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    Foto: Reprodução/Comprova

anais do golpismo

Desinformação em verde e amarelo

Às vésperas do Sete de Setembro, redes bolsonaristas investem em boatos para inflar protestos

Letícia Simionato | 06 set 2021_13h51
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“Isso a Globo não mostra! Começou cedo a invasão do Planalto!” O anúncio é feito por uma voz feminina e madura, com sotaque carioca. A mulher desconhecida, que não mostra o rosto, filma, de dentro de um veículo em movimento, inúmeras barracas de acampamento espalhadas num espaço aberto. É possível observar pequenas movimentações de pessoas e o prédio da emissora CNN ao fundo. Depois de uma pausa, em que só se ouve o barulho do vento, a dona da voz identifica o suposto lugar, “Praça dos Três Poderes”, e finaliza a filmagem amadora. O vídeo de 36 segundos ainda ganhou, no Facebook, a legenda: “7 de Setembro já começou e vai ser inesquecível! #AvanteBrasil #7desetembro #aglomerabrasil #obrasilénosso #jb2022 #brasil”. 

O responsável por compartilhar o conteúdo na rede social é João Barros Brasil, que se define como “advogado, ex mecânico de carros, ex remador profissional, faixa preta jiujitsu, Nacionalista, armamentista, defensor direito propriedade, um cidadao comum”. Barros foi suplente de deputado federal pelo Partido Social Liberal da Bahia (PSL-BA). Em 2020, ele se candidatou a prefeito de Ilhéus pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), mas não venceu a eleição. Conhecido como “João Bolsonaro”, por ser um forte apoiador do presidente, realizou sua campanha como alguém que “luta contra bandeiras defendidas por partidos de esquerda, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e falsos índios”.

O vídeo, que alcançou 895 mil visualizações e 38 mil compartilhamentos, é enganoso. O Comprova – coalizão que reúne 33 veículos de comunicação, incluindo a piauí, para verificação de boatos – descobriu que as barracas são do Acampamento Luta pela Vida, manifestação indígena que começou no dia 22 de agosto em Brasília. Organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o protesto dos indígenas acontece durante o julgamento no Supremo Tribunal Federal da tese do “marco temporal”. Portanto, não tem relação com o Sete de Setembro. Além disso, eles estão acampados na Praça da Cidadania, não na dos Três Poderes. Procurado pelo Comprova, Barros disse que o material não é de sua autoria e que compartilhou o que está circulando nas redes sociais. 

Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, afirmou, em entrevista à piauí, que esse tipo de desinformação atrapalha o movimento. “Além desse vídeo, outros conteúdos tentaram tirar nossa credibilidade, inclusive com falas preconceituosas de que tinham indígenas com celulares e roupas de determinadas marcas, por exemplo. É mais um desafio para os nossos povos que já vivem num cenário de ataques.” Tuxá esclareceu que o acampamento permanecerá em Brasília até o dia 11 de setembro, com cerca de 4 mil indígenas, para acompanhar a pauta do marco temporal, mas não promoverá atos amanhã. 

Em nove dias, de 17 a 26 de agosto, o Comprova fez quatro checagens de boatos voltados para o Sete de Setembro. A circulação dessas mentiras, que juntas atingiram mais de 95 mil interações e 975 mil visualizações, coincide com a convocação para os atos realizada pelo presidente e seus apoiadores. A empresa de análise de dados Novelo Data, que monitora o discurso político no Brasil desde 2018, aponta que as primeiras convocações aconteceram no começo de agosto, principalmente pela deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). No entanto, a intensificação desses chamamentos por bolsonaristas aconteceu entre a segunda e terceira semana do mês, no Facebook, Instagram e YouTube. Neste último, o principal agente é a Jovem Pan. Na semana retrasada, por exemplo, o vídeo mais visto, com mais de 1 milhão de visualizações, foi o da carta que Roberto Jefferson escreveu ao Pingos nos Is convocando para as manifestações. Outros canais tradicionalmente atrelados ao bolsonarismo também têm agido para inflar os protestos, como Folha Política, Jornal da Cidade Online, Rodrigo Constantino e Gustavo Gayer. 

