Em depoimento a Plínio Lopes
Sou aquela menina que, segundo os médicos, não iria andar nem falar e seria uma “alface” em cima da cama – e este ano me formei como educadora geógrafa na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Meu nome é Manu Aguiar, tenho 29 anos, sou carioca de nascimento, mas moro desde bebê em Matinhos, no litoral do Paraná. Trabalho como auxiliar administrativa e sou presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Paraná.
No dia 18 de janeiro de 1993, a bolsa da minha mãe se rompeu às dez da manhã, e ela foi para o hospital. Mas só fizeram o meu parto às onze da noite. Então, devido a toda essa demora, faltou oxigenação no meu cérebro – e com isso eu tive paralisia cerebral.
Foi só com seis meses de idade que meu avô me visitou e percebeu que tinha alguma coisa que não estava de acordo. Eu era muito mole, eu não conseguia sentar. Minha mãe me levou ao hospital para uma avaliação. No final, o médico me deu a sentença que abre esse texto.
Meus pais nunca desistiram de mim. Minha família nunca teve muito dinheiro, todo mundo é da classe trabalhadora. Mas eles sempre fizeram de tudo para me dar qualidade de vida e autonomia para alcançar meus objetivos. No começo da infância, estudei na Apae de Matinhos e fazia todas as terapias, como fonoaudiologia, psicologia e fisioterapia. Quando eu tinha 5 anos, a psicóloga falou para minha família que eu deveria estudar no ensino regular para me desenvolver melhor. Meus pais me matricularam lá em 1996. Eu lembro que a convivência era muito tranquila. Lógico que precisavam adaptar materiais e tudo mais.
O que mais me marcou foi na terceira série, quando uma professora disse que iria precisar me reprovar porque eu não estava acompanhando a turma. Minha mãe aceitou porque não entendia o problema. Um ano depois, quando eu estava repetindo aquela série, a nova professora descobriu que a antiga professora me reprovou porque não entendia minha letra. Por conta da paralisia cerebral, tenho falta de coordenação motora, e minha letra é mesmo difícil de entender. Mas tinha que existir outro meio de me avaliar, né?
No restante do ensino fundamental, quando eu já era adolescente, eu só tinha dois amigos, o Fábio e o Lucas, que sempre tentavam me incluir nas atividades. Mas em geral eu era muito solitária. No ensino médio, me separaram dos meus únicos dois amigos e me colocaram na mesma sala de aula que outra menina com paralisia cerebral. Nós éramos muito diferentes. Eu sempre gostei de falar muito, participar na aula, e ela era mais quieta.
Foi nessa época que eu comecei a receber várias ameaças de violência física. Um dia, na hora que eu estava voltando do intervalo para a sala de aula, uma menina colocou o pé na minha frente e eu caí no corredor e machuquei o joelho. Minha mãe ficou assustada e me mudou para o turno da noite. A solidão continuou.
Depois de formada no ensino médio, tentei arrumar emprego e não conseguia. Recebi inúmeros nãos. Eu levava o currículo, e eles diziam que já tinham contratado alguém. Mas eu voltava duas semanas depois e a placa de contratação continuava lá. Finalmente, eu consegui um emprego em uma multinacional na cidade vizinha.
Nessa mesma época, consegui uma bolsa e comecei a cursar um curso tecnólogo em Recursos Humanos. Mas eu só fiz porque precisava de uma qualificação profissional, porque desde criança eu falava para os meus pais que queria ser professora de geografia ou de história.
Um dia, quando cheguei do trabalho, minha mãe me perguntou se eu tinha visto que a UFPR estava abrindo um novo curso de geografia no setor Litoral, em Matinhos, onde eu morava. Eu disse que não tinha visto. Então ela retrucou: “Pois é, eu te inscrevi para fazer o vestibular.” Eu fiquei assustada porque achava que não lembrava mais das matérias do ensino médio e achei que não iria passar. Mas ela me convenceu dizendo que eu conseguiria estudar e que seria menos concorrido por ser a primeira turma.
Passei por uma banca com psicólogo, fisioterapeuta, educador especial e assistência social para concorrer por uma vaga com cotas. Fiz a primeira e a segunda fase do vestibular. Em janeiro de 2017, o resultado saiu: eu tinha sido aprovada.
Eu não vivi muito capacitismo vindo dos meus colegas e professores na universidade. A primeira grande barreira que eu tive foi logo no segundo dia de aula. O elevador estragou. E as salas de aula são todas nos andares superiores. Subir escada é muito difícil para mim. Então, nós fomos remanejados para ter aula no auditório.
