A ilusão de que a Covid-19 seria uma doença democrática e atingiria da mesma forma todas as raças, classes e gêneros durou pouco – os números da pandemia escancararam ainda mais a desigualdade brasileira. É o que comprova o estudo Social Inequalities and Covid-19 Mortality in the City of São Paulo (Desigualdades sociais e mortalidade Covid-19 na cidade de São Paulo), que analisou as mortes ocorridas na capital paulista entre março e setembro de 2020. De acordo com o estudo, conforme diminuem os indicadores socioeconômicos, como o acesso à educação e a renda, aumentam os riscos de morte por Covid-19. Para além do dinheiro, a cor da pele é o fator mais preponderante para o risco de perder a vida por causa do Sars-CoV-2, uma vez que entre pretos e pardos as taxas de mortalidade são 81% e 45%, respectivamente, mais altas que as de pessoas brancas.
Publicado em 28 de fevereiro deste ano, no International Journal of Epidemiology, da Oxford Academic, o estudo usou dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade da cidade de São Paulo. O sistema registra todas os óbitos acontecidos no município, com informações sobre idade, sexo, raça, distrito de residência, local e data de morte, tipo de administração da unidade de saúde (pública ou privada) e a causa da morte. Esses dados foram cruzados com os indicadores socioeconômicos dos locais de moradia dessas pessoas, o que permitiu aos pesquisadores entender como os contextos sociais podem influenciar na eficiência do combate à Covid-19.
Os números mostram a relação entre o nível de escolaridade e o risco de morrer por Covid. Na população jovem e adulta, entre aqueles que vivem em áreas com menor percentual da população com curso superior, a mortalidade foi quatro vezes maior em comparação com o grupo que mora em áreas mais escolarizadas. Isso pode ser consequência da exposição maior ao vírus devido à ida ao trabalho, o uso de meios de transporte e a alta incidência de comorbidade entre pessoas com menos escolaridade.
“A desigualdade sempre existiu, a pandemia só veio para escancarar isso. E quando a gente fala da diferença racial, aí que o abismo fica ainda maior“, diz Karina Ribeiro, professora e pesquisadora do departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, que liderou o estudo. “A heterogeneidade em altas taxas de morbidade e mortalidade de Covid-19 está frequentemente associada à estrutura de saúde de um país e à desigualdade social, por isso esses dados repetem os abismos sociais do Brasil.”
O estudo comprova uma associação direta entre raça e local de morte. Enquanto os asiáticos foram o grupo com maior percentual de óbitos domiciliares, os negros (soma dos pretos e pardos) apresentaram os maiores percentuais de óbitos em unidades de saúde que não hospitais, ou seja, unidades básicas de saúde. Além disso, três em cada quatro os negros morreram em instituições públicas; já brancos (49,4%) e asiáticos (72,2%) morreram mais frequentemente em unidades de saúde privadas ou sem fins lucrativos. Isso pode estar relacionado com as barreiras no acesso à saúde. A cidade de São Paulo possui 4,09 leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) por 10 mil habitantes, mas essa taxa é de 5,27 no setor privado e apenas 1,58 para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Os impactos da desigualdade social na letalidade da doença também ficam claros na comparação entre os distritos com a maior e a menor taxa de mortalidade. O Brás, bairro de classe média conhecido pelo comércio de roupas na região central de São Paulo, registrou 192,3 óbitos por 100 mil habitantes, número quase quatro vezes o verificado no Jardim Paulista, bairro de elite, cuja taxa foi de 48,1 óbitos por 100 mil habitantes. Na capital paulista como um todo, o índice foi de 123,2 óbitos/100 mil habitantes “Não é que as pessoas mais ricas não se infectam ou morrem, o que acontece é que elas têm mais recursos à disposição que ajudam para que a mortalidade nesse grupo social seja menor”, apontou Ribeiro.
De acordo com a pesquisa, em áreas ricas, a desigualdade entre brancos e negros aumenta. É esse segundo grupo que morre mais. Quando moram nesses bairros, os negros residem no trabalho, como empregados domésticos, mas o acesso deles à saúde não é igual, e suas condições de vida não sao as mesmas. “O empregado não tem o mesmo tratamento de saúde do patrão, ele habita aquele lugar mas não pertence a ele. É a questão racial se mostrando mais forte que as demais. A diferenciação racial vai aumentando conforme aumenta a renda.”
Um outro dado que chamou a atenção da pesquisadora foi a diferença entre homens e mulheres quando o assunto é risco de morte por Covid-19. O levantamento aponta que, em todas as idades, pessoas do gênero masculino têm 84% mais risco de morrer do que as do gênero feminino. A ciência ainda não consegue cravar o porquê disso, mas alguns fatores podem explicar a disparidade, como hormônios sexuais, diferenças no estilo de vida que podem resultar nos homens maiores comorbidades, diferenças na exposição ao Sars-CoV-2 devido a fatores comportamentais e ocupacionais ou consciência dos sintomas e adesão às medidas preventivas de saúde.
As desigualdades apontadas pelo estudo poderiam ser ainda maiores se os indicadores socioeconômicos utilizados tivessem sido colhidos de cada uma das 19,5 mil pessoas que morreram no período estudado. Porém, ainda que o sistema de registro de óbito paulistano seja um dos mais completos e ágeis do Brasil, essas informações não estavam disponíveis. Mesmo assim, entendem os pesquisadores, é possível imaginar que as conclusões podem servir como parâmetro para entender a dinâmica das mortes por Covid em todo o país. “Esses resultados, ainda que sejam específicos da cidade de São Paulo, podem ser usados para se ter uma noção do que acontece em outras grandes cidades. Existe, inclusive, a possibilidade que os índices de desigualdade sejam ainda piores fora da capital paulista”, diz.
No fim do período estudado, houve uma tendência de diminuição na mortalidade em todos os grupos raciais, que começou mais cedo entre brancos e asiáticos, em comparação com pretos. Uma explicação possível para isso é a dificuldade em implementar medidas de distanciamento social e higiene adequada em áreas com alta vulnerabilidade social devido à aglomeração familiar e às precárias condições de vida.
Com o recrudescimento da pandemia e os recordes diários de mortes por conta da Covid-19, a tendência de mortes deve se repetir. “A direção para que se aponta é quase a mesma de quando começamos o estudo, só que mais acelerada. Nada foi feito para mudar essa tendência, pelo contrário. Houve um desincentivo às medidas protetivas e isso impacta fortemente nas camadas menos favorecidas”, avaliou Ribeiro. Para a pesquisadora, a politização da pandemia sabotou o sistema de saúde e o programa de vacinações. “O que aconteceu no Brasil foi uma esculhambação geral, principalmente por parte do governo federal. A negação da ciência e a descrença no perigo da Covid-19 todos os dias desorientam a população e levam ao caos que estamos vendo.”