Fábio Jr. estava voando alto em 1982. No embalo da música Pai, que fez sucesso graças à novela da Globo Pai herói (1979), emplacava uma atrás da outra nas rádios. Fazia poucos anos que abandonara o pseudônimo anglófono Mark Davis e já caminhava para o quarto álbum cantado em português. Vestia-se casualmente. Quando chegou para a sessão de fotos do novo disco, causou espanto. Trajando uma camisa branca de botão, coberta por um blazer de lã cinza, parecia menos um cantor romântico do que um corretor de imóveis.
Vera Roesler, diretora de arte da gravadora Som Livre, não hesitou. “Fábio, tira a roupa”, disse, enquanto se despia ela mesma de um blazer vermelho-batom de corte acinturado. “Agora veste essa.” Roesler tomou uma gravata preta emprestada de um executivo que passava por ali e em poucos minutos bolou uma nova ideia para a capa: com seu sorriso carismático incendiado pelo vermelho do figurino, Fábio Jr. vestia a camisa com a gola levantada e a gravata frouxa, numa sutil porém sedutora ameaça de se despir.
“A Vera sempre trazia uma nova possibilidade para as capas dos discos. Era maravilhoso trabalhar com ela”, lembra o fotógrafo Frederico Mendes, que a acompanhou em muitas sessões de fotos. “O universo das gravadoras sempre foi muito machista, não havia mulheres trabalhando. A Vera era uma exceção. Ela tinha sutileza, elegância, nunca cruzava o limite. Eu era objetivo, pão-pão-queijo-queijo, já ia pro estúdio com uma ideia pronta. A Vera trazia sugestões mais originais, criativas. E sempre me convencia.”
Era uma via de mão dupla. Naquele mesmo ano, Mendes sugeriu que o disco de estreia do Barão Vermelho fosse ilustrado por uma foto em preto e branco dos cinco rapazes, com retoques coloridos de ecoline. João Araújo, pai de Cazuza e dono da Som Livre, detestou o resultado. “Esse grupo é uma porcaria. Só fiz esse disco porque minha mulher me encheu o saco, mas não vai dar em nada. Ainda mais com essa capa. Não vai pra gráfica assim.” Vera e o fotógrafo aquiesceram. Em seguida, porém, fazendo-se de desentendida, ela remeteu o disco à gráfica como se a arte tivesse sido aprovada. O álbum estourou, Cazuza fez fama e o pai só se deu conta da desobediência quando a capa já estava nas ruas.
“Que diretor de arte topa uma loucura dessa?”, pergunta Mendes. Os dois viraram bons amigos. Ele pondera que, naqueles tempos, o mercado fonográfico era mais receptivo a inovações. “Era comum você não conhecer uma banda e comprar um disco pela capa. As gravadoras faziam apostas ousadas em artistas novos, para causar impacto nas prateleiras das lojas. O disco era um objeto de arte. Uma capa podia vender mais do que um artista.”
Vera Roesler assinou a capa de mais de duzentos discos. Entre eles, Mania de você (1979), que exibe Rita Lee com o próprio nome tatuado nas costas; Espelho Cristalino (1977), onde se vê um Alceu Valença sério, em sépia; Salve Simpatia (1979), com um sorridente Jorge Ben abraçado por uma moça; Mico de Circo (1978), que estampa Luiz Melodia numa pose enigmática; e Os orixás (1978), disco de ijexá ilustrado com uma gravura de Carybé. Composto por Luís Berimbau e Ildásio Tavares, o álbum de doze faixas, cantado por Eloah, é hoje uma raridade procurada em sebos. Foi Vera quem sugeriu a Jorge Amado que escrevesse o texto da contracapa, que inclui também um glossário de palavras iorubás.
Só ela conseguia domar a má vontade de Tim Maia em sessões de foto. Descobriu que a implicância do artista se devia, em parte, a uma insegurança: ele não gostava das próprias orelhas. Recorrendo a truques de iluminação e penteado, Vera resolvia o problema. Na fotografia que ilustra Tim Maia (1977), não se vê orelha alguma.
Amigos que trabalharam com Vera contam que ela era habilidosa ao administrar desejos conflitantes. Responsável pela capa do disco Tom, Vinicius, Toquinho, Miúcha (1977), optou por uma solução elegante, que dá peso igual aos quatro artistas. A fotografia em preto e branco os mostra enfileirados, mas o design direciona a atenção para a tipografia.
O disco foi gravado ao vivo no Canecão, casa de espetáculos atualmente desativada, no Rio de Janeiro. Foi nesse show que Vera conheceu o marido, Sergio Millon, com quem teve dois filhos, Rafael e Mariana. Sergio era filho de Lea Millon (1930-2011), outra figura importante da música brasileira, eternizada como a “tia Lea” da música W/Brasil, de Jorge Ben (Alô, alô, tia Lea/ Se tiver ventando muito/ Não venha de helicóptero). Vizinha de João Donato em Salvador, Lea se tornou empresária artística no fim dos anos 1960 para ajudar as sobrinhas, Dedé e Sandra, e seus respectivos maridos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que estavam exilados em Londres. Ela despachava remessas de dinheiro para os dois e administrava suas carreiras à distância. Mais tarde tornou-se empresária também de Maria Bethânia, Gal Costa e outros figurões da música brasileira.
