Mariana Carvalho (União) não compareceu aos dois últimos debates antes da eleição para prefeitura de Porto Velho. Única médica entre os candidatos, ela ignorou o evento na sede do Conselho Regional de Medicina do Estado de Rondônia (Cremero), em 2 de outubro. Também não participou do encontro na Rede Amazônica, afiliada da TV Globo, no dia seguinte. Ainda assim, ela confirmou sua ida ao 2º turno, após obter 44% dos votos neste domingo (06) – as pesquisas indicavam vitória no primeiro turno. Ela vai enfrentar Léo Moraes (Podemos), que marcou 25%. O dado comum entre eles: ambos vão competir pelo eleitor conservador, da direita radical, resultado do amplo domínio exercido pelo bolsonarismo no estado e na capital rondoniense.
Ao longo da campanha, as estratégias dos postulantes para tentar fisgar o eleitorado de direita foram usadas sem parcimônia. Na sede do Cremero, pouco após o início do debate, as primeiras manifestações pareciam seguir um script. Moraes, do Podemos: “Agradeço a Deus, primeiramente, por estar aqui”. Depois, Benedito Alves, do Solidariedade (que recebeu 5% dos votos): “Quero primeiramente agradecer a Deus. […] Sou cristão, eu sou uma pessoa conservadora.”
Carvalho não participou dos debates, mas tem o establishment local ao seu redor. Apesar de ter nascido em São Paulo, ela é uma figura conhecida na política rondoniense: em 2008, aos 22 anos, se elegeu vereadora em Porto Velho, à época pelo PSDB. Quatro anos depois, fracassou na primeira tentativa à prefeitura. “Ela tem uma família poderosa economicamente e politicamente no estado. Eles são proprietários do Centro Universitário Aparício Carvalho (Fimca) e da Faculdade Metropolitana de Rondônia”, explica o professor de Ciência Política da Universidade Federal de Rondônia (Unir), João Paulo Viana. O pai da candidata, Aparício Carvalho, que dá nome à Universidade, é ex-deputado federal pelo PSDB, ex-vice-governador e atual presidente estadual do Republicanos em Rondônia, posto que Mariana ocupava até abril deste ano, quando migrou de sigla. O irmão, Maurício Carvalho, também do União Brasil, é deputado federal por Rondônia. “Mariana tem doze partidos na coligação dela. Ela tem quase 6 minutos de tempo de tevê e rádio. Esse recurso ainda importa muito”, analisa o professor, que atua como pesquisador do Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal (Legal).
Carvalho é apoiada pelo ex-presidente Bolsonaro e pelo atual prefeito de Porto Velho, Hildon Chaves (PSDB), conhecido como o “Doria de Porto Velho”, em referência ao ex-governador de São Paulo. Viana faz um adendo. “Para mim, ele era o Doria com a mistura de [Sergio] Moro”. Chaves se elegeu à prefeitura em 2016 surfando na onda do antipetismo, marcado pelo impeachment de Dilma Rousseff, definindo-se como um homem da lei, já que era promotor de justiça, e de centro-direita. Quatro anos depois, aproveitou a maré do bolsonarismo para se reeleger.
Carvalho também recebe apoio do governador estadual, o Coronel Marcos Rocha (União Brasil), vitorioso em 2022 diante de outro bolsonarista: o senador Marcos Rogério (PL), defensor fervoroso do Palácio do Planalto na CPI da Pandemia. Um levantamento do Legal mostrou que Rondônia foi o único estado do Brasil em que Jair Bolsonaro saiu vencedor em todos os municípios nos dois turnos das eleições de 2018 e de 2022. A partir desse dado, Viana e o também cientista político Márcio Carlomagno, este da Universidade Federal do Paraná (UFPR), descobriram que Bolsonaro obteve vitória em 97% das urnas do estado na média das duas eleições – a análise está sendo compilada em um estudo que será publicado em dezembro. Ou seja: em apenas 3% o PT saiu vencedor. O conservadorismo se mantém na disputa atual: tanto Mariana Carvalho quanto Léo Moraes escolheram pastores como vice.
Enquanto Carvalho tem o suporte da máquina estatal, Moraes corre por fora, afirmando que a cidade precisa de um novo rumo. “Algumas pessoas têm medo da mudança. Eu? Eu tenho medo de que Porto Velho continue como está!”, disse ele em uma publicação no instagram no dia 26 de setembro. No segundo turno, a estratégia deve ser a mesma: fisgar o eleitorado da direita que, ao que parece, já tem sua preferência – a candidata da situação. Será uma repetição de sua campanha. Por exemplo: em 28 de setembro, Moraes vangloriou-se por ter votado contra a criação do Conselho Estadual de Políticas Públicas e Direitos Humanos para a população LGBT quando foi deputado estadual, em 2017.
Quem chega a Porto Velho nota a repetição de um nome: Jorge Teixeira. É ele quem nomeia o aeroporto internacional, uma avenida que atravessa a cidade, a Câmara Municipal e o prédio que abriga o Tribunal de Contas. Há ainda uma estátua na avenida que leva seu nome e um memorial, no Centro, próximo ao Mercado Cultural, que atualmente está fechado. “Ele é como se fosse o founding father de Rondônia”, explica Viana. Até 1943, no governo de Getúlio Vargas, o estado era uma porção de terra que fazia parte de Mato Grosso e do Amazonas. A partir desta data, ele foi desmembrado para se tornar o Território do Guaporé e, em 1956, passou a se chamar Território Federal de Rondônia, uma homenagem ao marechal Cândido Rondon, militar que comandou expedições para desbravar o Centro-Oeste e o Norte do país. Sua fundação como estado aconteceu em janeiro de 1982, após a aprovação de uma lei federal no ano anterior promulgada por João Figueiredo. Jorge Teixeira era coronel, próximo de Figueiredo e escolhido como primeiro governador do novo estado.
