Em fevereiro de 2019, os curitibanos Pérola de Paula Sanfelice e o marido, Marco Sanfelice, receberam a notícia de que a primeira filha deles, Pétala, fora diagnosticada com Síndrome de Rett, uma doença rara que afeta o desenvolvimento neurológico da criança. A família, no entanto, não se deixou abater. O casal passou a compreender a condição da filha e se empenhou para que Pétala tivesse qualidade de vida. Paralelamente, os médicos descobriram que a menina também tem epilepsia. Como os remédios provocaram reações violentas na pequena paciente, os pais aceitaram a recomendação médica e passaram a usar óleos derivados da cannabis no tratamento da filha. E deu certo.
Por meio das redes sociais, a história de Pétala chegou ao deputado estadual Goura (PDT), do Paraná. Após promover audiências públicas sobre o tema, o parlamentar apresentou um projeto de lei para garantir “o acesso a medicamentos e produtos à base de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabidiol (THC)” para fins terapêuticos, mediante prescrição médica, e para substâncias que estejam de acordo com normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “O objetivo é dar o acesso a esses medicamentos aos pacientes, garantindo a oferta pelo sistema público de saúde”, resumiu Goura. O projeto passou pelas comissões e está pronto para ir a plenário. A proposta foi batizada de Lei Pétala, o que emocionou os pais. “Eu fico orgulhosa da trajetória dela, de ter a possibilidade de que a nossa história possa ajudar a multiplicar o bem. A Pétala está simbolizando o bem”, disse a mãe, Pérola Sanfelice.
Em depoimento a Felippe Aníbal
A Pétala é a minha primeira filha e foi muito, muito esperada. Eu comecei a namorar o meu marido, Marco Sanfelice, em abril de 2002. Dois meses depois, passamos em frente a uma loja chamada Pétala e ele me disse: “Quando tivermos uma filha, ela vai se chamar Pétala.” A minha gestação foi maravilhosa, o momento mais pleno da minha vida. A Pétala nasceu como uma criança típica e até os nove meses de vida se desenvolveu como um bebê típico: ela se sentava, pegava objetos, se alimentava… A partir dali, o desenvolvimento dela estacionou. Ela não engatinhava e nem fazia menção de falar. Quando ela estava com um ano e meio, esse atraso começou a nos preocupar. Nós a levamos a tudo que era médico para tentar chegar a um diagnóstico. Fomos a seis neurologistas, a dois geneticistas… e nada!
Uma possibilidade era fazer o sequenciamento genético, um exame que, na época, custava 12 mil reais. Nós não tínhamos condições de pagar, então fizemos uma vaquinha virtual e arrecadamos mais que o necessário. Na ocasião, eu estava grávida da nossa segunda filha, a Coral, e o resultado do exame chegou nas últimas semanas da gestação. Optamos por só saber o resultado depois do nascimento. Em fevereiro de 2019, quando a Coral estava com 2 semanas de vida, achamos que estávamos prontos. E o sequenciamento genético diagnosticava a Pétala com Síndrome de Rett.
Num primeiro momento, foi como uma avalanche que parecia que ia levar toda nossa vida. Se você pesquisar na internet, você se assusta. A Síndrome de Rett, uma condição super rara, já foi considerada degenerativa e tinha-se a impressão de que a criança definharia em meses. Mas nossa filha não era aquilo que eu lia. Ela estava feliz, com saúde. Com o passar do tempo, fomos entendendo a condição que ela tinha. Percebemos que a família de uma criança atípica deixa de viver o ordinário, o comum, com tudo nos trilhos, e passa a viver o extraordinário. E isso é um presente, porque a gente passa a viver tudo de forma singular, aproveitando cada dia como se fosse o último, de forma muito bem vivida. A nossa filha não é a síndrome. Diagnóstico não é destino.
A Pétala continuou com as terapias que fazia desde que tinha 1 aninho. Hoje, ela faz fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicomotricidade. Ela consegue trocar passinhos, mas não tem equilíbrio nem força para andar sozinha. A partir de videoeletroencefalogramas, descobrimos que ela tem epilepsia. Quando ela está dormindo, desperta do nada. Ou então, quando está quase acordando, desperta tremendo. Isso precisava ser medicado. O primeiro remédio que ela tomou, o valproato de sódio – bem comum em tratamento de epilepsia – já provocou reação pesada. A médica da Pétala é bem cautelosa e tinha ministrado uma microdose. Ainda assim, ela não conseguia levantar os braços, parou de comer, de tomar água e de evacuar. Isso durou dois dias, até que cortamos o medicamento.
Tentamos outros remédios, que não fizeram efeito. Então, a médica, a doutora Mara Lúcia S. Ferreira Santos, pediu para que considerássemos ministrar o canabidiol. Foi um universo que tivemos que descobrir. Eu não sabia quase nada a respeito e tinha preconceito. Achava que a substância servia só para pacientes com convulsões pesadas, o que não era o caso da minha filha. Por outro lado, o que tínhamos até então eram fármacos extremamente pesados, que causavam reações tão fortes a ponto de a Pétala parar de comer ou ficar como dopada por seis horas. Fui perdendo meu preconceito. Chegamos à conclusão de que era melhor testar o canabidiol a perder a saúde da nossa filha.
