O combinado era eu ir para Los Angeles cuidar do meu ex no seu pós-operatório de joelho, e do nosso shiba inu, um ancião de quase 16 anos. A passagem foi comprada com um mês de antecedência e, como moro em Nova York e trabalho na indústria de cinema/tevê, aproveitei pra marcar algumas reuniões. Estávamos todos animados com a visita.
Domingo, 8 de março
A Covid-19 causa drásticas interrupções diárias pelo mundo, num efeito cascata. Tenho um forte sentimento de que seria melhor adiar tudo. Inclusive a tal operação de joelho: uma cirurgia eletiva de repente parece um luxo de outras épocas. Pra que se meter num hospital, podendo evitar? E eu, num avião?
Ligo pro meu ex, mas ele não quer nem conversar. Diz que Miles, nosso Shiba, está contando os dias pra me ver.
O embarque para LA está marcado pra quinta-feira, dia 12 de março, às 11 da manhã.
Quarta-feira, 11 de março
No fim do dia, saio animado do meu apto. no Upper West Side pra assistir a Dona Flor e Seus Dois Maridos, em cópia restaurada, no Cinema Quad, do West Village. O filme estaria no telão por uma semana, mas essa noite é a mais especial; Dona Flor vem em carne e osso pra conversar e responder perguntas.
O filme começa às 19 horas, e Sônia Braga aparece ao final animadíssima, linda aos 70 anos (ela mesma anuncia no começo da conversa a idade que completará em junho) num Narciso Rodriguez sob medida, em comemoração à tão festiva ocasião. Mas o par de luvas negras de borracha com que ela segura o microfone é uma lembrança de que há algo estranho no ar. A certeza do terror vem no anúncio, da forma mais simpática possível, de que Sônia não faria selfies depois do bate papo, por recomendação médica. La Braga conta emocionada as lembranças de Jorge Amado, José Wilker e Bruno Barreto, responde perguntas do fãs com humor e profissionalismo, e em seguida escafede-se elegantemente pela porta dos fundos.
Saio do cinema, e o celular treme na minha mão com um número excessivo de mensagens atrasadas. A Organização Mundial de Saúde declarou a Covid-19 uma pandemia. Trump fechou as fronteiras com a Europa. Amigos de São Paulo estão em quarentena. E Bolsonaro chamou a população para se aglomerar numa manifestação de apoio ao seu governo.
A lembrança da voo no dia seguinte de manhã pra passar uma semana na distante Costa Oeste faz as minhas pernas tremerem. Tenho uma reação física à incerteza do momento. Não posso mais viajar. Ligo pro meu ex, mas ele diz que não cancelaria sua operação, e que meu cancelamento de última hora seria uma grande sacanagem.
Em casa, olhando para a mala já pronta, sinto meu estômago embrulhar. Abro o computador e clico ‘cancel this trip’.
Quinta-feira, 12 de março
Logo de manhã, recebo um e-mail da minha ex-sogra comunicando sua decepção com a minha decisão, e de como seria difícil para o filho achar um ajudante pra cuidar do cão àquela altura. Ainda lamenta a frustração de ela mesma não poder ir ajudar, já que cuida do marido de 90 anos.
À tarde, outro e-mail da ex-sogra. Ela mora no Norte da Califórnia e tinha ido ao mercado, onde encontrou a população enchendo os carrinhos num pânico de fim do mundo. Uma mulher desmaiara na longa fila de pagamento. Os paramédicos não conseguiam chegar, devido ao trânsito. Arrependida com o safanão matinal, ela agora concorda que fiz o melhor em não sair de casa.
Sexta-feira, 13 (de março)
Sem comentários.
Sábado, 14 de março
Pela primeira vez na vida, saio de casa carregando um tapete de yoga enrolado debaixo do braço. Pratico yoga há mais de uma década, mas nunca assumi o papel de yogi pela cidade. Sempre uso o tapete da academia, que limpo com um daqueles paninhos desinfetantes disponíveis na sala de exercício. Desta vez, por precaução, acho melhor usar o tapete que eu lembrava ter comprado há dez anos, e nem acredito quando o acho enfurnado no fundo do armário!
A classe, sempre lotada, está pingada de alunos. Sou o único com meu próprio tapetinho.
(Não sabíamos que aquela seria a última aula, até segunda ordem, mas também garanto que ninguém ficou surpreso quando o prefeito Bill de Blasio baixou a ordem de fechamento de todas as academias em NYC dois dias depois.)