Sua criação na década de 1940 respondia a três necessidades: controle de áreas fronteiriças, dos recursos da floresta Amazônica e de povoamento da região. O governo varguista instituiu programas de migração e ocupação da Amazônia, como o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta), que é de 1943. Com a ascensão dos militares em 1964, ganha relevância a estratégia de explorar a imensidão territorial, interligar áreas distantes e estimular a exploração dos recursos econômicos. Nos anos 1980, o enfraquecimento do regime e o retorno gradual à democracia possibilitou o surgimento de novos estados. Assim como Rondônia, Roraima e Amapá foram constituídos no mesmo período.
O recuo histórico não é à toa. O passado imerso em ditaduras, tanto a varguista, quanto a militar, estão no âmago de uma herança autoritária que Viana define como “combinação explosiva do conservadorismo” e que ajuda a explicar a adesão massiva ao bolsonarismo desde 2018. Outro fator constituinte desse “combo conservador”, segundo o pesquisador, é o processo de colonização agrária, iniciado ainda nos anos 1970, estimulado pela migração de colonos do Sul para ocupar terras na região.
O mosaico conservador é formado também por questões contemporâneas: Porto Velho figura entre as capitais com o maior eleitorado evangélico do país, e há uma ascensão vertiginosa do agronegócio. Dados da Pesquisa da Pecuária Municipal de 2023 mostram que Rondônia tem onze vezes mais bois que pessoas. Só em Porto Velho são quase 5 milhões de cabeças de gado, dez vezes o tamanho da população da capital. “Nós tínhamos um conservadorismo moderado em Rondônia. Isso se radicaliza a partir de 2018, com esses novos elementos”, salienta Viana. Assim, ao centralizar a pauta em costumes, Mariana Carvalho é estratégica e pragmática: combina o ideal de desenvolvimento econômico da região, com apelo ao agronegócio, com discursos em torno da família e da religião, próprios da crença dominante.
Viana acredita que a esquerda está “totalmente esfacelada” em Porto Velho. Samuel Costa (Rede), que se intitulou como candidato de Lula, marcou 1% nas urnas. Outro que poderia flertar com o campo progressista é Célio Lopes (PDT), que atingiu 11%. Mas não o fez. No debate promovido pela SIC TV, afiliada da Record, em 28 de setembro, Costa questionou Lopes por ele não mostrar Lula em seu programa eleitoral. O candidato do PDT respondeu que seu foco estava nas propostas e não em ideologias. Para Viana, Lopes tentou fazer um movimento duplo: capturar uma parcela do eleitorado antipetista sem perder os votos que restam na esquerda. Não deu certo.
O pesquisador observa que os partidos de esquerda perderam a oportunidade de se mobilizar na disputa eleitoral deste ano. Para Michele Tolentino, que não se elegeu como vereadora pela Rede, o campo progressista precisa se unir e se voltar para as periferias da capital, apresentando candidatos que venham dessa realidade. “Precisamos trabalhar mais com a base. Ir mais à periferia. Quem está fazendo isso é a igreja”, disse ela à piauí. “Não temos nenhum candidato periférico no partido. Devemos ir à beira do rio conversar com os ribeirinhos. Não sabemos nos comunicar com essas pessoas.”
No caso específico do PT a situação é ainda mais difícil. O partido governou a capital entre 2004 e 2012, com Roberto Sobrinho, em uma gestão alvo de críticas diante de obras de mobilidade urbana que não foram concluídas. A situação abriu espaço para o discurso da ineficiência petista, reverberado pela direita até hoje.
Ao longo dos três debates promovidos durante a campanha eleitoral, pouco se falou sobre um problema central da capital rondoniense: o meio ambiente. Dos 460 mil habitantes, menos da metade tem acesso a água potável, e apenas 1,7% do esgoto coletado é tratado. Viana argumenta que o senso comum transforma qualquer medida de proteção ao meio ambiente em um possível entrave ao desenvolvimento econômico. “É uma antipauta”, define o pesquisador. Enquanto isso, Porto Velho foi figurinha repetida como a pior capital no quesito qualidade do ar nas medições feitas entre agosto e setembro pela empresa suíça IQAir, resultado das queimadas na região Amazônica. O ar na cidade, definido como “insalubre”, continha partículas poluentes 40 vezes acima do valor anual recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo valor guia é 15. No dia da publicação da reportagem, o índice marcou 5,2 vezes acima (82).
O resultado ruim se repetiu em outra avaliação, desta vez no Índice de Progresso Social (IPS), que mede o desempenho social e ambiental dos municípios brasileiros. A medição desenvolvida por instituições como Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e Amazônia 2030 elegeu Porto Velho como a pior capital para se morar, analisando três principais aspectos: necessidades humanas básicas; fundamentos do bem-estar; e oportunidades. São critérios que avaliam questões como cobertura vacinal, mortalidade infantil de crianças de até 5 anos, acesso ao sistema educacional e inclusão social.