Mas não é nada simples ter acesso à substância. Tivemos que pegar um monte de papéis assinados pela médica e firmar um termo de responsabilidade por estar ministrando o produto à nossa filha. Precisamos entrar com um pedido junto à Anvisa, pedindo autorização para comprar o remédio. Se a documentação estiver OK, a Anvisa autoriza a importação de tantos frascos, para tantas doses. Se o seu filho precisar ajustar a dose, falta medicamento. E precisava de um dinheiro fenomenal. Cada frasco custava 200 dólares, mais 75 dólares de frete. A operação toda custava 5 mil reais, para um volume de substância que daria para dois meses.
Nós começamos a importar, graças ao dinheiro que tinha sobrado da vaquinha que tínhamos feito para pagar o sequenciamento genético. Desde 2017 os pais também têm a possibilidade de comprar da Abrace [Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança], uma associação sediada em Pernambuco e que tem autorização para produzir e fornecer óleos derivados da cannabis. A Pétala toma 360 mg de canabidiol por dia, de um tipo que é importado, mais concentrado e que não tem THC [Tetrahidrocanabinol, a principal substância psicoativa da cannabis]. Ela também toma dez gotinhas de um outro óleo que tem outros canabinoides e é fornecido pela Abrace. Quando ela tem crises de epilepsia mais severas, usamos um spray nasal, chamado resgate, que também é da Abrace.
Faz um ano e meio que não pagamos pelos óleos. Na ocasião, uma amiga aqui do Paraná, mãe de uma criança com paralisia cerebral, conseguiu na Justiça que o governo do estado pagasse pelo canabidiol usado no tratamento dele. Inspirada nesse caso, eu entrei com uma ação. Foi um processo rápido: em dois meses a Justiça determinou que o estado também passasse a arcar com os custos dos óleos da Pétala. Apesar dos ganhos de causas semelhantes, vejo o canabidiol como um tratamento ainda muito distante da realidade da maioria das famílias. Para entrar com uma ação, os pais precisam contratar um advogado e pagar um perito médico, que vai atestar que a criança precisa da substância. Só para pagar o perito, gastamos 5 mil reais. Além disso, como se trata de medicamento controlado, é preciso receita. A cada dois meses, precisamos levar a Pétala ao neurologista e pegar a receita, para, só então, retirar o óleo. Nós vamos a médicos particulares. Como quem depende exclusivamente do SUS vai conseguir consulta com neurologista a cada dois meses? É caro e burocrático.
A Lei Pétala propõe acabar com esse custo e com esse trâmite burocrático. A proposta visa garantir o acesso de produtos à base de canabidiol e de THC a pacientes que precisem das substâncias em suas terapias. Se a lei for aprovada, pais e mães de crianças atípicas, por exemplo, não precisarão mais ingressar com uma ação judicial para conseguir os óleos. O governo do estado vai fornecer direto.
A proposta da lei é resultado de um processo de anos. Em 2018, quando lançamos a vaquinha para custear o exame da Pétala, o então vereador Goura me procurou pelas redes sociais. Além de contribuir com a arrecadação, ele perguntou o que poderia fazer para ajudar mais. Ele já se interessava pelo tema. Quando o Goura se elegeu deputado estadual, ele levou essa discussão para a Assembleia Legislativa. Lá, fizemos mais duas audiências públicas e ele propôs a lei. Na última audiência, ele anunciou que a proposta se chamaria Lei Pétala. Eu fiquei muito emocionada.
Há uma petição online para que os cidadãos paranaenses possam apoiar a aprovação da lei, ou seja, para que o governo do estado banque os medicamentos a pacientes como a Pétala. Mais de 4 mil pessoas já firmaram o abaixo-assinado, o que mostra a importância de garantir o acesso à cannabis medicinal a todos os pacientes que precisam. Mesmo pessoas que eu conheço que são mais conservadoras já manifestaram apoio à proposta. Quando há informação, não há preconceito. A Pétala nunca sofreu preconceito. As pessoas veem que ela está bem, saudável e com qualidade de vida. Ela é uma prova viva de que a cannabis medicinal funciona e é saudável.
Estamos na expectativa de que a lei seja aprovada no começo deste ano. Sabemos que o óleo não é um milagre. É um medicamento como outro qualquer: pode funcionar para uns e não funcionar para outros. Mas é algo que tem garantido qualidade de vida a inúmeras crianças e seus familiares. As camadas populares precisam ter acesso a esse tratamento. A Pétala vai fazer 6 anos em março. Eu fico orgulhosa da trajetória dela, de ter a possibilidade de que a nossa história possa ajudar a multiplicar o bem. A Pétala está simbolizando o bem. É uma celebração. Quando ela acorda e a gente vai tirar ela da caminha, ela abre um sorriso imenso. A nossa vida com ela é singular, rara e especial. Graças aos óleos de canabidiol, ela tem tido mais qualidade de vida. Queremos isso para todos.