À tarde, ligo pra minha mãe, e ela, preocupada em não atrapalhar meu trabalho, tenta me convencer que está tudo sob controle na sua casa. Manda um vídeo com duas cuidadoras sambando em volta do meu pai. O velho adora uma batucada, mas desta vez ele não sorri. Sábio, percebe que o carnaval acabou.
As sambistas são parte do time que cuida dos meus pais idosos e, preocupado com a perturbação que um potencial afastamento poderia causar na vida deles, penso em me mandar para o Rio. Mas lembro da minha irmã, que vive dizendo que meu pessimismo sempre antecipa problemas. Nesse caso, com certeza ela diria: “Qualquer emergência, pega um avião e pronto!”
À noite, minha irmã telefona. Ela sente que a tempestade se aproxima do Rio de Janeiro; teme que nossos pais precisarão da nossa ajuda.
Meu trabalho pros próximos meses é isolado, tenho um roteiro encomendado e escrevo sozinho. Eventuais reuniões com o diretor e produtor podem ser resolvidas pela internet. Posso fazê-las de qualquer lugar. Seria natural neste momento ir para o Rio, ficar perto da família. Mas a decisão não é tão simples assim: nunca fui sem saber quando poderia voltar.
Domingo, 15 de março
Acordo com a notícia de que a American Airlines decretou o cancelamento de todos seus voos para o Brasil, e outros tantos pelo mundo, a partir do dia seguinte. Outras companhias continuam voando, mas sinto que tudo pode mudar a qualquer instante.
Decido que o melhor a fazer é comprar uma passagem neste último voo de segunda-feira à noite. Acho estranho quando entro no site e encontro um assento facilmente. Compro o ticket para São Paulo, e depois eu pegaria uma ponte aérea para o Rio de Janeiro.
Sinto-me menos ansioso. Vou estar perto da minha família e, mais cedo ou mais tarde, volto pra casa.
No fim do dia, recebo um alerta da American dizendo que o voo atrasaria doze horas. Se eu quiser trocar para outro dia, devo tentar ligar para a companhia. Mas como assim? Este não seria o último voo? Desconfio que a companhia “overbooked” o avião, e agora vai me deixar na mão. Pra minha surpresa, consigo falar com um agente rapidamente. Ele de cara oferece uma opção de Brasil para a mesma noite: um voo para o Rio, decolando um pouco mais cedo. Consigo lugar neste voo direto, sem pagar multa. Melhor assim.
Segunda-feira, 16 de março
Arrumo minha mala às pressas, enquanto penso em como organizar a vida da minha casa em NY sem saber a data da volta. A ansiedade é grande.
Ligo pra outro ex, este um médico infectologista, que me recomenda levar toalhinhas de limpeza para desinfetar todo o entorno do meu assento do avião. Tomar cuidado com qualquer maçaneta, banheiros, e toda superfície. Lembrar de não levar a mão à boca nem ao rosto, principalmente durante as refeições, porque o fazemos com frequência sem perceber. Lembra que máscara protege principalmente de uma eventual propagação, mas nem tanto de contágio. Ao chegar em casa no Rio, ele recomenda tirar toda a roupa usada e botar pra lavar imediatamente e, final feliz, tomar um bom banho quente. Ah! E luvas descartáveis. Sônia Braga é que estava certa!
O caminho para o aeroporto, inevitavelmente sempre engarrafado ao fim de uma segunda-feira, encontra-se vazio. No rádio, depois de um medley de salsas caribenhas, o locutor avisa que “tudo vai bem” hoje no trânsito da cidade. O motorista do carro, acostumado com a vida no engarrafamento, responde com um esporro: “Sim, as estradas estão vazias… mas desde quando isso é bom??”
A calma com que o carro chega ao aeroporto apenas eleva o tom dramático do momento. As fronteiras com a Europa fechadas, os voos para o Brasil cancelados até segunda ordem, as autoridades anunciando medidas que mudam radicalmente a vida diária dos cidadãos. De repente, lembro-me de Casablanca, o filme. O pano de fundo da história é justamente a dificuldade de se transitar livremente pelo mundo. A procura por uma “carta de trânsito”, a única forma de cruzar fronteiras na Europa nazista é o que leva Ingrid Bergman ao Café Rick, ponto de encontro de refugiados, políticos e ladrões de todo o continente.