Vera também levava jeito para resumir, em uma imagem, a salada musical que alguns discos comportavam. É o caso das trilhas sonoras de novelas, que compilam canções de diferentes gêneros. O disco de Cabocla (1979), folhetim da Globo, é ilustrado pelos lábios de Zuca, a protagonista interpretada por Glória Pires. Discos com bocas proliferaram nos anos 1970. Elas aparecem no encarte do álbum Sticky Fingers (1971), que consagrou a bocarra dos Rolling Stones, na capa de Fa-tal (1971), de Gal Costa, e na de Todos os olhos (1973), de Tom Zé (é uma boca, afinal). A capa de Cabocla contém também alguns elementos em negativo que remetem ao universo rural da trama e suavizam a carga erótica dos lábios. A imagem ganha um aspecto brejeiro e sensual, traduzindo bem uma novela onde conviviam a viola caipira de Sérgio Reis e o violão bossanovista de Nara Leão; a canção romântica de Nelson Gonçalves e a canção moderna de Milton Nascimento.
Embora trabalhasse para uma das maiores gravadoras do país, Vera preservou uma rotina artesanal de trabalho. Nunca concebia uma capa sem antes escutar o disco à exaustão. Vencida essa primeira etapa, rascunhava suas primeiras ideias a lápis. Projetava os desenhos na parede, sobre uma cartolina do tamanho de um LP. Testava, assim, como a capa seria vista à distância. Chamaria atenção quando fosse disposta nas vitrines?
Um cenário recorrente nas capas de Vera é o nascer do Sol no litoral do Rio. Certo dia, em 1982, levou um elegante Cauby Peixoto – e, claro, Mendes, seu amigo fotógrafo – para a Praia do Pepino, em São Conrado, às três da manhã. Cauby, acendendo um cigarro contra o crepúsculo, ganhou uma belíssima capa para Estrelas Solitárias, uma de suas obras-primas. “Por sugestão dela, fotografei muitas capas de discos assim, como Abre-te sésamo, do Raul Seixas, e Vontade de rever você, do Marcos Valle”, relembra Mendes. “Sol nascendo no Arpoador não tem erro. E o impressionante é que ficam todas diferentes.”
A única capa que Vera se ressentia por não ter feito era a do álbum que Elis Regina lançaria em 1982. A cantora estava no auge da carreira quando assinou contrato com a Som Livre, em outubro do ano anterior. O acordo foi celebrado com um jantar, ao qual Vera compareceu, felicíssima. Elis, no entanto, morreu três meses depois. Tinha 36 anos.
Depois da temporada na Som Livre, Vera partiu para outra aventura estética. Abriu uma grife de roupas, a VR (iniciais de seu nome), que tinha como carro-chefe os tricôs e malhas em modelagens exclusivas, produto raro no Brasil da época. Vera queria vender roupas que não dessem muito trabalho ao ferro de passar, e que servissem às mulheres tanto no trabalho quanto em eventos informais. Lea, sua sogra, indicou uma de suas sobrinhas para ser modelo. Chamava-se Patrícia Pillar, uma jovem que começava a tomar intimidade com as câmeras. Estampou, com desenvoltura, anúncios da VR em revistas como Manchete, Desfile e Manequim, e em jornais como O Globo e Jornal do Brasil.
Segundo a atriz, as sessões de fotos, conduzidas por Vera, eram sempre inventivas. “Eu era muito menina quando nos conhecemos, mas a gente se identificou rapidamente. A Vera era uma mulher independente, com seu próprio espaço, criadora, que inventava a vida, que fazia a vida dela acontecer. Isso me inspirou muito. Embora eu fosse jovem, ela confiou em mim como parceira, como tradutora de um estilo de vida que ela defendia para a mulher.”
Vera também pintava e esculpia cerâmica. Em 1979, dirigiu Casa da Flor, um documentário sobre a casa de mosaico do artista Gabriel dos Santos, uma referência em arte bruta nacional. Montou também quatro exposições individuais, nas quais exibiu principalmente suas esculturas. Fez de seu apartamento no Leblon um ateliê, onde ensinava escultura para grupos de alunos. Gostava de escrever sobre seu processo artístico. Em uma de suas anotações, disse: “Na arte, o gesto criativo é sempre resultado de emoções e sensibilidades, é um processo contínuo. Quando a peça está terminada, existe sempre a sensação de que poderia ter sido diferente. E começa-se tudo de novo, em outra peça, e apesar das técnicas adquiridas, das experiências anteriores, o espaço aberto é instigante, ameaçador. É como o enamoramento, como uma paixão. Eu me sinto sempre uma aprendiz.”
Nos últimos meses de vida, quando o câncer descoberto na pandemia começou a lhe cansar o corpo, Vera pediu aos filhos um kit para pintar aquarela, técnica inédita em seu repertório e que exige menos força nas pinceladas. Apesar das dores, pintou cerca de sessenta telas. Morreu em 19 de outubro, aos 76 anos, num sábado chuvoso de céu sem cores.