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    Ilustração de Paula Cardoso

questões de saúde

Depois dos holofotes, incerteza para o SUS

Em meio à pandemia e com quase 43 bilhões de reais a menos no projeto de orçamento, sistema de saúde tem reforma prevista para depois das eleições e é cobiçado pela iniciativa privada

Marta Salomon | 19 nov 2020_09h41
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Quando os casos notificados de coronavírus no Brasil ainda se contavam em centenas, o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta adotou o colete azul com o logotipo do Sistema Único de Saúde. Não era apenas um uniforme de trabalho, mas “um símbolo da defesa ao sistema único e universal de saúde pública”, ele diz, num livro sobre sua experiência no ministério, recentemente publicado.

Dois ministros depois, sem previsão de desfecho para a pandemia e com uma campanha de vacinação contra o coronavírus pela frente, o SUS enfrenta a perspectiva de redução de gastos em 2021 – uma redução que decorre inclusive de medidas que Mandetta adotou ou apoiou. O orçamento do Ministério da Saúde chegou ao Congresso com quase 43 bilhões de reais a menos do que os gastos autorizados neste ano. 

Como se não bastassem os possíveis cortes, há pressões no Congresso Nacional para ampliar o espaço da iniciativa privada no sistema de saúde, em debate que aguarda o fim das eleições municipais. Os prefeitos eleitos serão diretamente atingidos pelos resultados porque as prefeituras respondem atualmente pelos atendimentos básicos do SUS.

Objeto de um decreto editado pelo presidente Jair Bolsonaro no final de outubro e revogado dois dias depois, a construção e a ampliação de Unidades Básicas de Saúde (UBS) terão menos verbas federais em 2021, de acordo com o projeto de lei orçamentária enviado pelo governo ao Congresso (500 mil reais a menos). O mesmo acontece com os investimentos federais na estruturação da rede de atenção primária à Saúde, a porta de entrada no SUS, hoje bancada majoritariamente pelos próprios municípios. Nesses investimentos, a redução chega a 30%, um corte de 15 milhões de reais.

A oferta e a formação de médicos para a atenção primária também têm a proposta de gastos corrigida abaixo da inflação em 2021, com a implementação do Programa Médicos pelo Brasil, que substitui o Programa Mais Médicos. Com menor investimento em formação, os médicos passam a ser contratados por uma entidade sem fins lucrativos, a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS).

E o novo modelo de financiamento da atenção primária, introduzido em novembro de 2019 por Mandetta e pautado por critérios de produtividade, também representará um reajuste abaixo da inflação nos repasses aos municípios, mostra estudo feito por Francisco Funcia, consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde. O estudo compara os projetos de lei orçamentária de 2020 e de 2021, no nível mais detalhado de gastos. A inflação considerada pelo governo é de 2,13%.

O maior vilão da redução de gastos é a emenda constitucional 95, do novo regime fiscal, que limitou gastos públicos, inclusive com a Saúde. A aprovação da emenda constitucional do teto de gastos, em 2016, contou com o apoio de Mandetta, quando era deputado federal. Procurado pela piauí, Mandetta não quis se manifestar.

Uma campanha do Conselho Nacional da Saúde (CNS) lançada em agosto, intitulada “O SUS merece mais em 2021”, reivindica gastos adicionais entre 35,34 bilhões e 44,9 bilhões de reais no próximo ano. O primeiro valor garantiria o mesmo volume de despesas autorizadas extraordinariamente para a Saúde em 2020, por causa da pandemia. O maior deles ainda corrigiria esse valor pela inflação e pelo percentual de crescimento da população idosa. O CNS é composto por usuários, trabalhadores, gestores e prestadores de serviço do SUS. A petição pública, com mais de 550 mil assinaturas, chama atenção para os custos de uma campanha de vacinação contra o novo coronavírus e de procedimentos que tiveram que ser adiados por causa da pandemia, com o número de contaminados se aproximando dos 6 milhões de pessoas.

