segunda e última ajuda de 100 reais por estar na lista de protegidos pelo Estado, apesar de o governo ter dito que o benefício seria estendido. Em agosto, um rival de outra região se elegeu presidente da associação de camponeses de San José de Apartadó. Desde que se refugiou em Medellín, Ospina tentava se segurar no comando da associação, tocando projetos de plantação por um telefone protegido de grampos. “Tentei ao máximo, porque não queria e não conseguia me afastar. Mas o pequeno agricultor não segue ordens de alguém que não está lá, então tive de desistir.”
O ativista resignou-se de que estava mesmo sozinho, sem amigos e em uma cidade que não era dele em setembro, quando a conta no banco se aproximava do vermelho. Ele não via perspectiva de encontrar trabalho e desenvolveu uma postura depressiva – passou a falar que estava “morto em vida”. Sua contradição, hoje, é sentir-se seguro apenas longe de seus conhecidos, em um lugar onde não se encaixa. “É muito impessoal, ninguém me conhece e eu não conheço ninguém. Me falaram que eu tenho que aceitar essa nova vida e eu já tentei, mas não consigo. Na minha terra eu projetava as colheitas com os colegas, era a minha diversão. Aqui me sinto inútil.”
Além de tornar-se parte da lista de ameaçados, Ospina engrossou a contagem de mais de sete milhões de refugiados internos colombianos provocados pelo conflito desde os anos 60. Com a saída das Farc do cenário, a estatística está sendo revista, uma vez que mais depoimentos de afetados pelo conflito vêm à luz. “Nos próximos anos o número deve subir porque estamos tendo acesso a mais informação”, diz Gonzalo Sánchez, diretor do think tank público Centro Nacional de Memória Histórica, que também estuda a violência no país. “Os homicídios de ativistas e os refugiados estavam dentro da lógica do conflito armado, mas que seguem independentemente dele porque têm a ver com a disputa por terra e seus recursos.”
No fim de dezembro, em um dos últimos contatos com a piauí depois de cinco meses de conversas, Ospina tomou a decisão de retornar a San José de Apartadó. Junto com um colega ativista social também de Urabá, começaram a percorrer povoados da região conversando com camponeses para incluí-los em um projeto de agricultura familiar sustentável financiado por uma ONG sueca. Parte do orçamento foi para contratar uma escolta privada que os acompanhará por um mês e meio. “O risco existe, mas quero mostrar aos agricultores que, mesmo que nos persigam, não vamos abandonar nosso lugar.”