A academia não é o paraíso. Mas o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser criado. A sala de aula é um ambiente de possibilidades, onde se tem a oportunidade de trabalhar pela liberdade, abrir a mente e o coração e encarar a realidade, enquanto se imagina, coletivamente, modos de cruzar fronteiras e transgredir. (bell hooks, Ensinando a Transgredir: A Educação como Prática da Liberdade)
Em meados de janeiro passado, quando se comemorava o início da vacinação contra a Covid-19, mas também se constatava a incapacidade do governo de vacinar ao menos as pessoas mais expostas e vulneráveis ao vírus, diversos grupos e pessoas começaram a difundir o texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo, publicado na piauí_172 (janeiro de 2021) e escrito por alguém que se apresenta, sob o pseudônimo Benamê Kamu Almudras, como um “professor universitário em meio às cruzadas autoritárias da direita e da esquerda”.
A quantidade de vezes que foi compartilhado e as muitas expressões de apoio e elogio que recebeu não deixam dúvida: o texto toca em ponto sensível da vida acadêmica brasileira, especialmente das universidades públicas, e abre um necessário debate sobre as relações entre professoras, professores e estudantes, neste momento em que recebemos, cada vez mais, alunas e alunos vindos de mundos muito diversos daqueles em que vive a maioria dos docentes.
O texto situa-se no âmago de uma situação marcada historicamente pela distância que separa a juventude negra, bem como pessoas oriundas de classes sociais mais vulneráveis, das instituições públicas de ensino superior – distância que nas últimas décadas vem diminuindo sensivelmente. Isso parece indicar que o desafio da construção de uma sociedade democrática está nos cutucando dentro da sala de aula: um desejo forte e genuíno de “romper hierarquias e questionar poderes”, como dizem estudantes citados pelo autor do texto. Talvez seja este mesmo o ponto central a mirar quando se considera, de um lado, o caráter elitista e conservador de grande parte dos cursos universitários brasileiros e, de outro, a prerrogativa de educar para o pensamento e para a liberdade, como propõe Paulo Freire.
Se “revolução” e “neoliberalismo” estão embaralhados nas atitudes descritas pelo autor, é urgente incorporar ao debate sobre o cotidiano acadêmico as reflexões que distinguem essas duas experiências, essas duas formas de viver e se relacionar, esses dois modos de subjetivação. Se é fato que vivemos em uma sociedade marcada pelo autoritarismo, que nos atravessa a todas e todos (não de modo indistinto, bastando lembrar o racismo e o sexismo), talvez seja demasiado juntar alhos e bugalhos na mesma cesta. É um favor que se faz aos movimentos conservadores extremistas colocar, no mesmo balaio, autoritários confessos, defensores dos sistemas hierárquicos e aqueles e aquelas que, apesar de alguns equívocos, se propõem a tentar mudar o status quo universitário.
Talvez se possa pensar, como o autor, que, nos “motins” feitos pelas e pelos estudantes para poder conversar sobre a carga de leitura ou a forma das aulas ou a escolha de autores e textos para debate, se manifeste também um desejo que relaciona a universidade a uma loja que oferece produtos ao gosto do freguês. O que não seria de surpreender: todos nós somos cotidianamente bombardeados por essa forma de vida individualizante e triste, baseada no consumo. Mas é inegável também que a maioria desses “motins” está atravessada por um desejo de transformação, por uma vontade de experimentar outros lugares, testar a potência do comunitário ou, simplesmente, dialogar e pensar o novo. São manifestações que nos provocam, vindas de pessoas que sempre estiveram fora do jogo e agora reivindicam seu direito a falar, questionar e fazer, de fato, parte do debate. Dessa perspectiva, a recusa de estudantes em aceitar a carga de leitura proposta remete, de fato, à questão sobre quem pode medir, de que modo e conforme quais critérios, qual é a carga adequada ou excessiva.