 

Como vai ter mais dinheiro para financiar a Saúde sem aumentar impostos?”, questiona Claudio Lottenberg, presidente do Instituto Coalizão Saúde. A entidade, formada por representantes da cadeia produtiva do setor de atendimento médico – como laboratórios farmacêuticos, planos de saúde e hospitais –, também apresentou a sua “agenda prioritária” para a Saúde. A proposta tem como pilar o aumento da participação da iniciativa privada no setor. Lottenberg já teve reuniões com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Em julho, Maia lançou como uma de suas prioridades até o final da gestão, em fevereiro, votar um projeto de fortalecimento e modernização do SUS. A coordenação dos trabalhos foi delegada por ele à deputada Margarete Coelho (PP-PI). “A ideia é fazer ainda na gestão dele (Maia), tem muita gente trabalhando, não precisamos sair do zero”, disse a deputada à piauí. Sem adiantar detalhes da proposta que fará depois das eleições municipais, Margarete Coelho avaliou que a atenção primária é “um grande nó”.  

Para Lottenberg, a atenção primária é uma oportunidade de expansão para os planos de saúde. Com planos mais baratos, ele explica, usuários do SUS poderiam recorrer a serviços privados e, dessa forma, “desafogariam” o sistema público, que ficaria responsável pelos casos mais graves. “O setor privado tem muito interesse em trabalhar na atenção primária”, resume.

A ideia de planos de saúde mais baratos e com cobertura reduzida recicla proposta feita em 2016 pelo ex-ministro da Saúde e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). “Quanto maior for o sistema privado, melhor será para o país”, insiste o presidente do Instituto Coalizão Saúde. Ele alega que os planos populares precisam de uma regulação que dê às empresas mais segurança jurídica para operá-los, limitando a sua atuação à atenção primária e livrando as empresas de se verem obrigadas, por eventuais ações na Justiça, a fornecer serviços e procedimentos mais complexos, como internação hospitalar, por exemplo.

 

A reação da opinião pública ao decreto presidencial editado no final de outubro – que abria caminho à ampliação das parcerias privadas na construção e na gestão das Unidades Básicas de Saúde – leva Nésio Fernandes, secretário de Saúde do Espírito Santo e integrante do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), a acreditar que uma tentativa de reforma do SUS perdeu força, assim como as parcerias público-privadas. O conselho divulgou nota crítica ao decreto, no qual enxergou a imposição de uma lógica de mercado ao SUS: “O decreto não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um modelo de negócio”. O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, também condenou o decreto pela suposta intenção de privatizar as Unidades Básicas de Saúde.

Questionada pela piauí, a secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (PPI) informou que espera restabelecer o decreto editado e suspenso pelo presidente Jair Bolsonaro em outubro. “O PPI espera rediscutir a agenda, que é importante para o país. A ideia é que o parceiro privado faça a gestão operacional, mas a condução da política pública continuará sendo feita pelo Ministério da Saúde, mantidos os preceitos de universalidade e gratuidade do SUS”.

O principal argumento do governo é que haveria 4 mil Unidades Básicas de Saúde em obras ainda não concluídas nos municípios. O decreto foi criticado sobretudo por ter sido editado sem uma discussão prévia.

A iniciativa privada já participa da atenção primária por meio de parcerias público-privadas. O município de Belo Horizonte, por exemplo concedeu à iniciativa privada a construção e a manutenção de quarenta Unidades Básicas de Saúde em 2016. A primeira concessão administrativa na área da saúde funciona desde 2010 no Hospital do Subúrbio de Salvador. 

Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) indicam que mais de 97% dos 47.407 estabelecimentos de atenção primária do país são administrados pelos municípios. Nesse número estão incluídos os estabelecimentos que funcionam em parceria com a iniciativa privada, nos municípios. Estudo em curso no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base no Sistema de Informação sobre Orçamento Público em Saúde (Siops), mostra, no entanto, que 15% dos gastos com a atenção primária têm como destino instituições privadas ou filantrópicas.

O modelo previsto pelo polêmico decreto de Bolsonaro tem avançado na construção e operação de creches públicas. Teresina (PI) estrutura projeto para até quarenta novas creches no município. Em Alagoas, uma consultoria irá estruturar um projeto-piloto para a concessão à iniciativa privada de 67 creches na capital e na região metropolitana de Maceió, informa a secretaria do PPI.

Especialistas indicam que o principal obstáculo às parcerias público-privadas para as Unidades Básicas de Saúde seria a falta de dinheiro nos municípios para bancar os pagamentos ao setor privado pela prestação de serviços. Transferir a gestão à iniciativa privada não resolve se continua faltando dinheiro aos municípios. 

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