Sir Carvalho, 58 anos, é um obstinado por fiscalizar o desvio de dinheiro público pelo Brasil. Um trabalho solitário que não traz recompensas financeiras, e exige tempo e dedicação quase absoluta. Esse paranaense de Campo Mourão coordena um grupo de cerca de 1,2 mil pessoas – duzentas delas via WhatsApp –, que acompanha as receitas e despesas de órgãos públicos em quase todos os estados (só o Acre ainda está de fora).
São os Vigilantes da Gestão, como ele chamou a ONG que criou para centralizar o trabalho de seus INGs, os indivíduos não-governamentais, cidadãos que não têm dinheiro ou companheiros associados, na mesma cidade, em quantidade suficiente para criar uma organização coletiva. Fazem parte da rede: advogados, promotores de Justiça, juízes, médicos e militares, todos também voluntários. “Eles não têm CNPJ nem espaço físico. Por isso não são uma organização não-governamental. São indivíduos fora do poder público”, disse o economista Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas, que cunhou o termo ING e integra o grupo de Carvalho.
Metódico, Sir Carvalho vigia também as discussões no WhatsApp, para que sejam sempre voltadas aos debates sobre licitações e nuances do direito administrativo. Nada de memes simpáticos com mensagens de “bom dia” ou “tenha uma ótima semana”. No ano passado, ele expurgou um indivíduo do grupo por ter publicado uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Agora, em dias de Copa do Mundo, a vigilância foi redobrada. “Odeio futebol”, disse Carvalho, assertivo. Ele perdeu a conta do número de falcatruas com dinheiro público que seu grupo já descobriu de norte a sul do país. Também não sabe precisar o montante total de desvios flagrados. “Seria um chute irresponsável”, afirmou.
Ao contrário do que se possa pensar, o prenome Sir não faz referência ao título honorífico britânico. Foi só uma forma de os pais, lavradores do oeste do Paraná, seguirem a tradição de batizar todos os quatro filhos homens com nomes começando com a letra “s”.
O interesse de Carvalho por vigiar os gastos públicos começou na virada do século, quando ele seguia a vida de médio empresário no interior do Paraná. “Comecei a me deparar com a burocracia quase infinita do poder público, e como as prefeituras oferecem dificuldades para venderem facilidades.” Ele diz que nunca recebeu nenhuma proposta indecorosa de agentes públicos, mas cansou de ouvir relatos de corrupção de colegas.
Decidiu então acompanhar os gastos públicos da Prefeitura de Pato Branco, no sudoeste do Paraná, onde morava na época. “Começavam a dizer que eu estava a serviço da oposição, então expandi para outras cidades da região.” O volume de trabalho aumentou, o que fez com que Carvalho tivesse de fazer uma escolha decisiva: ou seguia com sua empresa ou abandonava tudo em nome da moralidade pública. Escolheu o último caminho, que nunca lhe deu renda alguma, garante. Pelo contrário: não é raro ele custear viagens do próprio bolso para visitar uma prefeitura em busca de um contrato de licitação.
Na Receita Federal, ele é dono de três empresas, todas inativas. “Não posso comprar e vender nada com elas porque seria perseguido”, disse. Ele afirma viver com algumas economias dos tempos de empresário. “Sou franciscano. Gasto somente o essencial. Caixão não tem gaveta”, afirmou – num dos muitos aforismos que usou na entrevista à piauí.
Além de lhe tirar sua maior fonte de renda, a obsessão contra a corrupção também destruiu cinco casamentos de Carvalho. “Elas juram que não foi por isso, mas sei que foi. E até entendo o motivo delas. Sou idealista, nem sempre é fácil entender isso.” Sua única filha mora no exterior, para alívio dele. “Se morasse no Brasil, poderia estar em perigo por causa do meu trabalho.”
Em 2016, Carvalho dirigia na rodovia que liga Ponta Grossa a Curitiba quando um automóvel bateu na traseira de sua caminhonete – propositalmente, acredita o empresário – e fugiu. O carro de Carvalho capotou várias vezes, mas, por sorte, ele, sua então mulher e os dois sogros sofreram apenas ferimentos leves. Apesar do susto, o empresário não desistiu do trabalho de vigilante. Só tomou algumas precauções. Fez treinamento de tiro e obteve autorização na Polícia Federal para andar armado com uma pistola. “O Ministério Público propôs que eu ingressasse no programa de proteção a testemunhas, mas aí não conseguiria seguir com esse projeto dos Vigilantes da Gestão.”
