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    Javier Milei no primeiro dia de G20, no Rio de Janeiro: o presidente argentino não terá nenhuma reunião bilateral com Lula, a quem já se referiu como "tirano" e "comunista", mas vai se encontrar com Xi Jinping, secretário-geral do Partido Comunista da China Foto: Pablo Porciuncula/AFP

questões ultraliberais

A diplomacia do rodapé

Como a chancelaria de Javier Milei se isolou no radicalismo e perdeu voz no G20

Ana Clara Costa, do Rio de Janeiro | 18 nov 2024_16h10
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Diplomatas envolvidos na reunião do G20, que começou na segunda-feira (18), no Rio de Janeiro, cogitaram uma inovação. Como a Argentina era o único país refratário à declaração final do encontro, que vinha sendo discutida há dias, consideraram aprovar o documento mesmo sem o aval do país, registrando suas discordâncias numa mera nota de rodapé. Uma solução inusitada, que não costuma ocorrer em encontros do grupo. Em anos recentes, as divergências partiram sempre de potências como Estados Unidos e China, o que invariavelmente resultou na alteração de trechos da declaração. Segundo três fontes da diplomacia brasileira ouvidas pela piauí, no entanto, a insatisfação da Argentina não era um problema grave o suficiente para bloquear o acordo selado pelos demais integrantes. Tinha a relevância de uma nota de fim de página.

A solução, no fim, não precisou ser usada. Javier Milei, presidente argentino, recuou da postura intransigente que vinha adotando e assinou a declaração. Registrou suas ressalvas num comunicado oficial sem efeito prático. O fato de que uma nota de rodapé foi sequer cogitada, porém, é demonstrativo do desprestígio que a chancelaria argentina cultivou para si. Desde que Milei tomou posse, em dezembro do ano passado, o país perdeu poder de negociação e se isolou nos fóruns multilaterais.

Os pontos que mais incomodavam a Argentina no texto do G20 eram quatro: a defesa da igualdade de gênero, a taxação dos super-ricos, a posição sobre as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio e as discussões sobre o clima. O primeiro não surpreende. No início de outubro, embora tivesse como chanceler Diana Mondino, uma mulher, a Argentina foi o único país a votar contra as resoluções do grupo de trabalho do G20 sobre empoderamento de mulheres, durante uma reunião em Brasília. Até a Arábia Saudita, ditadura que só recentemente permitiu que mulheres dirijam, foi a favor.

Mondino, uma economista sem trajetória diplomática, acabou sendo demitida em 30 de outubro, depois de votar contra o embargo a Cuba na ONU, posição historicamente defendida pela Argentina. Foi substituída por outro apoiador de Milei sem qualquer experiência na diplomacia: o veterinário e empresário Gerardo Werthein, que em abril deste ano havia sido nomeado embaixador da Argentina nos Estados Unidos.

Dias antes da demissão de Mondino, o presidente divulgou uma carta à diplomacia argentina cobrando fidelidade às suas ideias e ameaçando identificar os diplomatas que defendessem posições “antiliberdade”. Na carta, fez menção especial à Agenda 2030 da ONU, que trata de dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre os quais a igualdade de gênero – rubrica que prevê o fim da discriminação, do tráfico de mulheres, do casamento forçado e da mutilação genital. A cisma perdurou até a reunião do G20, no Rio. A declaração final do encontro, assinada por Milei, endossa os objetivos da ONU. O presidente se contentou em fazer uma ressalva no comunicado divulgado nessa segunda-feira (18). Disse que subscreveu o texto “dissociando-se parcialmente de todo o conteúdo vinculado à Agenda 2030”.

No início de novembro, recém-empossado como chanceler, Werthein ordenou que a diplomacia argentina votasse contra a resolução da ONU pelo fim da violência contra mulheres e meninas, numa discussão em que, novamente, até a Arábia Saudita marcou posição favorável (o Irã, teocracia onde mulheres podem ser presas por não vestir o véu islâmico, se absteve). “A Agenda 2030, embora bem-intencionada nos seus objetivos, nada mais é do que um programa governamental supranacional de natureza socialista”, disse Milei em setembro, na Assembleia Geral da ONU.