Ao entrar no grande hall do aeroporto JFK, o contraste com o inferninho de Casablanca é gritante. Em vez da multidão enfumaçada e de Sam ao piano lembrando que “you must remember this”, encontro o silêncio total. Pelo espaço monumental circula apenas um casal jovem, ele e ela usando máscaras, lentamente arrastando suas malas sem saber direito pra onde correr.
Na área do check-in, a maioria dos passageiros usa máscaras, contrastando com os agentes da American, que abrem sorrisos simpáticos. Imagino o verdadeiro esforço que esse sorriso requer. Nenhum deles tem certeza se volta a trabalhar amanhã, nem do que vai acontecer com a indústria onde eles amarraram suas vidas.
Na hora do embarque, encontro uma amiga indo pra São Paulo, que está saindo no horário certo. Imagino que o anúncio de atraso foi um truque da companhia pra administrar o overbooking.
Dentro do avião, não sou o único limpando o assento com toalhinhas desinfetantes. A loura na primeira fila, de máscara, já está na segunda demão. A aeromoça, após usar a bancada da frente para apoiar uma prancheta onde faz anotações, usa um spray para limpar o local. O clima é tenso, mas estranhamente calmo. Os passageiros tentam disfarçar a desconfiança ao olhar para o vizinho. Alguns parecem serenamente alheios ao inimigo invisível, como o casal de idosos na minha frente, sem máscaras e sem o ritual da limpeza do assento. Ainda se dão as mãos na hora da decolagem, deixando-nos com cara de histeria coletiva. O comandante nos dá as boas-vindas, e quebra o gelo anunciando que a aeronave foi inteiramente desinfetada, que a equipe está consciente que deve tomar total cuidado com a higiene, e ainda estende a todos passageiros a lembrança de lavar as mãos antes do jantar.
Terça-feira, 17 de março
No meio do meu sono químico, uma voz procura com urgência um médico a bordo do avião. Uma passageira passa muito mal, a voz afirma, mas este incidente “não tem nenhuma relação com o vírus”. Viro de lado, tentando afastar o sonho; talvez assim eu ganhe mais uma hora de descanso. Mas logo a voz metálica, vinda do alto-falante, insiste que o caso não tem “nenhuma relação com o vírus”. Inclusive, a passageira nem tem febre.
Fico de olhos fechados, mas não consigo mais dormir.
Tomo um café, enquanto ouço o seguinte anúncio:
Se você viajou para a China nos últimos catorze dias e se sentir doente ou com febre, tosse ou dificuldade para respirar, procure atendimento médico imediato. Informe os profissionais de saúde sobre suas viagens recentes e seus sintomas.
Se você estiver com febre, tossir ou tiver dificuldade para respirar, siga estes procedimentos para evitar a propagação da doença: lave as mãos frequentemente por pelo menos vinte segundos usando água e sabão. Se não houver água e sabão, use desinfetante para as mãos à base de álcool. Ao tossir ou espirrar, cubra sempre a boca e o nariz com um lenço de papel ou a manga e evite usar as mãos. Não compartilhe objetos pessoais, como talheres, pratos, copos ou garrafas.
Fico surpreso com a falta de menção à quarentena, a esta altura a recomendação universal pra evitar a propagação da doença. Peço para a aeromoça uma cópia do anúncio. Ela me traz o papel do governo brasileiro, datado de 21 de fevereiro, e implora que, se eu tiver algum acesso, favor pedir que atualizem as recomendações o mais rápido possível.
Depois que pousamos no Rio de Janeiro, ainda temos que esperar os paramédicos adentrar a aeronave para levarem a passageira numa maca. Ela passa por mim gemendo, e eu, na pressa de pisar em terra firme, nem pergunto a ninguém o que se passou.
Passo pelos longos corredores do aeroporto Tom Jobim sem tocar em nada, lembrando que hoje seria o dia em que teria as reuniões na agência UTA de Los Angeles pra vender uma série que desenvolvi com a Paramount baseada no livro Christodora. Todos os empregados do aeroporto estão de máscaras e luvas. Difícil decidir o que se parece mais com um filme de Hollywood: a vida normal da semana passada, ou a realidade à minha volta.
Espero as malas na esteira e, do meu lado, aquele mesmo casal idoso do avião. Aqui, ele e ela usam as cadeiras de rodas de aeroporto. O ajudante, carioca simpático, de máscara e luvas de borracha, pergunta: “Por que os senhores não estão usando máscara?” Ao que ela responde: “Minha máscara é Nossa Senhora.”
