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Dispositivo de alerta

Morador provisório do Alvorada mostrou não estar à altura do cargo para o qual foi eleito, assim como seu clã de três zeros

Eduardo Escorel | 05 ago 2020_09h08
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Advertências não faltaram. Uma antiga da qual lembrei há dias foi a do poeta Jean Cayrol (1911–2005), autor da narração do documentário de curta-metragem Noite e Neblina, de Alain Resnais, feito com imagens de arquivo e filmagens realizadas na Polônia em setembro de 1955.  

Engajado na Resistência francesa, Cayrol foi preso em 1942 e deportado no ano seguinte para Mauthausen-Gusen, na Áustria, campo de concentração onde permaneceu até fevereiro de 1945 – experiência que ele considerou “indescritível, intransmissível, irracional”. Ao chegar no campo, em 1943, Cayrol, um dos internos mais jovens, foi obrigado a fazer trabalhos duros, construindo estradas e ferrovias. Quando quis morrer, recusando-se a se alimentar, foi salvo pelo padre austríaco Dr. Johann Gruber, que lhe deu a chamada sopa Gruber, escondido no banheiro do barracão. Estima-se que 199.404 presos tenham passado por Mauthausen, dos quais 119 mil morreram e 38.120 eram judeus.   

Campo de concentração Mauthausen-Gusen, na Áustria / Foto: Reprodução

 

Em texto publicado em 1956, Cayrol definiu Noite e Neblina como “não apenas um exemplo sobre o qual meditar, mas um apelo, um ‘dispositivo de alerta’ contra todas as noites e todas as neblinas que baixam sobre a terra que nasceu, porém, ensolarada e para a paz”. 

Destaco os 2’38” finais da narração de Cayrol, de 28’58” a 31’36” do filme, em tradução que difere da publicada na revista serrote nº 9, em novembro de 2011:  

 

Eu não sou responsável, diz o kapo. 

Eu não sou responsável, diz o oficial

Eu não sou responsável… 

Então, quem é responsável? 

No momento em que lhes falo, a água fria dos pântanos e das ruínas volta a encher a cavidade das valas, uma água fria e opaca como nossa frágil memória. 

 

Nove milhões de mortos assombram essa paisagem. 

Desse estranho observatório, quem de nós vela para nos alertar da chegada dos novos carrascos? Terão realmente um rosto diferente dos nossos? 

Em algum lugar entre nós sobram kapos afortunados, chefes recuperados, delatores desconhecidos. 

E há todos os que não acreditavam, ou só acreditavam de vez em quando. 

E há entre nós os que olham essas ruínas como se o velho monstro concentracionário estivesse morto sob os escombros; os que fingem recuperar a esperança diante dessa imagem que se afasta, como se pudéssemos sarar da peste concentracionária. Nós que fingimos acreditar que tudo isso é de um só tempo e de apenas um país. E que não pensamos em olhar à nossa volta, e que não ouvimos o grito interminável. 

Não se trata aqui de equiparar a Shoah, comumente chamada de Holocausto, à calamidade mundial causada pelo novo coronavírus, responsável até o momento por mais de 691 mil mortos. Isso não seria correto, muito menos justo com o governo de diversos países que foram capazes de lidar de frente com a pandemia, tomando as medidas necessárias para conter a propagação do vírus e evitando assim milhares de mortes. Há, porém, pelo menos dois presidentes da República que foram incapazes de encarar a realidade e exercer a liderança que se fazia necessária, contribuindo de modo decisivo para seus respectivos países serem os que tiveram até agora o maior número de mortos – Donald Trump e o morador provisório do Palácio da Alvorada. Nos Estados Unidos e no Brasil, onde a Covid-19 já fez mais de 157 mil e 95 mil mortos, respectivamente, é preciso deixar claro a quem cabe a responsabilidade por esses números inadmissíveis de vidas perdidas que, somadas, correspondem a cerca de 36% do total de ocorrências no mundo. O responsável por aqui é quem mostrou não estar à altura do cargo para o qual foi eleito. Ele e seu clã de três zeros. Ele e os integrantes servis do seu governo que degradam a função pública. Ele e os servidores que nomeou para lhe prestarem serviços. Ele e os difamadores de plantão. Ele e os truculentos que o apoiam etc.   

Chegamos a mais de 2,7 milhões de infectados pelo novo coronavírus no Brasil. Mantida a média atual de mortos diários, até o final da semana a pandemia terá causado mais de 100 mil mortes. Isso, sem mencionar a estimativa de os contingentes de perdas fatais e de contaminados devido à subnotificação serem, na verdade, seis a sete vezes maiores e, em casos como Belo Horizonte, possivelmente até cinquenta vezes maiores. 

