Sob Total Controle é um título paradoxal. O ambicioso documentário exibido sábado (10 de abril) na mostra competitiva internacional do Festival É Tudo Verdade demonstra o contrário da afirmação vergonhosa do presidente Donald Trump. Entrevistado durante o Fórum Econômico Mundial de Davos, em 22 de janeiro de 2020, Trump respondeu ao repórter que não havia preocupação com uma pandemia naquele momento: “E nós, nós a temos sob total controle. É uma pessoa vindo da China, e nós a temos sob controle. Vai ficar tudo bem.” Na véspera, havia sido divulgado o primeiro caso nos Estados Unidos de contaminação com o então chamado “coronavírus de Wuhan”: “uma misteriosa infecção respiratória que matou pelo menos seis pessoas e adoeceu centenas de outras na Ásia” (The New York Times, 21/janeiro/2020).
Três meses depois, o diretor e produtor Alex Gibney resolveu fazer um documentário para investigar “por que os Estados Unidos negligenciaram o perigo para o qual deveriam estar tão bem preparados”, conforme ele explica na narração do prólogo. Gibney havia perdido um amigo, outro usara ventilação mecânica durante duas semanas “e havia a sensação de que o governo federal havia bagunçado completamente a oportunidade de conter e controlar o vírus. Então, parecia que, em vez de só sentir esse desamparo, talvez houvesse uma maneira de desencavar a história e expô-la para as pessoas, focalizando principalmente os primeiros dias” (entrevista disponível na íntegra em https://www.etonline.com/totally-under-control-documentary-alex-gibney-154723).
Em 15 de abril, os casos confirmados de contaminação haviam chegado, nos Estados Unidos, a 722761 e os mortos a 33903, de acordo com o site da Universidade Johns Hopkins. Apenas seis meses depois, quando Sob Total Controle (2020) foi lançado, três semanas antes da eleição presidencial americana, os contaminados haviam passado de 7,7 milhões, e os mortos, de 217 mil (dados de Our World in Data). Mesmo assim, o trio formado por Gibney mais as codiretoras Ophelia Harutyunyan e Suzanne Hillinger não considerava o documentário um filme político: “Não estamos dizendo que os democratas teriam feito melhor”, explica Harutyunyan. “Estamos realmente nos atendo aos fatos e dizendo: ‘Precisamos de líderes que deem ouvidos aos cientistas. Os que temos não fizeram isso. Eis o que deu errado.’ E aí você decide o que fará em seguida” (Los Angeles Times, 7/outubro/2020). Postura apolítica um tanto bizarra, incompatível com a narração do prólogo, na qual Gibney atribui a responsabilidade pela tragédia humanitária, nos Estados Unidos, justamente à política que “se meteu no caminho da ciência, permitindo que o vírus se espalhasse de forma invisível e rápida”.
Presumir que Sob Total Controle teve influência na derrota de Donald Trump em 3 de novembro seria prova de credulidade. Nem por isso o documentário deixou de ser oportuno ao estrear nos Estados Unidos. E, ao ser exibido agora no É Tudo Verdade, comprova ter relevância também no Brasil, certamente imprevista por seus realizadores. Em primeiro lugar, contrapõe-se à evocação memorialística dos documentários atemporais selecionados para a mostra competitiva brasileira, conforme comentei na coluna da semana passada.
Realizado no calor da hora, Sob Total Controle tem origem na reação de Gibney ao que ocorria à sua volta e estava fora de controle. O documentário resultante foi concluído e lançado a tempo de interagir com o próprio tema que lhe serviu de inspiração. É uma intervenção deliberada no transcurso de acontecimentos da vida real, feita com objetivo definido – trazer a público a história de um crime, conforme Gibney declarou na mesma entrevista ao Los Angeles Times citada acima. A iniciativa pretende ter influência e se fazer ouvir, quer seus realizadores considerem o filme político ou não. O fato de ser, em última análise, um conjunto de entrevistas intercaladas com imagens de arquivo, montadas em ritmo acelerado, narrado em voz off, seguindo o padrão dominante do documentário americano, não afeta seu interesse e valor. Mesmo sendo penoso, por vezes, acompanhar suas duas horas de duração (123’), resiste bem por tratar da maior e mais grave calamidade sanitária de âmbito mundial do nosso tempo.
Há, porém, outro aspecto que torna Sob Total Controle particularmente atraente para nós: a apresentação sem disfarce da matriz que gerou o imitador caricato, destituído de talento, morador provisório do Palácio da Alvorada, responsável em última instância pela nossa tragédia nacional. Trump desdenhou da Covid-19, e você sabe quem foi atrás em seguida ao chamar a doença, primeiro, de “gripezinha” e, depois, de “histeria”, “fantasia”, “mimimi” etc., à medida que o número de contaminados e de mortos crescia, chegando em 12 de abril a mais de 13,5 milhões e de 355 mil, respectivamente, com média móvel de óbitos de +15%, indicando estabilidade.
Outra fonte de inspiração para os desmandos do capitão surge em Sob Total Controle na figura do médico de família Vladimir Zelenko, conhecido divulgador, em 2020, do coquetel de hidroxicloroquina, sulfato de zinco e o antibiótico azithromycin, ao qual acrescentou em janeiro passado a sugestão de usar nebulização de hidroxicloroquina. Transformado em celebridade da direita, Zelenko recomendou inundar as ruas de Nova York e New Jersey com hidroxicloroquina, informa Sob Total Controle. Não tendo sido publicadas em alguma revista médica, as receitas de Zelenko permanecem sem ter comprovação científica, além de poderem causar graves efeitos colaterais. Segundo o site Aos Fatos, artigos sobre o assunto atestaram “que seu uso não traz benefícios”, o que não impede seu uso de continuar sendo recomendado por você sabe quem.
Para concluir, reproduzo a afirmação final feita em Sob Total Controle pelo médico Tom Frieden, diretor do CDC – Center for Disease Control and Prevention (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos, de 2009 a 2017. Ele se refere, naturalmente, ao seu país, mas o que diz se aplica, sem tirar nem pôr, ao Brasil: “A verdade é que líderes políticos falharam ao deixar de seguir a orientação da saúde pública, e foi isso que causou uma doença evitável, mortes e destruição econômica.” Como disse o biólogo e pesquisador Átila Iamarino há uns dias na GloboNews: “O Brasil promove o contágio e não o controle do contágio.”
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Hoje, no Festival É Tudo Verdade, às 15 horas, há uma sessão de Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi; e às 21 horas será exibido Zimba, de Joel Pizzini. A partir de amanhã, 15 de abril, serão exibidos outros dois filmes da mostra competitiva brasileira: Os Arrependidos, de Ricardo Calil e Armando Antenore; e Edna, de Eryk Rocha, nos dias 16 e 17. Os demais já foram exibidos.
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Dia 18 de abril, domingo próximo, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam com Eryk Rocha no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Edna, mais recente documentário de Eryk, estreia na próxima sexta-feira, 16 de abril, na mostra competitiva brasileira do Festival É Tudo Verdade. A personagem-título vive à beira da rodovia Transbrasiliana. Criada pela mãe, ela experimenta no próprio corpo as marcas da guerra pela terra. A partir dos seus escritos no caderno “A história de minha vida”, ela faz seu relato. De grande beleza visual, e com sofisticada edição de som, Edna é o relato de uma sobrevivente. Ela “sonha sair daqui para um lugar que não sei aonde.”
O acesso à conversa com Eryk Rocha, no próximo domingo, 18 de abril, no programa #DomingoAoVivo, pode ser feito através do link https://youtu.be/IUJIRgJh1Ek