Passo com minha mala pela alfândega e leio, acima, anunciado: “Bem-vindo ao Rio de Janeiro.”
Segunda-feira, 23 de Março
Depois de quase uma semana de confinamento, acordo com uma ligação urgente da minha mãe. A cuidadora do fim de semana partiu, e a de hoje não chegou. São 11 da manhã, e meu pai, sem ajuda, não consegue nem sair da cama. Minha mãe, sozinha, não tem condições físicas de cuidar do marido. Estou a poucas quadras da casa dos meus pais, mas ainda não é recomendável que eu tenha contato direto com eles. Me jogo no telefone pra achar alguém que esteja disponível imediatamente.
Este é o terceiro dia das restrições que o governador Witzel impôs aos moradores de toda Grande Rio. Há uma grande confusão sobre quem pode entrar e sair da cidade, e como os ônibus intermunicipais estariam funcionando. Havíamos planejado uma carona para a cuidadora deste dia, mas houve algum desencontro. Ninguém chegou.
Meu sobrinho se despenca pra casa da minha mãe, enquanto eu continuo tentando organizar o transporte da casa. Consigo finalmente trazer uma ajudante em carro particular. O desencontro se deu por causa do celular dela, estranhamente desligado por toda manhã. Sinto que estão todos receosos em sair de casa. Eles querem e precisam trabalhar, mas o medo do contágio e a responsabilidade em limitá-lo são reais para todos, se não maior pra eles que tratam diretamente com idosos.
Converso com minha irmã, que se isolou com o marido numa casa em Itaipava, e decidimos que o melhor seria levar nossos pais para a serra, onde estariam mais protegidos e bem cuidados. Ligamos pro médico do meu pai, e ele concorda com nossa tática, lembrando que venho de NY: preciso esperar mais uma semana pra cumprir a quarentena, e poder ajudar nos cuidados do meu pai.
Posto o curativo na emergência, acredito que mereço uma pausa. Quebro o protocolo, ponho meu tênis de corrida e vou suar no calçadão. Na volta pra casa, passo pelo prédio dos meus pais e vejo minha mãe na janela. Ela reconhece meu assovio e logo traz meu pai para perto dela.
Este é nosso primeiro encontro. Eles lá em cima no terceiro andar, e eu na calçada aqui embaixo. Conseguimos até conversar um pouco, não estamos tão distantes assim. Volto pra casa confuso com o clima de nostalgia dessa realidade mutante: há algo de antiquado neste novo tipo de encontro.
Segunda-feira, 30 de março
Acordo chocado com as notícias de NY. Na cidade que ostenta incalculáveis fortunas a cada arranha-céu, falta equipamento hospitalar básico. Médicos e enfermeiros, a linha de frente de combate, estão expostos à contaminação em massa. Dói ler o resumo do dia, prevendo triagem de doentes terminais pela falta de respiradores.
O prédio onde eu moro no Upper West manda um memorandum de oito páginas sobre as novas regras entre vizinhos. Entre as novidades, se alguém precisar de um conserto urgente dentro de seu apartamento, a equipe deve perguntar ao morador, antes de entrar: alguém em casa teve febre, tosse ou dificuldade para respirar? Nos últimos catorze dias, alguém em casa viajou pra fora dos EUA, ou teve contato com pessoa suspeita de estar infectada com o coronavírus? Ou seja, se você esteve tossindo nos últimos dias, reze pra que nada quebre em sua casa.
Terça-feira, 31 de março
Começo o dia fazendo compras de mercado e farmácia pra levar pro retiro da família na serra. Tomo um banho completo, troco de roupa e vou finalmente pra casa de meus pais. Depois de duas semanas isolado, mergulhado nas regras do combate à contaminação, não ouso abraçar meu pai nem minha mãe.
Na garagem, a tarefa de encher o porta-malas de sacolas de compras vira um festival de álcool gel. A cautela máxima de distanciamento vai por água abaixo na hora de ajudar meu pai, que já não controla seus movimentos, a sentar-se dentro do carro. O corpo a corpo é inevitável. Já não sei mais o que é certo ou errado.
No carro com meus pais, cruzando a Mata Atlântica no alto da Serra dos Órgãos, sou surpreendido pela voz de Beth Carvalho cantando 1.800 Colinas, um dos sambas favoritos de meu pai. Aumento o volume, e de repente estamos cantarolando, enquanto o velho batuca em ritmo perfeito na caixa de remédios no seu colo. Nesse momento, eu não poderia estar em nenhum outro lugar.