Quem é responsável? 

Esses dados, divulgados diariamente, mais de uma vez por dia, retratam o horror no qual estamos vivendo, mas não causam a comoção geral que seria de se esperar. A vida cotidiana prossegue. Os sobreviventes se mantêm alheios à tragédia em curso que não consideram que lhes diga respeito, até o momento em que são atingidos, de forma mais, ou menos, direta. O déficit de solidariedade humana entre nós é imenso, sendo estimulado pelo negacionismo do presidente da República e dos que seguem seu exemplo. Quem não tem uma perda pessoal a lastimar? Ou notícia de alguém – parente, amigo, conhecido – que foi contaminado? Mas, muito além do círculo de relações pessoais de cada um, há milhares de desconhecidos, mortos invisíveis que merecem respeito e reconhecimento. 

Quem é responsável? 

Ele foi ao Nordeste há alguns dias para inaugurar, na Bahia, uma obra iniciada no governo de Dilma Rousseff. Em São Raimundo Nonato, no Piauí, montou em um cavalo, pôs chapéu de couro onde estava escrito “Brasil” e, com a máscara no queixo, cumprimentou integrantes da multidão que o cercavam em frente ao aeroporto. Na foto da primeira página de O Globo (31/7), Ele é todo sorrisos e, com o braço direito estendido, toca a mão de alguém que o festeja. Na viagem, quem o acompanhou foi o senador pelo Piauí, Ciro Nogueira, réu no Supremo Tribunal Federal, acusado de participar de organização criminosa e de desviar dinheiro da Petrobras. No dia seguinte, Ele esteve no extremo Sul do país para inaugurar, em Bagé, um condomínio popular, e, segundo O Globo (1/8), desrespeitou mais uma vez o protocolo sanitário local – tirou a máscara, posou para fotos com crianças no colo e apertou a mão de apoiadores. Ignorou solenemente o fato de estar no Rio Grande do Sul, estado em que os casos confirmados de contaminação, registrados em 94% dos municípios, vêm crescendo de forma acentuada desde o início de maio. 

O rápido tour eleitoreiro ocorreu depois de Ele ter ficado dezessete dias isolado por ter testado positivo três vezes para o novo coronavírus, antes de testar negativo. Na véspera da viagem, foi divulgado que sua mulher havia testado positivo e Ele declarou, em transmissão ao vivo, que “pegou uma infecção”. No dia seguinte, disse estar com “um pouco de infecção”, além de fraqueza. Ou seja, além de inepto e omisso em relação à pandemia, Ele continua irresponsável ao desconsiderar o perigo a que expõe, além de sua própria família, seus ministros, assessores, empregados, servidores públicos, correligionários e pessoas com quem entra em contato. Isso, sem esquecer, naturalmente, o risco a que expõe as emas do Palácio da Alvorada.  

André Bazin escreveu que Noite e Neblina “nos lembra a perenidade da realidade concentracionária e nos incita a [fazer] um exame de consciência”. Para Claude Mauriac, por sua vez, o filme de Alain Resnais “é útil, claro, ele é justo, razoável, necessário na medida em que ele vem oportunamente reparar as fraquezas da nossa memória, nos lembrando dos crimes nazistas (E seria bom que um documento como esse fosse realizado sobre Hiroshima). Mas é uma verdade muito mais desagradável que ele nos obriga a olhar de frente – o que o homem voltou a ser e o que ele nunca deixou de ser”. 

Cena de Noite e Neblina / Foto: Reprodução

 

Cayrol e Resnais haviam advertido em Noite e Neblina que não podemos nos curar da “peste concentracionária”. Ela é perene, escreveu Bazin. Daí, talvez, eu ter me lembrado do filme neste momento em que a vida é tão desvalorizada, em meio à calamidade sanitária e à crise econômica, com a Presidência da República entregue a uma vocação autoritária de extrema direita.

Noite e Neblina teve trajetória inicial difícil, antes de se impor como referência essencial do cinema documentário. Embora tivesse sido selecionado em março de 1956 pela Comissão de Seleção para participar da mostra oficial do Festival de Cannes, o filme não foi incluído na lista dos filmes franceses em competição anunciada no mês seguinte pelo secretário de Estado da Indústria e Comércio. Através de um comunicado, o secretário de Estado procurou justificar a decisão de excluir o filme “por respeito aos deportados, a suas famílias e a suas lembranças… Todos que vierem a assistir em qualquer outro lugar a esse lindo filme… compreenderão que teria sido sobremodo inconveniente apresentar semelhante documento na atmosfera de festividade internacional que é a dos encontros anuais de Cannes. O caráter muito especial desse filme é tal que ele não poderia, em nenhum caso, estar em competição com filmes de imaginação ou mesmo de reconstituição histórica, o que não impede essa obra de conservar todo seu alto valor de testemunho autêntico e de merecer, por esse motivo, a mais ampla difusão”.