Os espaços públicos e o mundo que nos é comum estão sendo privatizados mais e mais, por isso é preciso saber distinguir quando agimos comprometidos com a construção de uma universidade pública e de uma sociedade voltada ao bem comum, e quando nos relacionamos com o saber apenas como produtividade e com a sala de aula como espaço estéril e burocratizado.
Para a filósofa Hannah Arendt, nós, os modernos, estamos aprisionados a um processo de produção ininterrupto e cada vez maior de bens pouco duráveis destinados ao consumo imediato. Nada mais próximo disso que a máxima “publish or perish” (publique ou pereça) que impera nos ambientes acadêmicos e que, de diversos modos, impomos a nossos alunos e alunas. Quando tudo o que fazemos se resume a esse mecanismo de produção e consumo incessantes, nos diz a filósofa, deixamos de coexistir em um espaço público, como seres políticos. Passamos a experimentar a vida como algo fútil, que, sem dispor de nada que seja permanente, não se realiza em coisa alguma. Tornamo-nos seres inteiramente privados – privados da presença dos outros, da possibilidade de compartilhar um mundo, de realizar algo duradouro. Despojados de direitos políticos e excluídos da construção desse mundo que deveria ser partilhado, os indivíduos se fecham cada vez mais na vida particular e no destino pessoal, que passam a ser seus principais objetos de interesse, enquanto sua relação com os outros enfraquece e toma a forma de concorrência de todos contra todos. A solidão e o isolamento forjam a experiência de não mais pertencer a um mundo comum.
Apenas quando ampliamos o horizonte da interpretação torna-se possível vislumbrar que os “motins” de estudantes dos quais fala o autor contêm algo muito diferente daquilo que ele consegue ver: há neles também um desejo de transformação. Não estariam os e as estudantes lutando contra o regime de produção e consumo e tentando instaurar um novo plano comum, no momento que convocam os e as docentes ao diálogo e buscam se organizar para fazer propostas, mesmo que às vezes o façam sem argumentos consistentes e de forma agressiva? Os e as estudantes, assim como todos nós, recorrem ao que lhes foi socialmente dado, e por isso certas reivindicações podem até ser formuladas na linguagem do consumo. Mas não se reduzem a atitudes neoliberais: são tentativas de contestar o autoritarismo universitário, participar da construção da vida acadêmica e atuar como coautores na criação de um mundo comum.
Temos constatado, a partir de numerosas pesquisas e na prática cotidiana de acolher alunas que sofrem violências, inclusive institucionais, como o autoritarismo acadêmico comete diferentes abusos, perversamente maquiados de respeito à instituição. Essa situação só fortalece o desafio que, em sala de aula, nos é colocado para pensarmos criticamente, levando em conta, como base, o conhecimento pedagógico. A falta desse conhecimento pode limitar a vivência dos professores, fazendo do protesto do estudante apenas um motivo de indignação pessoal para o docente.
Entretanto, no trabalho de cuidado e acolhimento de estudantes que desenvolvemos na USP, ainda não nos deparamos com “amotinados” que estivessem simplesmente pleiteando vantagens preguiçosas, como sugere o autor, nem com “atos oportunistas de pessoas movidas por objetivos mais imediatos e pouco louváveis, como obter uma aprovação não merecida, diminuir a carga de estudo e conseguir facilidades na concessão de um diploma”. Se existe abuso por parte de alguns alunos e alunas, isso não significa que todas as reivindicações delas e deles devam ser automaticamente colocadas sob suspeita.
É preciso reconhecer que nós, professores, estamos convivendo com uma juventude que chega ao ensino superior alimentada por informações e iniciativas que, graças às novas e múltiplas formas de difusão do conhecimento, abriram brechas na hegemonia intelectual exercida pelos grupos dominantes – essa “coisa escandalosa”, na expressão de Donna Haraway, que é o “patriarcado capitalista branco”, cujo poder submete a todos nos planos consciente e inconsciente.
