Estas não são eleições quaisquer. A afirmação pode parecer um clichê. Nem por isso deixa de ser verdadeira. As condições fiscais, sociais e políticas da governabilidade democrática estão próximas dos limites de exaustão.
É impossível predeterminar onde esse limite se localiza. Mas se pode dizer com certeza que são imprevisíveis as consequências de eventualmente ultrapassá-lo. Nunca é demais lembrar: no Brasil, as instituições democráticas não se assentam em solo muito firme e no presente as tensões sociais se acumulam acima da atual capacidade da economia e do Estado de lhes dar resposta efetiva. Mais de trinta por cento da população vivem em cidades com mais de 500 mil habitantes, com grandes periferias, altos índices de desemprego, subemprego, violência e penetração crescente do crime organizado.
A essa altura, mais importante do que fazer um inventário das responsabilidades pela deterioração das condições da governabilidade democrática é encontrar caminhos para superar a crise múltipla na qual o Brasil está enredado há, pelo menos, quatro anos.
Aqueles que desde o impeachment de Dilma investem na narrativa do “golpe” deveriam reconhecer a responsabilidade que cabe aos governos do PT na produção da situação atual. Foi sob a batuta do partido que o presidencialismo de coalizão degenerou em presidencialismo de cooptação, a corrupção se fez sistêmica, a responsabilidade fiscal sofreu ataques de todo tipo, entre eles as “pedaladas” que levaram à destituição da ex-presidente.
Aos que estivemos a favor do impeachment por boas razões (o estelionato eleitoral e as ilegalidades cometidas em busca da reeleição) cabe reconhecer que nos aliamos a quem se bateu pelo impedimento de Dilma por motivações pouco republicanas. Precisamos admitir também que subestimamos a força dos grupos da direita não democrática na mobilização contra o governo anterior.
Não sou ingênuo a ponto de acreditar que o fosso aberto na sociedade brasileira pela polarização petismo versus antipetismo diminuirá no futuro próximo. A chamada esquerda, em geral, e o PT, em particular, decidiram jogar todas as fichas no aprofundamento da polarização. Mais grave, transpuseram a polarização político-partidária para o plano das instituições: da mídia aos tribunais, todos figuram na lista dos conspiradores a serviço das “elites” e dos “interesses estrangeiros”. Na visão redentora do petismo, só Lula, solto e eleito, salva o país. Mistificação pior só se encontra no bolsonarismo, cujo déficit de civilidade democrática não tem par na vida política brasileira.
Ao longo da campanha eleitoral, o máximo que se pode esperar é que o fosso não se amplie. Para isso, quanto antes o PT aposentar a ficção de ser Lula candidato e se comprometer com uma candidatura real, melhor. Tanto para a democracia brasileira como também para o partido, inclusive eleitoralmente. Não é pouco importante no longo prazo a (re)construção de uma esquerda democrática eleitoralmente competitiva.
Ainda mais importante é a (re)construção de um centro político comprometido com reformas que permitam ao país restabelecer plenamente as condições da governabilidade democrática. Restabelecer não é um bom verbo, pois se trata de estabelecer essas condições em novas bases. A sociedade exige maior transparência, probidade e eficiência no uso dos recursos públicos. Ilude-se, porém, quem acredita que só fazendo tábula rasa do passado e apostando no “puro novo” será possível sair da crise atual. As saídas viáveis passam necessariamente pela combinação de elementos de inovação e conservação, alianças entre atores consolidados e emergentes, caras novas e caras velhas. A alternativa são rupturas institucionais que ultrapassam os limites da democracia e desembocam em autoritarismos.
Chegou a hora de refazer o molde no qual foi confeccionado o pacto constitucional de 1988. Devem ser eliminados todos os privilégios corporativos assegurados na Constituição, transferidos à legislação infraconstitucional a maioria, se não todos, os dispositivos referentes à tributação e aos gastos públicos, bem como aos sistemas eleitoral e partidário. Porém, devem ser mantidas as garantias às liberdades fundamentais, os mecanismos de defesa dos interesses difusos da sociedade e os direitos sociais básicos.
A manutenção do status quo condenará o Brasil à insolvência fiscal ou a volta da inflação alta, crônica e crescente, num caso ou noutro com agravamento do já precário quadro social do país.
A partir de 2011, o resultado primário do setor público despencou de um superávit médio de 3% do PIB obtido desde 1999 para um déficit na casa dos 2% do PIB, e a dívida pública bruta saltou de pouco mais de 50% para mais de 70% do PIB, e continua a crescer. Com as despesas obrigatórias respondendo por mais de 90% do gasto total da União, quadro que se reproduz nos estados, alguns deles virtualmente quebrados, sem espaço para aumento significativo da carga tributária, como recuperar o controle sobre a dinâmica da dívida pública, hoje insustentável, sem desarmar os mecanismos constitucionais que impulsionam automaticamente o gasto público?
Não menos crítico é o quadro político-partidário. Como governar com a multiplicação de siglas que, em sua maioria, têm como único propósito barganhar acesso a cargos e recursos públicos em benefício dos seus “donos”? Como assegurar eficiência razoável às políticas públicas e repor certo grau de confiança na autoridade governamental nesse quadro? Sem recuperar a credibilidade das instituições políticas e a sua capacidade de processar os conflitos de interesse, como restabelecer o equilíbrio entre os poderes e pôr limites à judicialização da política, que por vezes se confunde com a politização do Judiciário? A necessidade de maiorias, de 3/5 na Câmara e no Senado, para emendar a Constituição dificulta ao extremo a reforma das instituições político-partidárias. Torna o futuro escravo do presente.
A agregação eleitoral e política do centro reformista em torno de um programa de lipoaspiração cirúrgica da Constituição é indispensável, embora não seja suficiente, para restituir ao país as condições da governabilidade democrática e cimentar pontes sobre o fosso que se abriu na sociedade brasileira.
Mas, como dizem os italianos, tra il dire e il fare, ce di mezzo il mare. Saberemos atravessá-lo?