A iniciativa de propor a exclusão de Noite e Neblina da mostra competitiva do Festival partiu, soube-se depois, do próprio diretor do evento, Favre Le Bret. Aos britânicos, Le Bret havia pedido que desistissem de um de seus filmes que era “pouco amável com os japoneses”, e aos alemães ocidentais (RFA) propôs que retirassem o filme que tratava da divisão da Alemanha tomando partido a favor do bloco do Oeste. Em março de 1956, Le Bret escreveu que a fama mundial do Festival era devida “em grande parte à vigilância com que nós sempre nos empenhamos para evitar que esse importante encontro internacional – onde só Arte e técnica devem prevalecer – se revista de caráter político ou passional… nossas razões são ditadas pela mais elementar cortesia com os convidados do governo francês.” Le Bret considerava necessário que os franceses dessem o exemplo retirando Noite e Neblina: “Além do mais, nós também ficaríamos em situação muito incômoda se nós mesmos – país anfitrião – desrespeitássemos os princípios que estabelecemos e que fazemos nossos hóspedes respeitar rigorosamente.”

 

Na carta enviada a Le Bret, em abril, o adido cultural da Embaixada da Alemanha em Paris, Bernhard von Tieschowitz, resume a posição do ministério das Relações Exteriores da RFA – “sem nada a obstar em relação a um filme que quer ver exibido ‘em todas as cidades alemãs’, e de acordo que sejam prestadas homenagens ‘aos assassinados e às vítimas infelizes do terror nazista’, pensa não obstante que o festival internacional de Cannes ‘não é o fórum adequado para semelhante evento’ que deve ‘favorecer relações amistosas entre os povos’. A exibição de Noite e Neblina arriscaria envenenar ‘a atmosfera em Cannes e prejudicaria a reputação da República Federal da Alemanha, o espectador normal não sendo capaz de perceber a diferença entre os líderes criminosos do regime nazista e a Alemanha de hoje’.” 

 

Com isso, a exclusão de Noite e Neblina da mostra competitiva de Cannes estava decidida. A solução de compromisso a que se chegou foi manter o filme como participante do Festival e programar uma exibição na cerimônia que teria lugar na comemoração do Dia Nacional dos deportados de 29 de abril. (A fonte do relato feito nos quatro parágrafos acima é “Nuit et Brouillard” Un Film dans l’Histoire, de Sylvie Lindeperg, publicado em 2007, sem edição em português).  

 

Para terminar, se me for permitido, faria uma paráfrase do que Alain Resnais declarou ao L’Express quando Noite e Neblina foi lançado – Não gosto de remoer horrores. Se fiz isso, não é para que as pessoas tenham pena de quem sofre, mas para que reflitam um pouco sobre o que está acontecendo. No Brasil e no mundo, por exemplo. 

A Trilogia do Futebol, de Lucho Pérez Fernández que se apresenta como “assistente de mágico e fabulador de verdades inventadas”, está disponível desde 31/7 em https://vimeo.com/440045735. A Copa dos Refugiados, Os Boias-Frias do Futebol e Boca de Fogo, três documentários de curta-metragem, estão acessíveis em programa único de 37 minutos, e permanecerão online até 20/9. O diretor é ex-aluno do curso Cinema Documentário da Fundação Getulio Vargas. 

Na próxima terça-feira, 11/8, às 11 horas, Fernando Morais conversa com Piero Sbragia, Juca Badaró e comigo sobre notícias falsas, a propósito do documentário Operação Pedro Pan, de Kenya Zanatta e Mauricio Dias, baseado em argumento de sua autoria. Acesso através do link https://youtu.be/55rlXG16h_0.

A Cinemateca do MAM Rio oferece programação online gratuita no site, acessível por meio do link www.vimeo.com/mamrio. Em parceria com o Recine – Festival Internacional de Cinema de Arquivo, será exibido Cacaso Na Corda Bamba, de José Joaquim Salles e Ph Souza. Dois curtas-metragens dão prosseguimento às comemorações dos 65 anos da Cinemateca: Valentina  e Juliana na Cinemateca, filmes-irmãos, realizados no interior da cinemateca.  A programação completa da Cinemateca para este mês pode ser consultada através do link http://www.mam.rio/cinemateca/agenda/este-mes/

 

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