Alunas e alunos sabem que é preciso estar em alerta e tensão permanentes contra essa força tão poderosa e atuante. As juventudes negra e indígena almejam uma literatura, uma filosofia e uma história fora dos padrões tradicionais. As mulheres e todas as pessoas LGBTQIA+ que hoje chegam à universidade questionam a visão de mundo formulada pela dominação masculina, branca e heterocisnormativa sobre a vida intelectual, acadêmica e científica.
Se, para alguns, a queixa de estudantes parece impulsionada por individualismo, negligência e consumismo, para nós ela expressa uma profunda insatisfação com a permanência do pensamento colonial e patriarcal neste espaço, a universidade, que deveria nutrir a visão crítica com liberdade, autonomia intelectual e democracia.
Assim, importa fazer da vida universitária, além de uma oportunidade para a criação e experimentação do conhecimento científico, filosófico e artístico, um espaço de convivência democrática, de criação de modos de autogestão e autogoverno. Importa fazer da universidade não apenas um lugar em que se reproduz a tradição, mas onde a tradição é reinventada. Como conteúdo e forma são inseparáveis, é impossível que relações autoritárias possam ensinar a cidadania democrática. Convivência e diálogo são fundamentais para uma universidade que almeja realizar seu papel civilizatório, ensaiando a utopia de um mundo melhor para todas e todos.
Por isso, é necessário promover um debate contínuo a respeito das denúncias de racismo, sexismo, classismo, homofobia e transfobia que emergem cotidianamente no ambiente universitário. O exercício comum do pensamento poderia ampliar o alcance desse debate favorecendo a recusa de lógicas binárias e incluindo a nós, professores, como objeto da reflexão. Como combater o elitista que há em nós, fruto da cultura e da sociedade em que estamos imersos? Como dialogar com pessoas que se sentem agredidas, fragilizadas e ressentidas quando questionadas por saberes forjados do lado de fora dos muros da universidade? Como lidar com as denúncias de modo a conseguir escutar o relato de vivências que são, com frequência, muito violentas? Como ampliar a discussão sem ingenuidade e paternalismo, mas livrando-a dos modelos do julgamento e da condenação, bem como do autoritarismo?
Se a sala de aula é potencialmente um espaço dialógico e transgressor, como nos ensina bell hooks, talvez devamos, como educadores e educadoras, primeiramente acolher as “demandas” dos estudantes, mesmo aquelas que nos pareçam estapafúrdias – pois elas existem, e disso não há dúvida. Esteja claro que acolher não é o mesmo que concordar e, muito menos, acatar. É reconhecer. E, ao reconhecer a possibilidade de questionamentos, estamos reconhecendo os próprios sujeitos que questionam. Para tanto, é preciso abdicar de nosso poder professoral e confiar no diálogo, que, na maioria das vezes, encaminha as questões de forma bastante satisfatória e promove o estabelecimento conjunto de limites e parâmetros para as atitudes de uns e outros. Tudo isso exige uma disponibilidade que, infelizmente, tende a ser colocada em segundo plano na vida acadêmica.
As situações que nos inquietam na sala de aula podem ter, sim, algo de individualismo neoliberal, mas contêm muitas vezes uma dimensão coletiva e revolucionária. Se ambas as características se manifestam numa mesma atitude, em regime de tensão, é função do pensamento crítico esforçar-se para distinguir uma coisa da outra, em cada uma das ações e discursos, seja o de professores, seja o de estudantes. Nesse processo, importa, sobretudo, reafirmar a educação como prática de apresentação de mundos possíveis às novas gerações, esperando que elas consigam renovar este em que vivemos, como vislumbrou Hannah Arendt. Abrir a escuta para outras linguagens e outros modos de entender e de dizer o mundo pode nos transformar a todos, pode subverter de algum modo a lógica da imediatez e do consumo e perturbar o imperialismo cultural que só considera digno de ser ouvido aquele que fala o que podemos entender porque diz algo que já sabemos.