O boletim informativo semanal da plataforma de streaming MUBI, recebido em 14 de julho, anuncia a redescoberta de The Wasps Are Here, de Dharmasena Pathiraja, lançado em 1978. Nunca tinha ouvido falar do filme, cujo título, em tradução literal do inglês, é As Vespas Estão Aqui. Tampouco conhecia o diretor – pelo visto, duas falhas graves da minha parte. As quatro linhas de apresentação no boletim esclarecem: “Um triângulo amoroso turbulento em uma aldeia tranquila aumenta as tensões nesta redescoberta do enfant terrible do cinema srilanquês dos anos 1970. Interrogando sem medo os desafios comunitários da modernidade no precipício da violência, The Wasps Are Here é um dinamite cinematográfico – Opa! Dinamite cinematográfico do Sri Lanka deve merecer atenção. Em tempo: ignorava também que havia cinema srilanquês. Serei eu um caso perdido?
Tenho na mesa, à minha frente, o Dictionnaire Mondial des Films que raramente consulto – serve de apoio para um switch de oito portas e um HD externo. Ganhei o dicionário há décadas de um grande amigo do meu pai e consultei poucas vezes suas mais de setecentas páginas. Vejamos: procuro primeiro pelo título. Nada. Tento em seguida o nome do diretor. Inútil – não há índice de nomes dos diretores.
Vejamos o que o Google tem a informar. Descubro que o título original é Bambaru Avith, e que o filme, quando lançado, durava 2h20, o que não deixa de ser um sinal preocupante. Fico sabendo também que The Wasps Are Here participou da Seleção Cannes Classics 2020 e será exibido na 43ª edição do Festival dos Três Continentes, em Nantes, de 19 a 28 de novembro próximo.
Não faltam informações sobre o roteirista e diretor Dharmasena Pathiraja (1943-2018), nascido em Kandy, no Ceilão britânico, assim chamado na época. Segundo o IMDb, ele dirigiu nove filmes de longa-metragem, entre 1974 e 2015. Um artigo publicado quando morreu se refere a ele como diretor renomado, conhecido de modo afetuoso como “um rebelde com causa”. Considerava que filmes de guerra, em geral, “glorificam a violência […] são xenofóbicos e ultranacionalistas […] glorificam a militarização e o domínio masculino” (The Hindu, 30 janeiro, 2018. Disponível em https://www.thehindu.com/news/international/renowned-sri-lankan-filmmaker-dharmasena-pathiraja-dead/article22571553.ece ). Em uma entrevista de 2004, a respeito de The Wasps Are Here, Pathiraja declarou: “Há uma subversão da personalidade desse homem [o personagem chamado Weerasena] no filme. Ele é um homem de esquerda, mas você pode perceber um certo romantismo na maneira como ele veio à aldeia para falar ao povo sobre marxismo e exploração. Essa atitude fazia parte de uma geração que era bastante sincera e “objetivamente” correta, mas estava um tanto desligada da realidade das pessoas, de suas condições materiais, de seu poder e até de sua impotência. Tivemos uma série de insurreições de jovens no Sri Lanka, mas nenhuma foi capaz de mobilizar as pessoas por meio de sua visão marxista. Essas pessoas eram alienadas da sociedade que desejavam livrar da exploração. Nessa cena, tento comentar isso sutilmente: esse personagem [Weerasena] discursa na aldeia, mas quando ele se afasta no momento seguinte vemos uma praça vazia… O personagem não é caricaturado. Ele é, como você diz, a consciência do filme; um narrador, mas é mais do que isso também” (disponível na íntegra em https://openjournals.uwaterloo.ca/index.php/kinema/article/view/1057/1204 ).
Crítica recente de Steve Rose, no jornal inglês The Guardian, esclarece que o filme foi “cuidadosamente restaurado a partir da única cópia 35mm remanescente, seriamente danificada”. Segundo Rose, “esse drama realista de 1978 vale o esforço, não apenas por ser um marco do cinema do Sri Lanka (os três atores principais são lendas locais), mas também porque aborda temas sociopolíticos universais com elegante simplicidade… Os personagens em conflito são complexos e convincentes, e a paisagem arenosa e desbotada pelo sol é retratada de forma evocativa. Parece um instantâneo precioso de um lugar e tempo raramente vislumbrado”.
Colhidas essas informações, decido assistir a The Wasps Are Here, apesar de depender das legendas para entender o diálogo em cingalês, fator que prejudica a compreensão de qualquer filme. Mas, vamos a ele.
Tendo assistido aos 124’ da versão atual, a beleza da fotografia em preto e branco impressiona, e fica a impressão, em pelo menos um momento, de faltarem sequências que provavelmente não estavam em condições de ser restauradas. Impressão que parece confirmada pelos dezesseis minutos a menos da duração original.
Para atravessar o primeiro terço de The Wasps Are Here é preciso ser obstinado. No início, a trama parece se resumir a conflitos pessoais esquemáticos entre, de um lado, personagens bons e maus, esses últimos interpretados com traços caricatos e, de outro, uma disputa amorosa. Aos poucos, porém, o filme revela sua verdadeira dimensão, passando a ser decupado de maneira menos convencional e adquirindo maior fluidez narrativa. Revela, por fim, sua premissa aguda – a crítica aos que vêm de fora, causam a crise vivida pela pequena comunidade de pescadores, incluindo algumas mortes, e depois vão embora, deixando a presença da polícia como legado civilizatório.