A taxação dos super-ricos, contestada pela Argentina, aparentava ser uma unanimidade até poucos dias atrás. Em junho, na reunião de ministros das Finanças do G20, no Rio de Janeiro, o país assinou uma declaração consensual sobre o tema, indicando que não se oporia se a questão fosse tratada da mesma forma na cúpula dos chefes de Estado, em novembro. Numa entrevista ao jornal O Globo, em abril, Federico Pinedo, o negociador (chamado de sherpa no jargão diplomático) escalado para representar a Argentina nas tratativas diplomáticas do G20, disse que, se houvesse discordância, ela se daria no campo da geopolítica. “O sherpa brasileiro, o embaixador Mauricio Lyrio, conduziu todo o processo com muita habilidade, e existem consensos sobre as propostas brasileiras. As disputas que surgiram estiveram mais relacionadas com questões geopolíticas, entre elas as guerras entre Rússia e Ucrânia e a situação em Gaza. Combinamos que os grupos de trabalho não se envolvam por enquanto em temas políticos, vamos tentar escrever um posicionamento sobre isso em julho, sobre como esses temas devem ser tratados”, disse Pinedo. Apesar das declarações de seu negociador, Milei já defendeu que ricos e pobres sejam tributados igualmente, o que contraria a pauta do G20. Donald Trump, seu homólogo e inspiração, reduziu justamente a tributação dos ricos em seu primeiro mandato na Casa Branca.

Pinedo tampouco é diplomata. É um político da direita antiperonista, aliado de Patricia Bullricht, candidata que não teve votos para chegar ao segundo turno da eleição argentina e se uniu a Milei, sendo recompensada mais tarde com o Ministério de Segurança. Segundo uma fonte da diplomacia brasileira, o negociador argentino se envolveu pouco nas discussões do G20, sinal de que o encontro não era prioridade para o governo de seu país. Com a chegada do novo chanceler, contudo, Pinedo fez questão de demonstrar trabalho. Num artigo publicado no site Infobae um dia depois da nomeação de Werthein, rechaçou o “socialismo”, aquilo que chama de “neossocialistas woke” e a concepção de que a desigualdade se reduz com a divisão da riqueza. 

 

Os diplomatas encarregados da declaração final chegaram com antecedência ao Rio de Janeiro. Começaram a elaborar a redação no dia 12, num hotel próximo ao aeroporto Santos Dumont, onde não estava hospedado nenhum chefe de Estado – justamente para que tivessem tranquilidade para trabalhar. Na noite de domingo (17), o andamento da conversa deu esperança aos diplomatas brasileiros de que a Argentina pudesse ceder na discussão sobre igualdade de gênero e taxação dos super-ricos.

A informação chegou aos ouvidos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que se animou. Ele é o principal apóstolo do projeto, desenhado sob sua encomenda por economistas mundialmente renomados, como a ganhadora do Nobel de Economia Esther Duflo e o francês Gabriel Zucman, que trabalhou com Thomas Piketty, cânone da discussão sobre a taxação da riqueza. Até a véspera da cúpula, o tema não era visto por Haddad como um possível foco de discordância, já que todos os países assinaram o documento preliminar, em junho. A notícia do desembarque argentino surpreendeu toda a sua equipe.

A taxação dos super-ricos tem o mesmo espírito da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, projeto criado pela presidência brasileira do G20 e no qual Lula apostou todas as suas fichas. O Brasil, além de ter conseguido costurar a declaração final do encontro, pode agora se vangloriar de ter obtido a adesão de 82 países (Argentina inclusa) a um programa que pretende internacionalizar políticas públicas de erradicação da fome, e para o qual o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) já se comprometeu a liberar 25 bilhões de dólares.

A Aliança serviu de terreno seguro e deu verniz de harmonia a um encontro marcado por tensões diversas. Não se sabia até a tarde dessa terça-feira (19), por exemplo, se seria possível fazer a tradicional foto com todos os líderes. O entrave era a presença de Sergei Lavrov, chanceler russo, que veio ao Brasil representando Vladimir Putin. Além de não ser chefe de Estado como os demais, o diplomata é persona non grata entre os países do G7. O desconforto teria sido ainda maior se o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky tivesse comparecido ao encontro (intermediários seus sugeriram ao Brasil que a Ucrânia participasse do G20 na condição de país convidado, mas a ideia não foi para frente). A foto acabou sendo tirada sem Lavrov nem Milei.

Na mesma madrugada de domingo, enquanto as negociações transcorriam, a Rússia atacou instalações de infraestrutura e energia da Ucrânia com centenas de mísseis. Em resposta, o governo de Joe Biden autorizou que, pela primeira vez, Kiev revidasse utilizando mísseis americanos de longo alcance. A escalada da guerra fez com que sherpas de países do G7, grupo dos países ricos, perguntassem ao negociador brasileiro, Maurício Lyrio, se não era o caso de reabrir as negociações sobre a Ucrânia. O documento até então não previa críticas diretas à Rússia, mas o cenário, eles diziam, havia mudado.

