Com a pandemia, muitos netos perderam seus avós. Isadora Pereira, vestibulanda de medicina, temeu pela vida da avó dela, Maria Rodrigues, de 80 anos e diabética. Vacinada com duas doses, Maria contraiu Covid – e cinco dias depois de internada, voltou para casa. Isadora conta os dias de tensão diante da disseminação da doença e da dificuldade para estudar para o Enem. Sabe que a vacina foi decisiva para salvar sua avó. E lembra o dia em que um colega de cursinho chorava a morte do pai, de 50 anos e ainda não vacinado.
(Em depoimento a Lianne Ceará)
Quando a pandemia começou e minhas aulas do cursinho pré-vestibular foram suspensas, voltei para Limoeiro do Norte, interior do Ceará, cidade onde nasci e cresci. Na minha cabeça, dentro de quinze dias eu voltaria para Fortaleza, onde estudo. Eu pensava que seria o necessário para tudo voltar ao normal, mas logo veio o lockdown. O restaurante da minha avó, em Limoeiro, foi fechado. Ela ficou mentalmente doente, não suportava a ideia de ficar em casa – ela trabalha todos os dias, exceto aos domingos, quando toda a família se reúne na casa dela para o almoço. Dona Maria Rodrigues é um acontecimento da natureza, tem 80 anos, não abaixa a cabeça para quase nada na vida, seu mantra e oração se explicam na frase que ela tanto diz: “Com fé e esperança.”
No dia 24 de junho do ano passado, mês de São João, tão especial para nós nordestinos, ela completou 80 anos quase no pico da pandemia. Minha família resolveu comemorar com máscaras personalizadas e distanciamento. Minha avó agradeceu a Deus, em meio à roda de oração, pediu saúde para os anos que viessem e sorriu com os olhos para mim. Seguiu trabalhando e vivia o “novo normal” assustada, mas se cuidando do jeito recomendado pela tevê e pelo rádio, seus meios de informação. Enquanto isso, eu estudava para o Enem, tentando pela terceira vez entrar na faculdade de medicina. Parecia até insanidade estar em meio a uma pandemia, precisando produzir, estudar e aprender tudo para uma prova que eu nem sabia se realmente iria acontecer, já que não havia previsão para o fim desse caos e nem para a aplicação da prova.
No último trimestre do ano passado, em biologia, eu estava estudando o sistema imune, mais um dos inúmeros conteúdos daquele ano. Era quase irônico aprender como todas as células do meu corpo reagiriam a uma vacina e como aquele processo poderia salvar todos nós desse vírus — e a ironia está no fato de que, até então, não tínhamos vacina aprovada contra a Covid. No decorrer dos meses seguintes, as notícias pareciam animadoras. Em janeiro de 2021, vimos o Instituto Butantan mostrar seus resultados, e as possibilidades de uma vacinação pareciam mais palpáveis. Minha maior preocupação era justamente com minhas avós, ambas com idade considerada de risco e portadoras de doenças que poderiam agravar um caso de Covid.
A segunda onda veio com tudo. Comecei a ficar ainda mais paranoica com o isolamento, as medidas de segurança e limpeza – qualquer coisa me deixava estressada por estar num Brasil ainda pior que o de meses antes. Numa quinta-feira, 18 de março, terminei a aula e vi o alvoroço no grupo da minha família: minha avó tinha sido vacinada com a primeira dose da CoronaVac. Ela chorou, agradeceu a Deus, ficou radiante – não se queixou de nenhum efeito colateral, nem sentiu a agulhada, era só fé e esperança, como ela tanto falava.
O bombardeio das notícias ao redor, amigos perdendo avós, pais e mães me deixava atordoada. A vacinação muito lenta, as declarações do presidente, tudo aumentava meu sentimento de impotência. No fim de abril, minha avó recebeu a segunda dose da vacina. Sempre tive medo, não à toa, pois ela tem diabetes e quase 81 anos, um quadro desfavorável para enfrentar uma possível infecção.
No dia 15 de maio, soubemos que minha avó havia testado positivo para a doença. As aulas de imunologia serviram, pelo menos, para me tranquilizar (já que não consegui entrar na universidade), pois já tinham passado mais de quinze dias entre a segunda dose e a infecção.
Três dias depois, os sintomas dela aparentemente não eram fortes, apenas uma febre alta e um desconforto no corpo e, o pior, o humor depressivo por causa da indisposição.
A saturação ficou em 89 (um número muito baixo para o quadro dela). Um dos médicos pediu uma tomografia, que mostrou comprometimento de quase 50% dos pulmões. O médico recomendou a internação, porque a idade e a comorbidade pediam uma atenção mais cautelosa, e assim foi feito.
Três dias depois da internação, já falavam em dar alta para ela. Ela estava se alimentando normalmente, o oxigênio que ela recebia era apenas complementar. Enquanto a previsão era de alta para a minha avó, meu colega de cursinho internava o pai dele, 30 anos mais novo que minha avó e sem comorbidades. Naquele dia, meu amigo pediu à turma orações por ele. Todos nos solidarizamos e enviamos nossas energias positivas através das mensagens. Ele parecia confiante que seu pai ficaria bem. Nesse momento, o alívio pela melhora da minha avó havia diminuído pela preocupação com um amigo. No dia 25 de maio, meu pai foi buscar minha avó no hospital. Recebemos o vídeo dela saindo na cadeira de rodas, segurando uma placa com “#VaiDarCerto”, acenando para os funcionários e encontrando meu pai no final. Ela chorou, meu pai também, todos nós que vimos o vídeo também. Finalmente ela ia para casa, curada, bem, e isso era mais do que suficiente. Naquele momento, eu vi a eficácia da vacina personificada em dona Maria Rodrigues. A vacina salvou minha avó.
Todos os dias meu colega dava notícias de seu pai e continuávamos enviando nossas energias positivas. Naquele dia, o comunicado dele foi diferente e inesperado. Enquanto minha família comemorava, meu amigo de sala do cursinho avisava que o pai dele – intubado dois dias antes – havia falecido. Entrei em um dilema emocional: não conseguia aproveitar a conquista da minha avó e, ao mesmo tempo, saber que meu colega estava órfão de pai. Vieram tantos questionamentos… por que ele não tinha sido vacinado? Por que o pai dele, 30 anos mais novo que a minha avó, não conseguiu voltar para a família?
Dias depois, começa a convocação para a manifestação do dia 29 de maio. A princípio fui contra, pois não faria sentido aglomerar em meio a uma pandemia. Foi quando percebi que a vacina havia salvado minha avó, e a falta dela, possivelmente, havia tirado a chance do pai do meu amigo de viver. Concluí que não poderia esperar alguém de dentro da minha casa perder a vida para que eu fosse às ruas gritar por essas mais de 460 mil pessoas que não sobreviveram. Fui, gritei, com uma máscara PFF2 no rosto, e levantei um cartaz escrito: “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de sobreviver.” Hoje, doze dias depois desse protesto, mais 20 mil também não tiveram a chance que minha avó teve, e o que me resta é lutar para que as próximas tenham.