Guilherme Felitti, fundador da Novelo Data, diz que um dos principais argumentos da extrema direita é, ironicamente, a defesa da liberdade. “Trata-se de um dog whistle dentro do bolsonarismo já visto em outras manifestações. Para eles, ‘liberdade’ esconde a opção de não seguir decisões da Justiça, sendo assim, é uma forma de se comunicar com os correligionários sem o risco da responsabilização jurídica. STF, TSE e Congresso estariam impactando a ‘liberdade’ dos brasileiros. A solução seria um golpe de Estado. Há uma forte expectativa de golpe amanhã”, afirma Felitti. Além disso, ele pontua o tradicional “culto de personalidade” a Bolsonaro a partir de conteúdos enaltecendo o presidente. Para ele, é possível notar que a movimentação pelo Sete de Setembro não se distancia muito da forma como o bolsonarismo normalmente se articula para manter sua base engajada. No momento, eles estão “explorando pilares para construir uma narrativa que passe a ideia de unidade e força. Nesse aspecto, não há novidades – o discurso hiperbólico, de urgência, e conteúdos com títulos em letras maiúsculas e cravejados de exclamações são o padrão desde sempre. Há também os tradicionais ataques à CPI, ao senador Omar Aziz e a Lula”, completa. 

Um exemplo de como o ex-presidente é alvo: um vídeo que viralizou, atingindo mais de 80 mil visualizações e 6,5 mil curtidas, é falso por dizer que o diretor-geral da Polícia Federal (PF), Paulo Maiurino, teria denunciado um conluio entre ministros do STF e Lula para assassinar Bolsonaro. Propagado em live pela jornalista Leda Nagle, o boato, que voltou a circular numa conta bolsonarista no TikTok, já foi desmentido pela PF, e a própria jornalista admitiu o erro. Também envolvendo o STF, outra mentira identificada pelo Comprova é a que sugere que o STF e o TSE querem impedir a eleição de candidatos cristãos. O vídeo interpreta de maneira equivocada uma tese proposta pelo ministro Edson Fachin, que foi rejeitada pelo plenário do TSE há mais de um ano. 

Apesar de ainda estarem ocorrendo ataques contra o STF – em redes como o Telegram ou feitos pelo próprio presidente, que afirmou que as manifestações serão ultimato aos ministros – a tática arrefeceu. De acordo com David Nemer, professor da Universidade da Virgínia e pesquisador da extrema direita no Brasil, o discurso dos apoiadores do governo baixou o tom nas últimas semanas. “Isso tem a ver com os inquéritos abertos depois dos atos antidemocráticos. Além disso, eles viram o que aconteceu com Sérgio Reis. Então, há, sim, um receio.” Nos dias seguintes à prisão de Roberto Jefferson, muitos vídeos que atacavam ministros foram deletados ou escondidos, exemplifica Felitti. “Claro, ainda existem críticas, mas a linguagem violenta refluiu”, comenta. 

Nemer destaca a presença de grupos específicos que se mobilizaram para o Sete de Setembro, principalmente no WhatsApp, como o pessoal do agronegócio, caminhoneiros, motoqueiros e evangélicos. O levantamento da Novelo identificou participação de Silas Malafaia e de outros pastores populares como Claudio Duarte e Antônio Júnior. Segundo ele, a agenda está mais dispersa, não tem uma pauta única para ir às ruas, e cada setor do bolsonarismo está indo por motivos particulares, mas o principal continua sendo mostrar apoio ao presidente. “Esses grupos estão trazendo um tom mais nacionalista e patriota. Eles querem mexer no afeto para motivar as pessoas a irem às manifestações.” Nemer destaca memes que exaltam Bolsonaro e seu suposto poder, como os em que ele aparece como imperador, montado num cavalo alado. 

Outro exemplo de exaltação ao “poder” de Bolsonaro é o post enganoso, verificado pelo Comprova, que afirma que o presidente teria promovido cerca de cem generais aos postos de marechais. No Facebook, o autor do conteúdo o compartilhou com a legenda “sabia que marechais são nomeados em tempos de guerra?”, dando a entender que o presidente já estaria se preparando para um confronto com os “inimigos”. “Tenta-se fazer o maior barulho possível para convencer de que Bolsonaro é alvo de uma campanha orquestrada pelo STF, TSE e Congresso. O bolsonarismo digital não molda sua mensagem para falar com grupos de fora. Eles adotam uma mesma abordagem tradicional não para convencer quem perdeu, mas para manter quem ainda tem”, afirma Felitti. 

As verificações citadas no texto foram feitas pela equipe do Comprova, com participação de jornalistas dos seguintes veículos: Estadão; Jornal do Commercio; Correio Braziliense; Poder 360; O Povo; A Gazeta ES; Correio de Carajás; e revista piauí. Você pode acessar todas elas no site do Projeto Comprova: https://projetocomprova.com.br/

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