No dia 10 de abril de 2019, a comunidade científica celebrou um feito notável: pela primeira vez na história, foi possível fotografar um buraco negro. A imagem – um círculo preto cercado por uma auréola alaranjada – rodou o mundo. Para fazê-la, foi preciso coordenar telescópios localizados em diferentes países, um trabalho colaborativo sem precedentes. Marina Walker Guevara, editora executiva do Pulitzer Center, lembrou desse episódio ao falar do jornalismo nos tempos da inteligência artificial (IA). Mais do que nunca, diz a jornalista argentina, é preciso colaboração, já que estamos diante de um fenômeno que está acima das capacidades individuais de cada veículo de imprensa. “Precisamos formar uma imagem mais nítida da inteligência artificial.”
Guevara participou, neste sábado (2), do Festival Piauí de Jornalismo, realizado neste fim de semana na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Ela foi entrevistada por Breno Pires, repórter da revista piauí, e Dorrit Harazim, colunista do jornal O Globo e conselheira do Instituto Artigo 220, entidade sem fins lucrativos que financia parte dos custos da piauí.
Radicada nos Estados Unidos, Guevara foi vice-diretora do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos e publicou reportagens em veículos como The Washington Post, The Miami Herald, Le Monde e BBC. É especialista em jornalismo investigativo e fez carreira com grandes apurações colaborativas. “É preciso pensar no jornalismo dessa maneira. Cooperação gera engenhosidade, confiança e um pouco de loucura”, diz Guevara.
Seu primeiro contato com inteligência artificial se deu oito anos atrás, quando ela coordenou os Panama Papers, uma investigação internacional baseada em documentos vazados do escritório de advocacia Mossack Fonseca, que traziam informações detalhadas de milhares de empresas sediadas em paraísos fiscais. Um escândalo a nível global. “Eram milhões de documentos. Muitos eram lixo, então a gente usou um subproduto da IA para ensinar o computador a filtrar aquilo que nós queríamos”, explicou.
De lá para cá, a tecnologia evoluiu. A inteligência artificial se tornou mais sofisticada e hoje impõe dilemas éticos ao jornalismo. Reportagens podem ser feitas quase integralmente por IA, que também funciona como ferramenta de busca. Guevara avalia que estamos lidando com um fenômeno ainda desconhecido e que exige, portanto, cautela. De onde saem os dados usados pelas plataformas de inteligência artificial? Quem as financia?
“Sejam céticos quando se fala na invencibilidade e na inevitabilidade da IA”, recomendou Marina Guevara, ressaltando que por trás desse tipo de tecnologia não estão robôs infalíveis, e sim humanos com interesses econômicos e suscetíveis a erros. A imprensa, até agora, não deu a devida atenção a isso. “Não sabemos o que está por vir, mas sabemos o que podemos fazer hoje. Vamos questionar cada afirmação que recebermos das empresas de IA.”
Num slide que apresentou à plateia do Festival, Guevara listou perguntas que os jornalistas devem fazer quando estão lidando com ferramentas de inteligência artificial: “Quem está pagando [por ela]? Quem está se beneficiando?”; “O que os fabricantes dizem que a tecnologia deveria fazer e o que ela efetivamente faz? Quais são seus usos não previstos?”
Um deles foi citado pela jornalista: alguns governos, em nome da segurança, utilizam ferramentas de inteligência artificial para espionar pessoas. É o caso do Pegasus, o mais poderoso software de espionagem do mundo. “Temos que entender que isso está acontecendo e nós jornalistas estamos vulneráveis. Podemos ser o alvo dessa vigilância”. Guevara defende a regulação das empresas que vendem tecnologias de inteligência artificial. E, antes de tudo, a autorregulação dos veículos jornalísticos, que podem criar diretrizes internar para lidar com as IAs – por exemplo, alertando os leitores sobre o uso de inteligência artificial em reportagens.
Em seu texto mais recente publicado no site do Pulitzer Center, em 20 de novembro, Guevara escreveu que o jornalismo colaborativo é baseado em três pilares: testemunhar, responsabilizar os poderosos e dar voz a quem não é ouvido. Tarefas que a inteligência artificial, por si só, é incapaz de cumprir. “As IAs não são projetadas em colaboração com as pessoas mais vulneráveis. Quem trabalha por eles? Somos nós, jornalistas”, afirmou, durante o Festival, neste sábado (2). “Não é preciso entender de IA, e sim de pessoas.”
Há, felizmente, bons exemplos do uso da inteligência artificial no jornalismo. Guevara citou a reportagem “A new vision of artificial intelligence for the people” [Uma nova visão da inteligência artificial para as pessoas], publicada em 2022 no site do MIT Technology Review. Usando ferramentas de IA, os repórteres conseguiram reproduzir os sons e fonemas do dialeto de um povo originário da Nova Zelândia – e, com isso, garantiram sua preservação. “Existem matérias de esperança. Esse é um exemplo.”