Por volta das nove da noite, quando o Jornal Nacional revelava o grampo telefônico no qual a então presidente Dilma Rousseff comunicava ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que o “Bessias” ia levar “um papel” para ser usado “em caso de necessidade”, centenas de pessoas saíam de casa – panelas à mão – para protestar contra o que seria uma manobra para garantir a Lula foro privilegiado. Era 16 de março de 2016 e ele era investigado na Operação Lava Jato, acusado, entre outras coisas, de favorecer ilegalmente os negócios do amigo e compadre José Carlos Bumlai. Se fosse nomeado ministro da Casa Civil – como aventava Dilma –, Lula se livraria do juiz Sergio Moro e poderia fazer sua defesa junto ao Supremo Tribunal Federal. Ao contrário, teria que responder a um eventual processo na Justiça comum. Naquela noite, entre os manifestantes que engrossavam a turba da manifestação, estava o gaúcho Jorge Colares, 58 anos, um empresário da área de análise de risco, de voz grave e sorriso fácil.
Colares saiu direto do trabalho, nem teve tempo de passar em casa e pegar uma panela ou vestir a camisa da Seleção, uniforme quase oficial dos protestos daquele dia. Como as outras cerca de 25 mil pessoas que lotaram o parque Moinhos de Vento – localizado numa região de classe média-alta em Porto Alegre –, ele também estava indignado com o que chamou de “obstrução da Justiça”, que estaria supostamente sendo articulada pela cúpula do Partido dos Trabalhadores. Ao longo de várias horas, bateram panela, gritaram palavras de ordem, entoaram o hino nacional até que, por volta da uma da manhã, a multidão começou a se dissipar. Foi quando Colares tomou a decisão que mudou sua vida e baliza sua rotina ainda hoje: ele iria ficar.
Na companhia de outra dezena de manifestantes, decidiu que passaria a noite aquartelado em protesto à situação política do país. Alguns buscaram barracas e colchonetes em casa. Houve quem providenciasse mantimentos. Nascia o “Acampamento Sergio Moro”. No primeiro dia, os transeuntes estranharam as tendas armadas no bairro frequentado pela elite gaúcha. Mas, aos poucos, dia após dia, ninguém mais reparava que o conglomerado tivesse tomado corpo. Em um momento, contabilizou-se 24 barracas ocupadas por cerca de 120 moradores. A maioria, tal como Colares, era de homens acima dos 30 anos.
De cara, os ocupantes do acampamento perceberam que era preciso escolher um líder. Por 28 votos, Colares foi eleito o prefeito do camping. Ato contínuo, ele instituiu um estatuto com diretrizes de convivência. Havia três regras tácitas: não falar de partidos, evitar comentários sobre a vida pessoal e segurar os confrontos verbais. “Tentávamos não incentivar o embate político entre nós”, explicou.
A rotina beirava a doméstica. “Nós fazíamos café, chimarrão, pão com salsichão. As pessoas levavam barraca, doavam alimento, lonas, materiais”, contou. “Fazíamos reuniões, assistíamos a filmes e até uma missa rolou por lá.” Banheiro, usavam os das lojas mais próximas. Contaram, inclusive, com a proteção dos empresários locais. “Os comerciantes faziam um ‘avanço’ na linha de segurança das lojas, pedindo para que seus guardas nos protegessem”, disse. A mulher e a neta de Colares o visitavam com frequência. Abasteciam-no com comida, roupas e não criaram caso com essa aventura política. Dia sim e o outro também, eles organizavam mini manifestações com palavras de ordem na vigília pelo impeachment e a favor do juiz da Lava Jato, e chegavam a parar os carros na avenida Goethe, uma das mais movimentadas da cidade, para expor as faixas confeccionadas em homenagem a Moro – a maior delas indicava o nome do acampamento, pintada com spray preto sobre um tecido amarelo. Outras traziam dizeres como “Somos Todos Moro”, “Estado Mínimo”, “Fora, Dilma”, “Fora Cunha” e “Fora Renan”.
Nem tudo eram só flores ou panelaços. “Às vezes as pessoas tentavam provocar, jogavam garrafa, gritavam coisas, e eu sempre me esforçava para acalmar o povo. Não poderíamos cair nas provocações, do contrário não permaneceríamos por lá”, disse Colares.
Na noite anterior à votação do impeachment na Câmara, sob orientação da Polícia de que seria perigoso permanecer no local por conta da quantidade de pessoas esperada, eles resolveram levantar acampamento. Havia passado um mês desde a fundação. Mesmo sem as barracas, os acampados assistiram à transmissão do mesmo local, vidrados em telões instalados pelo parque. “Tínhamos a sensação do dever cumprido”, contou-me Colares. “Houve um relaxamento.”
Mas ele continuou. Em 31 de agosto, dia da votação do afastamento de Dilma Rousseff no Senado, Colares montou sua barraca em frente ao Congresso. Na ocasião, finalmente teve a lisonja de conhecer Sergio Moro, em uma escapada que deu para visitar o Supremo Tribunal Federal. “Só não tirei selfie, essa história de selfie é ridícula. As pessoas têm que aprender a respeitar”, diz. Quando perguntei se o juiz era seu ídolo, ele tergiversou. “Eu não tenho ídolos. Tenho pessoas que respeito pela sua capacidade. Idolatria é perigosa, porque a decepção pode ser muito grande.”
Michel Temer tomou posse, a Lava Jato prosseguiu, Lula subiu nas pesquisas eleitorais, mas Colares perseverou participando de manifestações “anti-corrupção” convocadas por grupos auto-declarados anti-corrupção, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua. Mas alguma coisa parecia diferente. “Vejo que alguns movimentos foram feitos para promoção de partidos, de algumas pessoas. Eu não tenho problemas com candidatos, desde que a pessoa diga explicitamente que é candidata. Essas distorções é que deixam mágoa”, analisou. Na última manifestação, em 26 de março, Colares estava postado no mesmo local onde, no ano passado, ficara acampado. Calado, amuado num canto, ele observava o carro de som em cuja capota políticos discursavam contra o Estatuto do Desarmamento. Também percebeu a presença de monarquistas e defensores da intervenção militar, que protestavam um pouco mais afastados dali. Decidiu ir embora mais cedo. “Algumas pessoas têm se aproveitado da boa-fé dos outros”, disse. “Eu luto pelas minhas netas, pelas linhas filhas. Tem muitas coisas que estão entrelaçadas, alguns jeitinhos brasileiros com os quais eu não compactuo.”
Um tanto melancólico, ele busca força para continuar a luta. “Não podemos nos desmobilizar. E eu sou Fora Temer, também!” Ele não vê contradição na nova bandeira política. “Meu sentimento é de traição. Pela formação do gabinete que ele fez, com gente como aquele deputado do litoral”, disse, em referência ao ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, acusado pelo ex-assessor do presidente Michel Temer, José Yunes, de pedir que Yunes recebesse um pacote com propina do esquema de corrupção investigado por Moro. A seis anos da aposentadoria, Colares também se vê ameaçado pela reforma da Previdência proposta pelo governo Temer e lamenta que pouca coisa tenha mudado após a queda de Dilma. “Eu achava que teria uma punição mais forte a todos esses políticos, mas ficou tudo à deriva.”