Alguns filmes brasileiros da safra anterior à pandemia chegaram intactos até aqui, depois de terem atravessado a tormenta. É o caso de Meu Nome É Bagdá, de Caru Alves de Souza. Outros foram acometidos de envelhecimento precoce. E há também aqueles que, embora afetados, sobreviveram, vindo a público agora com méritos e deméritos preservados – caso de Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso, estreia de amanhã (21/10) no circuito comercial de salas, quase um ano e nove meses após ter sido exibido no último dia da Mostra de Cinema de Tiradentes, em 1º de fevereiro de 2020.
Definido no site Papo de Cinema como “filme adolescente vibrante”, outro comentário sobre a sessão de Cabeça de Nêgo em Tiradentes informa ter constituído “o ponto alto da noite” e que “a conclusão apoteótica levou a plateia do Cine-Tenda ao delírio, aplaudindo os criadores durante longos minutos, de pé”.
Tamanho entusiasmo prenunciava a possibilidade de uma carreira bem-sucedida. A pandemia decretada no mês seguinte, porém, restringiu a circulação de Cabeça de Nêgo a festivais, onde recebeu o prêmio de Melhor Longa da Mostra Olhar do Ceará, no final de 2020, para emergir em salas de cinema só agora, após mais de 603 mil óbitos causados pela Covid-19, com média móvel de mortos abaixo de 400 por dia, taxa de transmissão do coronavírus, no Brasil, de 0,60, a menor desde abril de 2020, e salas de cinema reabertas com restrições e frequência mais expressiva limitada aos blockbusters de sempre.
O país, embora com feridas indeléveis, continua o mesmo, e há razões de sobra para justificar a revolta de jovens estudantes secundaristas, a começar pela falta de perspectivas e o racismo ancestral ostensivo da sociedade brasileira, declarado em Cabeça de Nêgo quando um colega xinga outro de “macaco!”. Isso, sem esquecer instalações precárias da Escola, partilhadas com baratas e escorpiões, condições sanitárias deficientes, falta de material didático, autoritarismo etc., além de fome, desemprego e inflação no país neste momento. Saulo “Chuvisco” Martins (Lucas Limeira), personagem central do filme, é um desses adolescentes propensos a explodir, como o título do filme sugere.
A camiseta do uniforme da Escola Major Andrade, onde Saulo estuda e é vice-presidente do Grêmio Palmares, traz estampada nas costas o preceito “A disciplina é a fonte para o futuro”, virada para a câmera na primeira imagem do filme, enquanto o rebelde com causa cola no muro grafitado um cartaz convocando para uma mesa de debate sobre Educação e Participação Popular a ser realizado na quadra da Escola.
No plano inicial de Cabeça de Nêgo, com cerca de 2’ de duração, fica definido o conflito básico entre obediência e revolta que permeia a narrativa do filme. Depois de colar o cartaz demonstrando certa apreensão, Saulo se afasta, caminhando a passos rápidos, e a câmera o acompanha em travelling lateral. A sucessão de cores, texturas e materiais dos muros pelos quais ele passa, cuja variedade exprime de forma eloquente o caos urbano em que se vive, justifica por si só a inconformidade da juventude. A lamentar, porém, que Cardoso, autor também do roteiro, demonstre mais interesse em produzir um panfleto juvenil em defesa de uma causa, por mais justa que ela seja, do que em criar uma linguagem própria para o filme todo adequada ao tema, equivalente à da bela abertura.
Cabeça de Nêgo, que inicia tão bem, começa a ratear à medida que o ato político se sobrepõe ao ato estético, o que é acentuado a partir do momento em que Saulo recusa, em sinal de protesto, sair da sala de aula em obediência à punição por ter reagido à agressão de um colega. Esse impasse perde verossimilhança ao se prolongar além da conta, ainda mais à medida que ele assume papel de repórter e passa a fazer postagens para mobilizar seus colegas. O filme adquire, então, um viés idealizado, parecendo transcorrer no reino da fantasia, até a uns vinte minutos do final, quando a realidade brasileira se impõe com a intervenção brutal da polícia.
O paroxismo da quimera de Saulo é expresso através de outro preceito, escrito dessa vez em letras maiúsculas, e assinado com seu apelido, na lousa branca da sala de aula em que ele está refugiado: “CADA NEGR@ TRAZ, ADORMECIDO EM SI, 10 PONTOS DE UM PROGRAMA, QUE CADA PANTERA FEZ SURGIR CHUVISCO” (em transcrição literal).
Assim, o protesto de Saulo se torna inconsequente, para não dizer irresponsável, ao ser influenciado pela leitura de um texto sobre os Panteras Negras enquanto estava ilhado na Escola. Passados cinquenta anos desde que esse movimento radical foi dissolvido nos Estados Unidos, após seis anos de atuação em contexto diferente do brasileiro, surpreende que seja adotado como fonte inspiradora da rebelião de Cabeça de Nêgo, terminando por expor Saulo e seus colegas à violência da repressão.
Mestre em cinema pela Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, com especialização em Dramaturgia pelo Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura de Fortaleza, Déo Cardoso, além de roteirista e diretor, foi professor de fotografia e audiovisual em escolas públicas. Cabeça de Nêgo é seu primeiro filme de longa-metragem, concluído quando ele tinha 43 anos, mas ele declarou em uma entrevista já mexer “com esse negócio chamado cinema há um tempinho. Tô chegando agora na cena de longa-metragem. É o primeiro longa realizado, né? Mas já tenho cinco curtas, dois documentários curtas e algumas coisas escritas”. Sendo assim, apesar de Cardoso ser iniciante em longa-metragem, não cabe relevar a imaturidade de Cabeça de Nêgo que resulta prejudicial ao próprio filme. Entre o diretor e o personagem há uma diferença, além da que separa o criador da criatura. O voluntarismo do jovem estudante é compreensível, enquanto o do cineasta é difícil aceitar.
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No próximo domingo, 24 de outubro, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró, Vanessa Oliveira e este colunista conversam com Aly Muritiba, diretor de Deserto Particular (2021), além de Antonio Saboia e Pedro Fasanaro, atores principais do filme, no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Deserto Particular recebeu no início de setembro o Prêmio do Público de Melhor Filme na Giornate Degli Autori, na 78ª edição do Festival de Veneza. Pouco depois de receber o prêmio, Muritiba declarou ao site Papo de Cinema: “Fazer um filme de amor, em um tempo tão turbulento, trazê-lo para um dos maiores festivais do mundo e atingir o coração da audiência, é algo muito especial. E é também uma pequena prova de que no fim o amor sempre vence! E isso não é só nos filmes, o amor sempre vence na vida real, e o amor vencerá inclusive na nossa história política.” O acesso à conversa do próximo domingo pode ser feito através do link https://youtu.be/Ar9yva4UZ6U .