Lyrio não aceitou reabrir a discussão, mas deixou os países do G7 livres para fazê-lo. Na dinâmica dos movimentos milimétricos da diplomacia, o país que pede formalmente a reabertura de uma discussão sofre com o ônus caso a negociação paralise de vez. Daí a cautela geral. A sugestão, no fim, não prosperou. Como já era previsto antes do encontro, a declaração final do G20 não condenou nem Rússia nem Israel.

A diplomacia brasileira caminhou sobre gelo fino até a aprovação do texto final. Dos 21 participantes do G20 (o grupo se alargou com a entrada da União Africana, no ano passado), o único que vocalizava insatisfações era a Argentina. Mas nesses encontros sempre há o risco de que, durante a plenária, algum país abra divergência inesperadamente. Isso não aconteceu. O desfecho relativamente tranquilo do G20 representa uma vitória para os negociadores brasileiros, em especial para Lyrio, considerado pelos pares um dos maiores nomes de sua geração, e para Lula, cada vez mais afeito ao papel de presidente diplomata.

Milei não terá nenhuma reunião bilateral com Lula. Os dois apertaram as mãos pela primeira vez na abertura oficial do evento. O presidente brasileiro, que fez piada e riu ao recepcionar diferentes chefes de Estado, reservou a Milei um cumprimento frio. Persiste entre os dois um azedume inevitável. O argentino ofende Lula com frequência. Já o chamou de “perfeito dinossauro idiota”, “tirano”, “corrupto” e “comunista”. O petista disse, em julho, às vésperas da cúpula do Mercosul, que não falaria com Milei até que ele pedisse desculpas. Milei respondeu que não se desculparia por “dizer a verdade”. O argentino não foi ao evento. Em vez de se reunir com os demais presidentes sul-americanos, viajou a Santa Catarina para se encontrar com Jair Bolsonaro num fórum da CPAC, agremiação internacional de extrema direita.

A conduta do país vizinho, segundo diplomatas brasileiros, o coloca em pé de igualdade com a Nicarágua. Um deles cita o exemplo da cúpula da Celac, grupo de Estados latino-americanos e caribenhos, com a União Europeia, em julho de 2023. Daniel Ortega, ditador nicaraguense, se negava a aceitar a redação do documento final, que criticava os ataques russos à Ucrânia. Ortega havia ainda proposto a inclusão de três pontos, ignorados pelos demais. Demonstrando indiferença pelas reclamações, Lula foi à plenária dizer que, mesmo sem a Nicarágua, os demais 59 países assinavam a declaração, o que significava que o acordo estava mantido. Ou seja: pouco importava a opinião de Ortega.

 

Milei chegou ao Rio às seis da tarde de domingo (17). Foi recepcionado no hotel pelo negociador Federico Pinedo e o embaixador argentino no Brasil, Daniel Raimondi. Uma reportagem do site argentino Infobae dizia, citando fontes do governo, que Milei não assinaria a declaração final do G20 se o texto violasse “sua perspectiva pessoal e ideológica sobre a agenda do desenvolvimento sustentável, mudanças climáticas, guerra na Ucrânia e a crise no Oriente Médio”. Ainda de acordo com a reportagem, o presidente argentino avalia que Lula usa a agenda do encontro para “fortalecer sua política doméstica”.

Milei esteve com Trump nos Estados Unidos há poucos dias. Aproveitou a viagem para se reunir também com Elon Musk, dono do X, com quem costuma trocar elogios públicos. Alguém poderia presumir que, confabulando com Trump na véspera do G20, Milei viesse ao Brasil com a intenção de reproduzir integralmente a cartilha do republicano. Mas para tudo há limites – até mesmo para o ultraliberalismo. No Rio, Milei se reunirá com Xi Jinping, o presidente chinês, num esgarçamento ideológico difícil de explicar aos seguidores que estão habituados a vê-lo vociferar contra qualquer coisa de coloração vermelha.

Embora tenha acusado Lula de ser comunista, Milei enalteceu seu próprio encontro com Xi, esse sim um prócer colossal do Partidão. Deixou de lado, ao menos provisoriamente, os conselhos espirituais de seu cachorro e deu ouvidos ao pragmatismo: a Argentina precisa do intercâmbio de moedas com a China para recuperar sua balança comercial e preencher suas reservas. O país vive uma crise severa. A inflação acumulada dos últimos doze meses foi de 193% (no Brasil, no mesmo período, o índice não chegou a 5%). Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), mais da metade da população argentina estava abaixo da linha da pobreza no primeiro semestre do ano.

 


A reportagem foi atualizada às 10h20 de 19/11/2024.

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