O elevador demorou mais de sessenta dias para ser consertado. O auditório não tinha quadro, não tinha mesa para apoiar caderno. E isso foi me desgastando. Não é que me culpabilizavam, mas as pessoas – e eu mesma – queriam ter aula com quadro, com mesas etc. E havia outras turmas com pessoas que também tinham mobilidade reduzida ou usavam cadeira de rodas.
Quando eu entrei no curso, eu falei que não queria fazer meu projeto de estudo sobre deficiência porque já tinha feito meu TCC sobre isso em Recursos Humanos. Queria estudar mulheres em situação de cárcere. Mas essa luta do elevador me mostrou que eu não ia conseguir fugir, eu iria precisar falar de deficiência.
Por conta desse episódio, nós tivemos várias reuniões com a diretoria da universidade e criamos uma comissão de inclusão e acessibilidade formada por professores, técnicos, estudantes e comunidade externa da universidade. A partir dela, mudamos muita coisa. Conseguimos rampas, acessibilidade nas privadas dos banheiros e um professor de atendimento educacional especializado, entre outras conquistas.
Na época, fiquei muito revoltada. Fiquei pensando que nem a minha área de pesquisa eu poderia escolher. Mas depois eu fui percebendo que essa era a área de estudo de que eu realmente gosto. Hoje em dia, virou um compromisso social de construção de sociedade. No começo era mudar a estrutura da UFPR, agora é mudar a estrutura da cidade, do estado e do país. E, para isso, eu preciso estar fundamentada teoricamente.
Sempre escutei que não era eu que precisava me adaptar ao mundo, mas sim o mundo que precisava se adaptar a mim. Mas eu sempre achei que isso era papo de mãe. Quando comecei a estudar, vi que isso tinha um nome e um fundamento teórico: o modelo social da deficiência. Historicamente, a pessoa com deficiência sempre foi vista pelo modelo médico, que é o de consertar o corpo da pessoa. E eu comecei a ver que o problema não era o meu corpo. Era a sociedade que não estava preparada para conviver com o meu corpo.
O meu compromisso enquanto militante dos direitos da pessoa com deficiência é melhorar os espaços da sociedade para que outras pessoas com deficiência que estão vindo atrás de mim não precisem passar por tudo que eu passei.
É histórico porque minha família ouviu que eu ia ser um alface, né? E a gente mostrou o contrário. Sou a primeira mulher com paralisia cerebral a se formar na UFPR Litoral, mas eu sei que antes de mim tiveram muitas outras ativistas que trabalharam para que hoje eu conseguisse ser a primeira estudante a me formar no setor.
Esse ano eu também assumi a presidência do Conselho dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Paraná, onde estamos trabalhando para a garantia de políticas públicas para essas pessoas, e estou dando aula para a formação de professores em um curso de desenho universal na Universidade Federal do Pampa (Unipampa).
Também continuo estudando sobre inclusão, acessibilidade e capacitismo porque quero me especializar em educação inclusiva. Quero fazer mestrado e doutorado na área para voltar para a universidade. Mas vou voltar como educadora agora.
Quando eu comecei a ter relação sexual, eu fui ao ginecologista pedir um anticoncepcional. E a consulta foi muito estranha. Ele não entendia o que eu queria, não me via como uma paciente capaz de ter vida sexual. Ele relutou muito para me dar o anticoncepcional. Quando pensamos em mulheres com deficiência física, a gente não tem aparelho ginecológico adaptado para fazer um preventivo, para fazer um exame. A mulher já é vulnerável, sofre violência, mas tendo uma deficiência isso é potencializado.
Eu me vejo muito na Frida Kahlo. A Frida era uma mulher com deficiência, mas essa deficiência dela foi apagada historicamente. Também viveu um relacionamento abusivo como eu. Eu não saía desse relacionamento por medo da solidão. Desde muito nova eu ouvia que eu era o castigo dos meninos. A Frida, com toda sua limitação, toda sua saúde precarizada, foi uma mulher à frente do seu tempo. Então eu me vejo muito nela.
Nós, pessoas com deficiência, temos um lema que eu uso muito e carrego comigo: “Nada sobre nós sem nós.” Isso quer dizer que nenhuma política pública, nenhuma decisão sobre a vida das pessoas com deficiência pode ser tomada sem a participação delas. Eu desejo muito enquanto ativista e enquanto mulher com deficiência que as pessoas com deficiência comecem a ocupar os espaços de poder. A academia é um espaço de poder e nem sempre essas pessoas conseguem participar. Então espero que elas se fortaleçam, conheçam seus direitos e vão à luta para garantir nossos direitos.