Os Vigilantes da Gestão são consequência de um aumento das ações de acompanhamento das contas públicas pela sociedade no Brasil. Um dos pioneiros foi a Associação dos Amigos de Ribeirão Bonito, Amarribo, criada em 1999 para investigar desvios de recursos públicos na Prefeitura de Ribeirão Bonito, no interior paulista. O trabalho da ONG levou à cassação do prefeito da cidade e serviu de inspiração para outras entidades pelo país. A Lei de Acesso a Informação, em vigor desde 2012, foi outro marco histórico, ao facilitar o trabalho de vigilância do gasto público.
No início de seu trabalho de vigilância, Carvalho estava vinculado ao Observatório Social do Brasil, uma espécie de franquia de pessoas que se dispusessem a acompanhar de perto a gestão pública. Mas, há cinco anos, após desavenças com a ONG, Carvalho decidiu criar sua própria. A Vigilantes da Gestão se tornou uma central dos INGs pelo Brasil.
Carvalho já perdeu as contas dos livros que leu sobre direito administrativo. O grupo também conta com a assessoria de três advogados especialistas na área. “Não temos cor partidária nem ideologia. Nosso trabalho é objetivo, envolve contabilidade orçamentária, independentemente de quem seja o prefeito ou o governador.” O coordenador reconhece que no grupo há integrantes filiados a partidos políticos, mas garante que isso não influencia as discussões. “Se for um indignado e trabalhar corretamente, é o que basta.” A regra no grupo é evitar a exposição pública. “É como um serviço secreto.”
O coordenador dos Vigilantes da Gestão nunca foi filiado a partidos – que qualifica como “quadrilhas” – e evita conversar com políticos. “Não entro em chiqueiros para falar com porcos, me desculpe a expressão. Quando vou até uma prefeitura analisar documentos, os prefeitos sempre querem falar comigo, mas eu recuso. Não quero conversar com ninguém, só preciso ter acesso aos papéis.”
Ser temido, em maior ou menor grau, faz parte dos atributos desejados de um vigilante. Questionado sobre se os INGs têm parcerias com instituições como a polícia ou o Ministério Público, Carvalho interrompe. “Parceria, não. Temos colaboração eventual. Porque nada garante que amanhã não serão eles, policiais e promotores, os denunciados por nós.”
A “colaboração” tem rendido frutos. O mais conhecido deles foi o suposto direcionamento em licitação para a coleta de lixo em Cascavel, oeste paranaense. Com base em denúncia de Carvalho, o Gaeco, braço do Ministério Público que investiga o crime organizado, denunciou por improbidade administrativa os cinco integrantes da comissão de licitações da prefeitura por privilegiar uma das empresas concorrentes, que acabou assinando contrato de 207 milhões de reais, válido por cinco anos. A ação judicial está prestes a ser sentenciada, de acordo com o promotor Sérgio Machado. “O Sir Carvalho colabora frequentemente com denúncias. É um trabalho extremamente relevante por parte da sociedade, que precisa ser incentivado”, disse o promotor.
No ano passado, quando o caso do lixo em Cascavel foi revelado pelo Fantástico, houve uma enxurrada de adesões de novos INGs no grupo. Boa parte, porém, acabou excluída, nem tanto por memes impróprios no WhatsApp, mas por utilizarem o grupo para propaganda política, outra prática condenada por Carvalho.
Os Vigilantes da Gestão colecionam outros casos bem-sucedidos de investigação. Em agosto do ano passado, a Justiça condenou um ex-prefeito de Castro, no interior do Paraná, por improbidade administrativa, por causa de gastos excessivos no último semestre da gestão dele, em 2012, prática proibida pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A denúncia do Ministério Público foi consequência de uma apuração feita pelos Vigilantes da Gestão.
A produtividade dos INGs levou a Contas Abertas a propor um projeto de patrocínio do grupo pela ONU. “Seria uma maneira de estruturá-los melhor, com a possibilidade de promoverem cursos de gestão pública e produzirem cartilhas”, afirma Castello Branco. Mas a ideia não foi aprovada pela entidade internacional.
Na noite do dia 19, terça-feira, quando foi entrevistado pela piauí, Carvalho estava em uma cidade de Santa Catarina – ele não revela qual – para “uma grande investigação” de esquemas corruptos na prefeitura local. “Jantei sozinho e acabei de chegar em um hotel pago por mim. Sei que vou ajudar a população daqui, mas ninguém vai saber que as irregularidades foram descobertas por mim. Sou um anônimo, e assim quero permanecer. Nunca crio grandes expectativas sobre o meu trabalho para não me frustrar. Fazer o bem para a sociedade é o que me basta. Sou feliz assim.”