“Dinamite cinematográfico” acaba comprovando ser qualificação um tanto hiperbólica, ao menos em terras longínquas, décadas depois da estreia. Mas é um belo filme, muito bem restaurado, ainda mais considerando a descrição detalhada do péssimo estado da cópia feita antes dos créditos iniciais – “decomposição química, danos causados por mofo, e síndrome de vinagre severa… Um total de 4750 horas foram gastas” no restauro em resolução 4K feito no laboratório L’Immagine Ritrovata Asia, subsidiária da Cinemateca de Bolonha.
Na entrevista de Pathiraja já citada, ele declara que “todos nós estamos sofrendo de falta de dinheiro. Não podemos imaginar quais serão nossos próximos filmes, porque se você não tem nenhum tipo de financiamento, isso significa que você não pode pensar em nada. Você não pode nem começar a conceber um novo filme. Há dois anos, a National Film Corporation financiou quarenta produções, mas não continuou no ano seguinte porque disseram: ‘Não, não temos dinheiro e não recuperamos o dinheiro que gastamos.’ Então, quem vai financiar empreendimentos independentes? Se o Estado não consegue arranjar dinheiro para financiar filmes, especialmente para esta geração mais jovem, então acho que não há esperança”.
O entrevistador pergunta se Pathiraja estará dizendo que o Estado não valoriza a cultura. “Não da maneira como nós pensamos a cultura”, ele responde. “Acho que a situação está se deteriorando rapidamente. O principal é essa guerra étnica há décadas. Eu nem acho que o governo tem dinheiro para sua própria sobrevivência. Os preços estão subindo muito a cada dia e você vê o sofrimento das pessoas, então não acho que elas tenham recursos suficientes para gastar em atividades culturais. Nenhum filme pode recuperar seus custos e se não for possível recuperar os custos estaremos em má situação.”
De repente, nessa rápida incursão ao cinema srilanquês, sem prejuízo das diferenças abissais, encontrei pelo caminho traços comuns com o cinema brasileiro. A começar pelos coqueiros à beira-mar e o arrastão dos pescadores em The Wasps Are Here, que evocam cenas de Barravento (1962), de Glauber Rocha. Outras semelhanças, persistentes entre nós décadas depois de indicadas no Sri Lanka, são a falta de financiamento, desprezo pela cultura e falta de dinheiro para gastar em atividades culturais, às quais Pathiraja se refere.
É chocante constatar que mesmo em um país com uma única língua oficial e mais de 200 milhões de habitantes, a situação do cinema preserve algumas semelhanças com a do Sri Lanka no início do século XXI, país que além dos anos de guerra civil, encerrada em 2009, tem duas línguas oficiais, além das minoritárias, e cerca de 10% da população do Brasil.
Em 1989, a indústria cinematográfica do Sri Lanka estava em crise que podia ser “facilmente diagnosticada a partir de seus principais sintomas, como o resultado inevitável do que pode ser chamado de sintoma de ‘cinema de país pequeno’”. O público potencial de filmes de produção local era reduzido. Por outro lado, a frequência às salas caíra, a partir de 1981, com a disseminação do hábito de ver televisão e, depois, com a difusão de videocassetes. Em resumo, “A produção […] permaneceu um empreendimento ad hoc relativamente amador, sem os recursos dos ‘negócios’ associados à exibição e distribuição. Na maior parte, a produção manteve o sabor de uma ‘indústria caseira’, em grande parte dada à especulação individual sem as forças estruturais formais que são encontradas em uma estrutura industrial. O Sri Lanka nunca teve empresas de produção de filmes ou um sistema de estúdios como o da vizinha Índia” (Sri Lankan Cinema: The Present and Future Scenario, A. J. Gunawardana, Framework: The Journal of Cinema and Media, No. 37, 1989).
Semelhanças e diferenças entre os dois países saltam aos olhos. Mas é no mínimo melancólico, para não dizer aberrante, identificar sintomas da crise do “cinema de país pequeno’” no cinema de país grande.
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Este nosso imenso país se apequena, quando a Agência Nacional do Cinema – Ancine indefere o projeto de um filme alegando que o longa-metragem “dá margem a inegável propaganda pessoal do ex-presidente da República homenageado no documentário, com notório aproveitamento político, às custas dos cofres públicos” (O Globo, Segundo Caderno, 16 de julho). A decisão de vetar o projeto O presidente improvável, aprovado em 2018, não deve surpreender, porém, diante da subserviência da diretoria da Ancine. Não cabe sequer discutir o demérito da decisão que instaura a censura prévia na Ancine ao vetar o documentário da Giros Filmes e de Belisário Franca, produtora e diretor de notória qualificação, em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso dialoga sobre temas da atualidade com colegas e personalidades políticas internacionais. Ao contrário do que o veto sugere, a Ancine não é um braço do atual Poder Executivo, a serviço dos seus interesses políticos. A comunidade cinematográfica já deveria ter se manifestado em repúdio ao indeferimento.